segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O farisaísmo atual é uma ameaça para a Igreja e para a sociedade

 

A Liturgia fez-nos regressar, neste domingo XXII do Tempo Comum, no Ano B, ao Evangelho de Marcos, em que escutamos, embora com intermitências, o texto de Mc 7,1-23.

O trecho em apreço divide-se em três partes: Mc 7,1-13, com a diatribe entre Jesus e os fariseus e escribas; Mc 7,14-16, com Jesus a constituir um novo auditório, chamando a multidão e falando para todos; e Mc 7,17-23, com Jesus a entrar em casa e a falar para os discípulos.

Os povos antigos e, em particular, os judeus sentiam desconforto em lidar com misteriosas realidades (quase sempre ligadas à vida e à morte) que não podiam controlar. Por isso, criaram um conjunto de regras que interditavam ou regulamentavam o contacto tais realidades (v. g: cadáveres, sangue, lepra, etc.), para obstar ao suspeito malefício. Entre os judeus, quem infringia tais normas punha-se em situação de indignidade que o impedia de se aproximar do mundo divino (o culto, o Templo) e de integrar a comunidade. A pessoa ficava “impura”. E, para readquirir o estado de pureza e poder reintegrar a comunidade, o crente tinha de realizar um rito de “purificação”, cuidadosamente estipulado na “Lei”.

No tempo de Jesus, as regras da “pureza” tinham sido ampliadas pelos doutores da Lei, contrariando a advertência de Moisés. Um dos ritos de purificação consistia na lavagem das mãos antes das refeições, à semelhança do que a Lei mandava aos sacerdotes de lavarem os pés e as mãos antes de se aproximarem do altar (cf Ex 30,17-21). Na ótica dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições não era um imperativo de higiene, mas religioso.

Ora, na Galileia, terra em permanente contacto com o mundo pagão, as normas de “pureza” não eram tão rígidas como em Jerusalém. E os fariseus, vindos de Jerusalém, vendo como os discípulos de Jesus comiam sem realizar o gesto ritual de purificação das mãos, referiram, escandalizados, o caso a Jesus, tentando sondá-Lo para aquilatar da sua ortodoxia face à tradição (“parádôsis) dos antigos dos antigos.

Para Jesus, a obsessão dos fariseus com os ritos externos de purificação é sintoma de grave desvio na vivência da religião. Por isso, responde ao reparo com dureza a partir da Escritura e da práxis dos judeus, censurando a vivência religiosa que aposta apenas na repetição de práticas formalistas, sem qualquer preocupação com a vontade de Deus (“este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”) ou com o amor aos irmãos.

É um pouco o que sucede hoje. Quantas pessoas não se regalam com a missa, o batismo, o crisma, a comunhão, o matrimónio para a fotografia. O resto – zelar pela pureza de alma e de intenção, fazer a vontade de Deus e trabalhar pelos irmãos, designadamente os mais frágeis – não é da sua conta. Porém, não cumprindo minimamente os mandamentos, gostam de sobrecarregar os outros com mais e mais obrigações. Estas pessoas só têm direitos, quando os outros só têm deveres; elas têm a consciência limpa, mas espreitam todos os furos para fugir às leis civis e religiosas ou para as ludibriar. Não cumprem do fundo do coração, mas estão em todas as cerimónias que lhes interessem. E não estarão se tal não lhes der dinheiro e/ou vaidade e prestígio. Confundem a verdadeira Tradição com as tradições (cuja origem ninguém conhece ou cuja recente criação ficou obnubilada pela falta de memória).  

Depois, Jesus dirige-se à multidão e ensina que a impureza não está no que vai pelo homem adentro, mas no que dele sai. E desafia: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça”. Mostra querer a sério que O entendam.

 

E, tendo regressado a casa, é interpelado pelos discípulos, admira-se da sua falta de entendimento e explica: “do interior do homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez; todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem impuro” (Mc 7, 22-23). O dito de Jesus refere-se a dois “circuitos” diversos: o do estômago, onde entram os alimentos que se ingerem; e o do coração, donde saem os pensamentos, os sentimentos e as ações. Os alimentos não são fonte de “impureza”; os pensamentos e as ações más que saem do coração do homem é que são fonte de “impureza”.

A verdadeira religião não passa, portanto, pelo cumprimento de regras externas, que regulam o que o homem come ou não come, mas por uma autêntica conversão do coração, que leve o homem a deixar a vida velha e a transformar-se num Homem Novo, que assume e que vive os valores do Reino.

A preocupação com as regras externas de “pureza” é preocupação estéril, que atinge o essencial, o coração do homem e pode distrair o crente do essencial, dando-lhe a falsa segurança e a falsa sensação de estar em dia com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve ser moldar o seu coração, a fim de que os seus sentimentos, desejos, pensamentos, projetos e decisões se concretizem, no dia a dia, na escuta atenta dos desafios de Deus e no amor aos irmãos.

Refere Dom António Couto que, “na parte do discurso dirigido aos fariseus e escribas (Mc 7,1-13), Jesus pôs a nu o culto vazio e exterior, sem Deus e a vida nova que d’Ele vem, e só com rodeios humanos”; e que, “na nova vaga agora iniciada (Mc 7,14-16), Jesus chama para junto de si a multidão, que tinha sido referida pela última vez em Marcos 6,34, e lança dois imperativos a todos: ‘Escutai-me e compreendei’ (Mc 7,14)”, reclamando “de todos a máxima atenção”. E enuncia “o novo princípio ético do Novo Testamento, a pureza do coração”: “da fisiologia (lavar as mãos, os jarros…) para a ética assente na limpeza e na pureza do coração”, pois “são as coisas que saem do homem que tornam o homem impuro” (Mc 7,15).

Em casa, são os discípulos que pedem explicações (Mc 7,17). Só eles é que estão com Jesus em casa. E querem apenas “compreender melhor o dizer sapiencial de Jesus à multidão”. Mas Ele adverte-os, como quem espera uma melhor compreensão. Todavia, explica, apontando outra vez o dedo ao coração: “Não compreendeis que tudo o que, de fora, entra no homem, não o pode tornar impuro, porque não entra no seu coração, mas no ventre, e vai para a fossa?”.

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Acompanha a proclamação do Evangelho, como 1.ª leitura, o texto do Livro do Deuteronómio (Dt 4,1-8), que transcreve o discurso de Moisés ao povo reunido à entrada da Terra Prometida. Este livro é formado, basicamente, por quatro longos discursos de Moisés no último dia da sua vida. O assunto é insistentemente o mesmo: para viver feliz na Terra Prometida em que o povo de Israel está para entrar, isto é, para entrar e viver na Casa de Deus, perto de Deus, Israel tem de escutar e praticar os mandamentos de Deus.

O Deus que interveio na história para libertar Israel é o mesmo Deus que agora oferece ao seu Povo leis e preceitos, que Israel deve acolher e praticar como forma de gratidão ao Deus libertador, que mil vezes agiu no passado para salvar o seu Povo, e porque as leis e preceitos do Senhor são o caminho que guia o Povo pela estrada da felicidade e da liberdade. Na verdade, viver de acordo com as leis e os preceitos do Senhor ajudará o Povo a concretizar todos os seus sonhos e esperanças – nomeadamente o sonho de se estabelecer numa terra, escapando aos perigos e incomodidades do nomadismo.

Contudo, Israel deve ter cuidado para não adulterar as leis e preceitos que Deus lhe propõe. Há sempre o perigo de adaptar a Palavra de Deus, de forma que ela sirva os nossos interesses; o perigo de suavizar a Palavra de Deus, de forma que ela não seja tão exigente; o perigo de suprimir da Palavra de Deus o que nos incomoda; o perigo de acrescentar algo à Palavra de Deus, atribuindo a Deus ideias e propostas com as quais Deus não tem nada a ver. Olhe-se para caterva de regras, rubricas, interpretações, imposições e proibições que por aí há ou para as supressões de textos bíblicos que não queremos ler por incómodos ou mal interpretados!

Na parte final do texto proposto, o catequista deuteronomista manifesta o seu orgulho pelo facto de Israel ser um Povo especial, o Povo eleito de Deus, facto que se manifesta na presença amorosa e libertadora de Javé junto do seu Povo (“Qual a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto o Senhor nosso Deus sempre que O invocamos?”), no dom da Lei e na “sabedoria” presente nas leis e preceitos que o Senhor deu a Israel, a fim de o conduzir pelos caminhos da história (“Qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?”).

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O texto de São Tiago assumido em 2.ª leitura (Tg 1,17-27) insiste no mesmo tom, o da verdadeira religião: ser fazedores (“poiêtaí) e não apenas ouvintes da Palavra de Deus todos os dias e em todas as circunstâncias, sempre atentos sempre aos mais pobres. Será pela nossa atitude para com os pobres e necessitados que verificamos se somos ou não fazedores da Palavra de Deus.

