Em 27 de
agosto de 1521, falecia no norte da França o compositor flamengo Josquin
Desprez, que, durante alguns anos, esteve ao serviço dos Papas no Colégio dos
Capelães Cantores. O Vaticano assinalou a efeméride com um concerto na Capela
Sistina, promovido pelo Dicastério para a Comunicação, os Museus do Vaticano e
a Capela Musical Pontifícia.
Josquin Lebloitte, dito Josquin Desprez ou Josquin des Prés, que nasceu em Beaurevoir
(?), Picardia, cerca do ano 1450, e faleceu em
Condé-sur-l’Escaut, a
É o
compositor europeu mais célebre entre Guillaume Dufay (1397 – 1474) e Palestrina (1525 – 1594). Geralmente considerado como a
figura central da Escola franco-flamenga, é o primeiro grande mestre
da polifonia vocal dos primórdios do Renascimento.
No século
XVI, chegou a ser considerado o maior compositor da época, vindo a ser admirado
e imitado o seu domínio da técnica e a sua expressividade. Autores tão diversos
como Baldassare Castiglione e Martinho Lutero escreveram
sobre a sua reputação e o seu renome. Teóricos como Glareanus e Gioseffo
Zarlino julgaram perfeito o seu estilo.
A sua música
incorpora influências italianas na formação caraterística da escola flamenga,
tendo a sua combinação de técnica e expressividade marcado a rutura com a música
medieval.
Josquin
contribuiu para o património musical com diversos géneros, principalmente o
moteto (género musical
polifónico surgido no século XIII, em que
inicialmente, se usavam textos distintos para cada voz), a missa e a chanson (forma musical basicamente vocal surgida em França no período
renascentista) francesa e
italiana. Mas foi sobretudo nos mais de cem motetos que se mostrou mais
original: a suspensão é empregada como recurso de ênfase e as vozes ganham os
registos mais graves nos trechos em que o texto alude à morte. Também é relevante
na sua obra a canção.
Foi o
principal representante do novo estilo de meados do século XV, com formas
musicais menos rígidas. Certas canções mostram técnica rebuscada, em ritmos
vivos e texturas claras. Superando as formas tradicionais e dando novo
tratamento às relações entre texto e música, foi um mestre da polifonia e
do contraponto, estendeu e aplicou sistematicamente o recurso da imitação (repetição de um trecho musical por
vozes diferentes).
A ampla
difusão da sua música tornou-se possível graças à invenção da impressão de
partituras, no começo do século XVI. E hoje sabemos mais sobre sua música
do que sobre a sua vida.
Compositor e
cantor de talento muito apreciado pelos mais ricos mecenas da Europa,
incluindo a família Este, de Ferrara, Josquin foi o primeiro
compositor a ter impressos volumes inteiramente dedicados à sua obra musical.
Vários aspetos da sua biografia são pouco documentados – sobretudo detalhes da
sua infância e educação.
Há, porém, um
problema, que é a atribuição a Josquin de peças que não são suas, mas o seu
estilo musical destaca-se por exibir grande invenção melódica e domínio de
técnicas como o cânone, bem como uma inclinação para as canções populares.
Entre
as obras mais famosas de Desprez, estão a missa Pange lingua, o
moteto Stabat Mater, a chanson Petite Camusette e a frottola El Grillo (“O grilo”). Pange língua (de Pange,
Lingua, Gloriosi Corporis Mysterium, primeiros versos do hino composto
por Tomás de Aquino para a festa do Corpus Christi: “Canta,
língua, o mistério do glorioso corpo...”) é Missa para coro e 4 vozes. Baisé moy, ma
doulce amye (“Beija-me, minha doce amiga”), chanson para 4 vozes.
***
A frottola é um estilo
musical de peças de um repertório de música secular do Norte da Itália que
floresceu no final do século XV e início do século
XVI. Era considerada música das cortes. Era composta por canções estróficas, solísticas, seculares,
com ritmo bem marcado, diatómicas, com acompanhamento musical
instrumental. O seu estilo é precursor do madrigal. No seu estilo, a frottola varia de quase toda homofónica,
com 4 vozes e os ornamentos melódicos muito elaborados, principalmente as vozes
do tenor. As vozes inferiores participam com escalas, representando o máximo da
atividade polifónica, e, no restante elas seguem homofonicamente. As linhas
do baixo eram bem harmónicas. Os ritmos sugerem um estilo de canção de
dança.
As palavras tinham conotações populares e rústicas; e as
formas poéticas utilizadas para o repertório escrito de frottole resultaram da capacidade dos improvisadores
da época e, provavelmente, até de antes, mas isto não nos deve levar a pensar
que a frottola é uma música só do povo ou folclorista.
***
Quando
Josquin Desprez morre a 27 de agosto de 1521, em Condé-sur-L’Escaut, no norte
da França, próximo à atual fronteira com a Bélgica, tinha cerca de 70 anos e
era reitor do Colégio de Notre Dame, mas, acima de tudo, era o músico mais
famoso da época.
