sábado, 28 de agosto de 2021

No V centenário da morte de Josquin, o “Michelangelo da música”

 

Em 27 de agosto de 1521, falecia no norte da França o compositor flamengo Josquin Desprez, que, durante alguns anos, esteve ao serviço dos Papas no Colégio dos Capelães Cantores. O Vaticano assinalou a efeméride com um concerto na Capela Sistina, promovido pelo Dicastério para a Comunicação, os Museus do Vaticano e a Capela Musical Pontifícia.

Josquin Lebloitte, dito Josquin Desprez ou Josquin des Prés, que nasceu em Beaurevoir (?), Picardia, cerca do ano 1450, e faleceu em Condé-sur-l’Escaut, a 27 de agosto de 1521, não raro designado simplesmente como Josquin, foi um compositor franco-flamengo da Renascença.

É o compositor europeu mais célebre entre Guillaume Dufay (1397 – 1474) e Palestrina (1525 – 1594). Geralmente considerado como a figura central da Escola franco-flamenga, é o primeiro grande mestre da polifonia vocal dos primórdios do Renascimento.

No século XVI, chegou a ser considerado o maior compositor da época, vindo a ser admirado e imitado o seu domínio da técnica e a sua expressividade. Autores tão diversos como Baldassare Castiglione e Martinho Lutero escreveram sobre a sua reputação e o seu renome. Teóricos como Glareanus e Gioseffo Zarlino julgaram perfeito o seu estilo.

A sua música incorpora influências italianas na formação caraterística da escola flamenga, tendo a sua combinação de técnica e expressividade marcado a rutura com a música medieval.

Josquin contribuiu para o património musical com diversos géneros, principalmente o moteto (género musical polifónico surgido no século XIII, em que inicialmente, se usavam textos distintos para cada voz), a missa e a chanson (forma musical basicamente vocal surgida em França no período renascentista) francesa e italiana. Mas foi sobretudo nos mais de cem motetos que se mostrou mais original: a suspensão é empregada como recurso de ênfase e as vozes ganham os registos mais graves nos trechos em que o texto alude à morte. Também é relevante na sua obra a canção.

Foi o principal representante do novo estilo de meados do século XV, com formas musicais menos rígidas. Certas canções mostram técnica rebuscada, em ritmos vivos e texturas claras. Superando as formas tradicionais e dando novo tratamento às relações entre texto e música, foi um mestre da polifonia e do contraponto, estendeu e aplicou sistematicamente o recurso da imitação (repetição de um trecho musical por vozes diferentes).

A ampla difusão da sua música tornou-se possível graças à invenção da impressão de partituras, no começo do século XVI. E hoje sabemos mais sobre sua música do que sobre a sua vida.

Compositor e cantor de talento muito apreciado pelos mais ricos mecenas da Europa, incluindo a família Este, de Ferrara, Josquin foi o primeiro compositor a ter impressos volumes inteiramente dedicados à sua obra musical. Vários aspetos da sua biografia são pouco documentados – sobretudo detalhes da sua infância e educação.

Há, porém, um problema, que é a atribuição a Josquin de peças que não são suas, mas o seu estilo musical destaca-se por exibir grande invenção melódica e domínio de técnicas como o cânone, bem como uma inclinação para as canções populares.

Entre as obras mais famosas de Desprez, estão a missa Pange lingua, o moteto Stabat Mater, a chanson Petite Camusette e a frottola El Grillo (“O grilo”)Pange língua (de Pange, Lingua, Gloriosi Corporis Mysterium, primeiros versos do hino composto por Tomás de Aquino para a festa do Corpus Christi: “Canta, língua, o mistério do glorioso corpo...”) é Missa para coro e 4 vozes. Baisé moy, ma doulce amye (“Beija-me, minha doce amiga”)chanson para 4 vozes.

***

A frottola é um estilo musical de peças de um repertório de música secular do Norte da Itália que floresceu no final do século XV e início do século XVI. Era considerada música das cortes. Era composta por canções estróficas, solísticas, seculares, com ritmo bem marcado, diatómicas, com acompanhamento musical instrumental. O seu estilo é precursor do madrigal. No seu estilo, a frottola varia de quase toda homofónica, com 4 vozes e os ornamentos melódicos muito elaborados, principalmente as vozes do tenor. As vozes inferiores participam com escalas, representando o máximo da atividade polifónica, e, no restante elas seguem homofonicamente. As linhas do baixo eram bem harmónicas. Os ritmos sugerem um estilo de canção de dança.

As palavras tinham conotações populares e rústicas; e as formas poéticas utilizadas para o repertório escrito de frottole resultaram da capacidade dos improvisadores da época e, provavelmente, até de antes, mas isto não nos deve levar a pensar que a frottola é uma música só do povo ou folclorista.

***

Quando Josquin Desprez morre a 27 de agosto de 1521, em Condé-sur-L’Escaut, no norte da França, próximo à atual fronteira com a Bélgica, tinha cerca de 70 anos e era reitor do Colégio de Notre Dame, mas, acima de tudo, era o músico mais famoso da época.