O autor da carta não desenvolve um raciocínio continuado, mas vai elencando vários aspetos relacionados com a forma como os crentes devem ver e acolher a Palavra de Deus.

Deus oferece continuamente ao homem os seus dons, a fim de lhe proporcionar vida e felicidade. A Palavra de Deus é um dom que o “Pai das luzes” oferece ao homem e se destina a gerar uma nova humanidade.

Os crentes, iluminados pela “Palavra da verdade” que lhes vem de Deus, podem caminhar em segurança em direção à vida plena. Para tanto, devem estar sempre disponíveis para acolher a Palavra de Deus, não podendo fechar-se no seu orgulho e autossuficiência, ignorando as propostas de Deus, mas abrindo o coração para que a Palavra, qual semente lançada por Deus à terra, aí encontre lugar, aí possa lançar raízes e desenvolver-se.

Porém, a escuta e o acolhimento da Palavra têm de conduzir à ação, pela conversão que leve à mudança, ao abandono da vida velha do egoísmo e do pecado, a fim de se abraçar a vida segundo Deus. A escuta da Palavra de Deus também não pode fechar o homem num espiritualismo alienante e estéril, mas tem de conduzir a um compromisso efetivo com a transformação do mundo.

Por fim, o autor da carta descreve a religião autêntica, por oposição à religião vazia, inoperante, morta, dos que falam muito, mas não praticam ações coerentes com as suas palavras: “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo”.

Conectando este versículo com o tema central desta liturgia dominical, podemos dizer que é a escuta atenta da Palavra de Deus que nos lança a ação e no compromisso. A escuta da Palavra de Deus leva o crente a passar duma religião ritual, legalista, externa, para uma religião de efetivo compromisso com a realização do projeto de Deus e com o amor dos irmãos, designadamente os mais vulneráveis, representados, em Tiago, pelos órfãos e viúvas nas suas tribulações.

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O farisaísmo na Igreja leva a que as pessoas tentem servir-se dela para os seus interesses e pompas, a zangar-se quando esse desiderato não é secundado pelos líderes religiosos; leva ao pretenso cumprimento das regras e rubricas, mas ao afastamento dos problemas que atolam as pessoas e a sociedade, para não nos contaminarmos; leva à proscrição dos outros e a mandá-los para o inferno por não pensarem e agirem como nós; leva ao contorno dos preceitos que nos incomodem ou à observância literal dos mesmos sem atingir a profundidade e a exigência de que eles são portadores; leva-nos à obstinação contra a mudança; e leva-nos a desejar que haja pobres e doentes para podermos exercer a “caridade”.  

O farisaísmo na política e na sociedade leva ao desaforo que por aí se vê: propalar os bons princípios, mas fazer leis iníquas, deficientes ou sobre os joelhos; falar de solidariedade, mas fragilizar e descartar (depois de usar); pregar a honestidade e imparcialidade, mas atolar-se na corrupção e no compadrio; enaltecer a verdade, mas fazer propaganda enganosa; falar do bem comum, mas zelar pelo próprio interesse.  

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Finalmente, o Salmo 15 constitui, segundo o Bispo de Lamego, uma “Liturgia de ingresso” no santuário, “uma espécie de liturgia penitencial ou exame de consciência feito à porta do Templo”, para se aquilatar se a pessoa está em condições de entrar no Templo. Com efeito, para alguém poder transpor o limiar do Templo e ir à presença de Deus, tem de preencher uma série de requisitos morais e existenciais, e não apenas de pureza ritual.

As fachadas dos santuários do Egito e da Mesopotâmia tinham inscritas as condições de acesso ao culto. Eram requisitos de natureza ritual ou exterior. E o Talmude lembrava que “o homem não deve subir ao monte do Templo com sapatos ou bolsa ou com os pés cheios de pó, não deve reduzir os átrios do templo a entradas apressadas e, muito menos, cuspir neles.

Ora, o Salmo não se perde em ritualismos exteriores, antes requer comportamentos como o cumprimento de atos éticos e existenciais que envolvam a justiça e a verdade, que evitem a calúnia, o insulto e a usura. Enfim, apela à generosidade.

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Contra o farisaísmo a nossa simplicidade, sinceridade e reta intenção!

2021.08.30 – Louro de Carvalho

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