Na sua longa
viagem em etapas pelas Cortes da França, Itália e dos Estados Pontifícios,
tornou-se “o Michelangelo da música”, segundo o maestro Walter Testolin,
diretor do conjunto “De labyrintho” e um dos maiores conhecedores da obra do
compositor flamengo.
Josquin faz
uma mudança radical na história da música, como explica Testolin. Na sua obra,
há uma coexistência completa da palavra com a música, o que faz dele o motor da
grande revolução que acontecerá cerca de duas gerações após a sua morte na
Itália, e que verá o nascimento do madrigal. Dessa música nascerá a ópera.
Entre 1489 e
1495 o músico, nascido nos Flandres a meados do século XV, mas adotado por seus
tios que viviam em Condé-sur-L’Escaut, está no Colégio dos Capelães Cantores do
Papa, a atual Capela Musical Pontifícia Sistina, primeiro com Inocêncio VIII e
depois com Alexandre VI (Borgia), para os
quais compõe algumas de suas Missas mais famosas. E o maestro Marcos Pavan,
diretor da Capela Musical Pontifícia, explica:
“Josquin torna-se o músico mais famoso de todo
o Ocidente graças ao seu génio porque soube dar um passo à frente no estilo
polifónico da sua época, até àquele momento um tanto intelectualista, e torna-o
mais audível e atento à expressão dos sentimentos”.
Como
outros cantores da Capela Sistina, Josquin quase certamente quis deixar o seu
nome gravado na parede do pequeno coro da Capela Sistina, num graffiti
descoberto após as restaurações no final do século passado. Sobre isto, diz Monsenhor
Pavan:
“Muito provavelmente é a sua assinatura, porque,
para os cantores que também foram compositores, era certamente um privilégio
poder participar na Capela Pontifícia e, portanto, deixavam uma recordação sua
na Capela Sistina”.
Os maestros
Pavan e Testolin, com os corais que dirigem, são os protagonistas do concerto
comemorativo do 500.º aniversário da morte de Josquin, gravado na Capela
Sistina e fruto da colaboração entre Vatican Media, Rádio Vaticano e Vatican
News, Capela Musical Pontifícia e Museus Vaticanos, e que será lançado no
outono.
Durante
os seus anos no Vaticano, explica o diretor brasileiro da Capela pontifícia,
Josquin “faz muitas coisas de valor, como o tractus “Domine, non secundum peccata nostra’,
com o qual participamos neste concerto comemorativo, certamente realizado pela
primeira vez no coro da Capela Sistina, na celebração da Quarta-feira de Cinzas
presidida pelo Papa”. No texto, canta-se: “Senhor, não seja eu julgado segundo
os meus pecados” – o que nos recorda o Juízo Final pintado por Michelangelo que
temos na Capela Sistina”.
Quando está
ao serviço do Papa, sublinha o Maestro Testolin, o compositor flamengo compõe “algumas
das suas obras mais importantes: entre todas as Missas ‘L’homme armé super voces musicales’,
talvez a sua primeira Missa totalmente humanística” e que, para o diretor de
Vicenza, “dará vida também ao novo Josquin porque, durante os anos romanos, ele
se transformará radicalmente e irá crescer de forma notável”, pois, “em poucos
anos, tornar-se-á o principal compositor europeu”.
Na escolha
das peças a interpretar no concerto comemorativo, o maestro e os seus
colaboradores do conjunto “De labyrinto” optaram por quatro motetos “que
descrevessem o percurso de Josquin, mas sobretudo com uma ligação direta com
Roma”.
De facto,
depois do “Praeter rerum seriem”, um moteto a seis vozes escrito nos
últimos anos da sua vida em Condé, foram incluídos no programa “Illibata Dei
virgo nutrix”, composto em Roma, no qual Josquin coloca a sua assinatura,
pondo o seu nome como acróstico nos versos da primeira parte.
Assim,
depois do “Gloria” da “Missa Gaudeamus”, “Missa de extraordinária beleza
escrita em Roma, foram escolhidos dois motetos que têm uma referência precisa à
Capela Sistina. Um é o ‘Factum
est autem?, que descreve a cena do Batismo de Cristo tirada do
Evangelho de Lucas: na Sistina é ilustrado pelo afresco de Perugino. E, depois,
o longo moteto, ‘Liber generationis
Jesu Cristi’, cujo texto é retirado da genealogia de Cristo com a
qual Mateus abre o seu Evangelho”. São os nomes dos antepassados e familiares
de Cristo, de Abraão a José, “que Josquin musicou e que Michelangelo, alguns
anos depois, pintou na sua série de afrescos na Capela Sistina.
***
Enfim, um
músico inovador e precursor, que muita gente não conhece. Foi um inovador que
abriu o caminho para o madrigal; é o compositor-cantor da polifonia e do contraponto;
entre
1489 e 1495, esteve no Colégio dos Capelães Cantores do Papa; tornou-se
o principal compositor da Europa ao tempo; e terá deixado a sua assinatura em graffiti
na Capela Sistina.
2021.08.28 – Louro de Carvalho
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