Na sua longa viagem em etapas pelas Cortes da França, Itália e dos Estados Pontifícios, tornou-se “o Michelangelo da música”, segundo o maestro Walter Testolin, diretor do conjunto “De labyrintho” e um dos maiores conhecedores da obra do compositor flamengo.

Josquin faz uma mudança radical na história da música, como explica Testolin. Na sua obra, há uma coexistência completa da palavra com a música, o que faz dele o motor da grande revolução que acontecerá cerca de duas gerações após a sua morte na Itália, e que verá o nascimento do madrigal. Dessa música nascerá a ópera. 

Entre 1489 e 1495 o músico, nascido nos Flandres a meados do século XV, mas adotado por seus tios que viviam em Condé-sur-L’Escaut, está no Colégio dos Capelães Cantores do Papa, a atual Capela Musical Pontifícia Sistina, primeiro com Inocêncio VIII e depois com Alexandre VI (Borgia), para os quais compõe algumas de suas Missas mais famosas. E o maestro Marcos Pavan, diretor da Capela Musical Pontifícia, explica:

Josquin torna-se o músico mais famoso de todo o Ocidente graças ao seu génio porque soube dar um passo à frente no estilo polifónico da sua época, até àquele momento um tanto intelectualista, e torna-o mais audível e atento à expressão dos sentimentos”.

 Como outros cantores da Capela Sistina, Josquin quase certamente quis deixar o seu nome gravado na parede do pequeno coro da Capela Sistina, num graffiti descoberto após as restaurações no final do século passado. Sobre isto, diz Monsenhor Pavan:

Muito provavelmente é a sua assinatura, porque, para os cantores que também foram compositores, era certamente um privilégio poder participar na Capela Pontifícia e, portanto, deixavam uma recordação sua na Capela Sistina”. 

 Os maestros Pavan e Testolin, com os corais que dirigem, são os protagonistas do concerto comemorativo do 500.º aniversário da morte de Josquin, gravado na Capela Sistina e fruto da colaboração entre Vatican Media, Rádio Vaticano e Vatican News, Capela Musical Pontifícia e Museus Vaticanos, e que será lançado no outono.

 Durante os seus anos no Vaticano, explica o diretor brasileiro da Capela pontifícia, Josquin “faz muitas coisas de valor, como o tractus Domine, non secundum peccata nostra, com o qual participamos neste concerto comemorativo, certamente realizado pela primeira vez no coro da Capela Sistina, na celebração da Quarta-feira de Cinzas presidida pelo Papa”. No texto, canta-se: “Senhor, não seja eu julgado segundo os meus pecados” – o que nos recorda o Juízo Final pintado por Michelangelo que temos na Capela Sistina”.

Quando está ao serviço do Papa, sublinha o Maestro Testolin, o compositor flamengo compõe “algumas das suas obras mais importantes: entre todas as Missas L’homme armé super voces musicales, talvez a sua primeira Missa totalmente humanística” e que, para o diretor de Vicenza, “dará vida também ao novo Josquin porque, durante os anos romanos, ele se transformará radicalmente e irá crescer de forma notável”, pois, “em poucos anos, tornar-se-á o principal compositor europeu”.

Na escolha das peças a interpretar no concerto comemorativo, o maestro e os seus colaboradores do conjunto “De labyrinto” optaram por quatro motetos “que descrevessem o percurso de Josquin, mas sobretudo com uma ligação direta com Roma”.

De facto, depois do “Praeter rerum seriem”, um moteto a seis vozes escrito nos últimos anos da sua vida em Condé, foram incluídos no programa “Illibata Dei virgo nutrix”, composto em Roma, no qual Josquin coloca a sua assinatura, pondo o seu nome como acróstico nos versos da primeira parte.

Assim, depois do “Gloria” da “Missa Gaudeamus”, “Missa de extraordinária beleza escrita em Roma, foram escolhidos dois motetos que têm uma referência precisa à Capela Sistina. Um é o Factum est autem?, que descreve a cena do Batismo de Cristo tirada do Evangelho de Lucas: na Sistina é ilustrado pelo afresco de Perugino. E, depois, o longo moteto, Liber generationis Jesu Cristi’, cujo texto é retirado da genealogia de Cristo com a qual Mateus abre o seu Evangelho”. São os nomes dos antepassados ​​e familiares de Cristo, de Abraão a José, “que Josquin musicou e que Michelangelo, alguns anos depois, pintou na sua série de afrescos na Capela Sistina.

***

Enfim, um músico inovador e precursor, que muita gente não conhece. Foi um inovador que abriu o caminho para o madrigal; é o compositor-cantor da polifonia e do contraponto; entre 1489 e 1495, esteve no Colégio dos Capelães Cantores do Papa; tornou-se o principal compositor da Europa ao tempo; e terá deixado a sua assinatura em graffiti na Capela Sistina.

2021.08.28 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário