segunda-feira, 29 de maio de 2017

Há 91 anos, a 28 de maio, abriu-se a via para o Estado Novo

O movimento de 28 de maio de 1926 começou por ser um levantamento militar iniciado no norte do país, mais propriamente em Braga, a que rapidamente aderiu a maioria das unidades do país. Ao constituir-se em golpe de Estado, retirou o poder aos partidos republicanos e foi o primeiro passo para o regime do Estado Novo, que depois veio a denominar de “Revolução Nacional” este acontecimento.
Os anos anteriores foram de instabilidade num país profundamente dividido em termos políticos e sociais, que esteve continuamente à beira da guerra civil e na barra da bancarrota financeira. O 28 de maio abriu caminho à ditadura militar, que sucessivamente deu lugar à ditadura nacional e ao Estado Novo, sendo que este apenas se distinguiu da ditadura por dispor duma Constituição (plebiscitada e não elaborada por Assembleia Constituinte) e dos órgãos formais da democracia: o Presidente da República, o Governo chefiado pelo todo-poderoso Presidente do Conselho de Ministros, a Assembleia Legislativa (não emanada de partidos e que funcionava três meses por ano). Este regime, cuja vigência durou 48 anos, foi derrubado a 25 de abril de 1974.
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O ambiente que levou ao 28 de maio
Cedo a I República (implantada a 5 de outubro de 1910) evidenciou sinais de fragilidade. No horizonte temporal de quase 16 anos, que terminou a 28 de maio de 1926, a República teve 7 parlamentos, 8 Presidentes da República, 39 Governos, 40 chefes de Governo, uma junta constitucional e uma junta revolucionária. Foi um período de instabilidade constante, repleto de agitação social e de ameaças de golpe.
No início dos anos 20 do século XX, depois da I Guerra Mundial, a instabilidade aumentou: além dos graves problemas financeiros (que se agravaram com a participação de Portugal na guerra), os Governos caíam constantemente (foram 23, entre 1920 e 1926) e a agitação social cresceu, com ameaças de atentados e forte atividade anarco-sindicalista. A instabilidade política quase chegou a uma situação de guerra civil (com confrontos entre diferentes unidades militares). Referem-se dois exemplos do ambiente que se vivia e que são prenúncios da revolução de 1926:
Em Lisboa, a 19 de outubro de 1921, no seguimento da demissão do 28.º Governo Republicano, encabeçado por Liberato Pinto, uma milícia de marinheiros e arsenalistas montou uma revolta militar, a Noite Sangrenta,  de que resultou o assassinato, entre outros, de António Granjo, Presidente do Ministério (Governo), Machado Santos e Carlos da Maia (personalidades históricas da Implantação da República).
Depois, eclodiu a revolta de 18 de abril de 1925, contra as instituições da I República, organizada pelo capitão-de-fragata Filomeno da Câmara, pelo general João José Sinel de Cordes, pelo coronel Raul Augusto Esteves e pelo capitão Jaime Baptista. Foi a 1.ª vez, desde 1870, que uma revolta militar foi liderada por um grupo de oficiais com um general no ativo. Estiveram envolvidos 61 oficiais. A revolta foi considerada o primeiro ensaio geral do que foi o 28 de maio, um ano depois.
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O movimento
No meio da evocada instabilidade política, soaram muitos rumores de golpes que corriam. O general Manuel Gomes da Costa foi desde sempre o principal apontado para liderar a revolução.
Estava marcado para o dia 28 de maio, o Congresso Mariano, em Braga, cidade conhecida como a cidade dos arcebispos, pela sua ligação à religião, e uma das mais populosas do país. O evento reunia as principais figuras do conservadorismo católico, descontentes com as medidas anticlericais dos republicanos, entre as quais se destacava Francisco Cunha Leal, na altura líder da União Liberal Republicana. E, Às 6 horas do dia 28, eclodiu a revolução pela mão de Gomes da Costa, que, a par dos militares, logo ganhou o apoio dos civis do Minho. O movimento alastrou rapidamente a outras unidades militares. Aderiram expressa e ativamente as seguintes unidades militares: 1.ª Divisão (Lisboa), 2.ª Divisão (Viseu), 3.ª Divisão (Porto), 4.ª Divisão (Évora), 5.ª Divisão (Coimbra), 6.ª Divisão (Vila Real), 7.ª Divisão (Tomar) e  8.ª Divisão (Braga).
Tendo o golpe começado na ‘cidade dos arcebispos’, em Lisboa, 400 quilómetros a sul, muitos não acreditavam que o pronunciamento militar marcava o início do regime que duraria 48 anos. O vespertino “Diário de Lisboa” (DL) dedicou toda a 1.ª página ao movimento que eclodira e reportava que “à hora que escrevemos estas linhas − 2 da tarde − sabe-se que o movimento está circunscrito à divisão de Braga, que foi revoltada pelo general sr. Gomes da Costa”.
O Governo, garantindo que o movimento não teve repercussão, tomou medidas e declarou ao mencionado vespertino que “não decretaria nenhumas medidas excecionais, para Lisboa, pelo menos, e que a vida normal da cidade não se alterará”. Ademais, o jornal informava que “o conselho de ministros reuniu às 13 horas, no Governo Civil, onde se conservaram desde madrugada o sr. António Maria da Silva e o sr. dr. Barbosa Viana”. E António Maria da Silva, o chefe do Governo, avistou-se com os jornalistas às 13 horas. Estava “sereno e declarou que o movimento será asfixiado em breves horas, não tendo no país repercussão alguma”. Mas não. O golpe militar conduziu à queda da I República.
Afinal, o plano era ambicioso, e a primeira etapa era marchar sobre o Porto, apesar de o destino final ser Lisboa. Gomes da Costa decidiu-se pela reunião de tropas em Santarém; outras, em Mafra, seriam comandadas por Mendes Cabeçadas. Óscar Carmona, que fora Ministro da Guerra em 1923, tinha por missão concentrar forças em Évora. Depois, todos juntos e coordenados seguiriam para Lisboa.
Entretanto, ainda no dia 28, formou-se, em Lisboa, a Junta de Salvação Pública, presidida pelo almirante José Mendes Cabeçadas, que entregou um manifesto a Bernardino Machado, então Presidente da República. A 29 de maio, depois de a guarnição de Lisboa aderir em massa ao movimento e de o general Óscar Carmona assumir o comando da 4.ª divisão do Exército, em Elvas, o Governo de António Maria da Silva apresentou a demissão a Bernardino Machado, após o que Mendes Cabeçadas aceitou o convite do ainda Presidente para formar um Executivo, convite que fez com que Gomes da Costa ordenasse a todas as unidades militares envolvidas no golpe que se retirassem. E, a 31 de maio, Bernardino Machado resignou e preparou-se para um novo exílio.
Mendes Cabeçadas, a 3 de junho, distribuiu funções no Governo. Assim, entregou a Gomes da Costa as pastas da Guerra, Marinha e Colónias; a Ezequiel Pereira de Campos, a da Agricultura; a António de Oliveira Salazar, a das Finanças; a Joaquim Mendes dos Remédios, a da Instrução Pública; e a Manuel Rodrigues Júnior, a da Justiça. Os três últimos ministros, por serem todos professores da Universidade de Coimbra, ficaram conhecidos por “Tuna de Coimbra”.
No dia seguinte, após encontro com Gomes da Costa na Amadora para clarificar o propósito do Governo, Mendes dos Remédios e Manuel Rodrigues voltaram a Lisboa para tomar posse, ao passo que Salazar regressou a Coimbra. O movimento terminou a 6 de junho de 1926, na Avenida da Liberdade (Lisboa,) onde, após tomar posse, Gomes da Costa comandou um desfile militar de 15 mil homens para celebrar a vitória. Começa agora a ditadura militar, que suspende a Constituição de 1911, dissolve o Parlamento e estabelece a censura. Mas um rodopio de lideranças marca os primeiros 40 dias do regime: os destinos do país que estavam confiados a Mendes Cabeçadas veem-no rapidamente destituído por Gomes da Costa. Nova destituição e, às 15 horas de 9 de julho, já existe um novo governo, chefiado por Óscar Carmona. Seguem-se tempos de grande instabilidade e, um ano mais tarde, o Governo publica um manifesto onde faz o balanço da sua ação.
Em 1927, celebrou-se o 1.º aniversário do 28 de maio com feriado nacional, decretado pelo líder máximo do país, Óscar Carmona, que “usando da faculdade” que lhe confere a lei, instituiu o feriado para esse ano pelo decreto n.º 13 665, e ordenou aos “ Ministros de todas as Repartições [que] o façam imprimir, publicar e correr”.
Em 1928, torna-se na ditadura nacional. Óscar Carmona é eleito Presidente da República por sufrágio universal e António de Oliveira Salazar é novamente convidado para a pasta das Finanças, para equilibrar as finanças públicas do país. Salazar tomou posse como Ministro das Finanças no dia 27 de abril e, como referia o DL, “neste momento é a chave não só da vida financeira, mas de toda a vida governativa do país”. E este vespertino perguntava:
“Ninguém o acusará de buscar uma satisfação para a sua vaidade, porque raros homens se têm mostrado mais modestos do que ele − talvez pelo facto de ser um espírito culto, especializado nos problemas da sua pasta (...) Será bem sucedido na sua tentativa para restabelecer a ordem, a moralidade, e a verdade nas nossas finanças?”.
Desta vez, o professor de Coimbra, que em 1926 tutelara a pasta das Finanças por escassos 13 dias, instalou-se em Lisboa com o intuito de ficar. E surge o ditador que moldou o país nas décadas seguintes, com mão de ferro, mas cujo perfil foi perfeitamente construído, sobretudo pelo modernista António Ferro, na imagem messiânica de salvador dum país que persistia na sua ruralidade, na sua ética e no seu imperialismo caseiro.
Em 1932, Salazar foi nomeado presidente do Conselho de Ministros e em 1933 foi referendada uma Constituição, documento fundador do Estado Novo, regime que acabou por se manter até novo pronunciamento militar, a 25 de abril de 1974.
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Nos alvores do Estado Novo
Salazar aceitou integrar a governação desde que lhe garantissem a liberdade de ação e tomada de medidas, ou seja, a capacidade de definir a política geral do país e a chamada supremacia (ditadura das Finanças) sobre as demais pastas. Como contrapartida, o doutor coimbrão não mexeria com poderosos interesses instalados. E surgiu como o demiurgo e o salvador do país que emergia a ruína, dando-lhe voz altissonante com a Exposição do Mundo Português, em 1940, 8.º centenário da Fundação da nacionalidade e 3.º centenário da Restauração da Independência.
Um dos mais célebres discursos doutrinários do salazarismo – “Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Família e a sua moral...” – foi proferido num feriado ocasional, a 28 de maio de 1928. O Estado Novo durou quase meio século, mas relacionou-se ambiguamente com o dia do seu alvor, ou por motivos economicistas ou porque o 28 de maio não celebrava a ascensão de Salazar. Nesse ano, o 28 de maio não foi feriado, nem o seria nos 7 anos subsequentes. Não obstante, Salazar discursou e enunciou algumas bases programáticas de defesa da ditadura:
“Se não fizermos a revolução de cima para baixo, ela virá de baixo para cima, contra tudo o estabelecido”.
Mussolini, o ditador italiano que tinha admiradores em apoiantes da ditadura portuguesa, discursou na Câmara dos Deputados e prometeu manter-se no “poder mais dez ou quinze anos”, como referia “O Século” a 28 de maio de 1927. Para tanto garantiu:
As deportações de políticos, cujo número é muito inferior ao propalado pelos inimigos no regime serão mantidas, pelo menos, até ao ano de 1932”.
Apesar de o 28 de maio não ser habitualmente feriado (foi-o apenas em 1927, 1.º aniversário, e 1936, 10.º aniversário), as realizações aniversárias apresentavam a efeméride como o início duma nova era de ressurgimento nacional que tinha cortado definitivamente com “a anarquia”.
Em 1936, o 10.º aniversário do 28 de Maio foi celebrado com pompa e circunstância e constituiu um marco simbólico da verbalização doutrinária do salazarismo, do Portugal temente a Deus, que não discute, nem questiona os líderes. Carmona decretara o feriado ao abrigo das disposições constitucionais.  
Estas comemorações tiveram o seu momento áureo em Braga, cidade onde 10 anos antes começara o pronunciamento militar. O enviado especial do DL ditou a notícia “pelo telefone” para a redação na capital, dizendo que a cidade de Braga
“Está em festa (...) Por toda a parte flutuam bandeiras e galhardetes e  (...) na Praça da República, junto às arcadas, veem-se dois grandes retratos do Presidente da República e do sr. dr. Oliveira Salazar”.
Às 10,58 horas, o comboio presidencial chegou à estação. O Chefe de Estado, Óscar Carmona, “entrou na cidade sob uma autêntica chuva de flores”. O Presidente do Conselho, que viera de Lisboa com ele, seguia também no “automóvel aberto”. Ambos foram obsequiados com as flores e a costumeira salva de 21 tiros. “O cortejo desfilou numa verdadeira apoteose (...) os sinos das igrejas tocaram ‘A Portuguesa’ e o entusiasmo popular aumentava de instante a instante”. Houve parada militar, cortejo cívico, sacadas e janelas enfeitadas com “ricas colchas de seda e de damasco”. Discursaram: o general Schiapa, o coronel Albino Rodrigues, o capitão Lucínio Presa, o deputado Aberto Cruz. O general Carmona e o Presidente do Conselho abraçaram-se demoradamente, enquanto a multidão os vitoriava em frenesim. E, num discurso transmitido em direto pela Emissora Nacional, um Salazar empolgado e seguro da mensagem que pretendia transmitir aos portugueses que o veneravam ou temiam enunciou a mensagem sobre “as grandes certezas da Revolução Nacional” com estas palavras que marcaram a doutrina moral do regime e a putativa pacificação da Pátria:
“Às almas dilaceradas pela dúvida e pelo negativismo, procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a Autoridade e o seu prestígio; não discutimos a Família e a sua moral; não discutimos a glória do Trabalho e o seu dever.”.
As comemorações passaram pelo Porto e encerraram em Lisboa, com a inauguração da exposição documental “Dez anos de Revolução Nacional”. E, em 1937, o SNI (Secretariado Nacional de Propaganda), dirigido pelo ativista António Ferro, ora convertido ao conservadorismo e à tradição, financiou o 1.º filme de António Lopes Ribeiro, “A Revolução de Maio”, com vários registos filmados, nomeadamente o famoso que Salazar proferira sobre as certezas do regime. A trama alertava para as manobras oposicionistas, com António Martinez a encarnar o papel de César Valente, comunista conspirador contra o regime. César era vigiado pela polícia, mas, tendo conhecido Maria Clara, que mantém o nome e a voz na película, cedeu aos ideários políticos, porque a paixão por Maria Clara, menina da ‘situação’, prevaleceu sobre o marxismo.
E o regime avançou apoiando a guerra civil de Espanha, transpondo a II Guerra Mundial numa neutralidade colaborante, ganhando foros aparentes de democracia corporativa e aguentando a guerra colonial – até que o 25 de abril o fez ruir, visando a liberdade e a democracia.

2017.05.29 – Louro de Carvalho

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