A Liturgia fez-nos regressar, neste domingo XXII do
Tempo Comum, no Ano B, ao Evangelho de Marcos, em que escutamos, embora com intermitências,
o texto de Mc 7,1-23.
O trecho em apreço divide-se em três partes: Mc
7,1-13, com a diatribe entre Jesus e os fariseus e escribas; Mc 7,14-16, com
Jesus a constituir um novo auditório, chamando a multidão e falando para todos;
e Mc 7,17-23, com Jesus a entrar em casa e a falar para os discípulos.
Os povos antigos e, em particular, os judeus sentiam desconforto
em lidar com misteriosas realidades (quase sempre ligadas à vida e à morte) que não podiam controlar. Por isso,
criaram um conjunto de regras que interditavam ou regulamentavam o contacto tais
realidades (v. g:
cadáveres, sangue, lepra, etc.), para obstar ao suspeito malefício. Entre os judeus, quem infringia tais
normas punha-se em situação de indignidade que o impedia de se aproximar do
mundo divino (o culto, o
Templo) e de integrar a
comunidade. A pessoa ficava “impura”. E, para readquirir o estado de pureza e
poder reintegrar a comunidade, o crente tinha de realizar um rito de
“purificação”, cuidadosamente estipulado na “Lei”.
No tempo de Jesus, as regras da “pureza” tinham sido ampliadas
pelos doutores da Lei, contrariando a advertência de Moisés. Um dos ritos de
purificação consistia na lavagem das mãos antes das refeições, à semelhança do que
a Lei mandava aos sacerdotes de lavarem os pés e as mãos antes de se
aproximarem do altar (cf
Ex 30,17-21). Na ótica
dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições não era um imperativo
de higiene, mas religioso.
Ora, na Galileia, terra em permanente contacto com o mundo
pagão, as normas de “pureza” não eram tão rígidas como em Jerusalém. E os
fariseus, vindos de Jerusalém, vendo como os discípulos de Jesus comiam sem
realizar o gesto ritual de purificação das mãos, referiram, escandalizados, o caso
a Jesus, tentando sondá-Lo para aquilatar da sua ortodoxia face à tradição (“parádôsis”) dos antigos dos antigos.
Para Jesus, a obsessão dos fariseus com os ritos externos de
purificação é sintoma de grave desvio na vivência da religião. Por isso, responde
ao reparo com dureza a partir da Escritura e da práxis dos judeus, censurando a
vivência religiosa que aposta apenas na repetição de práticas formalistas, sem qualquer
preocupação com a vontade de Deus (“este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está
longe de mim”) ou com o
amor aos irmãos.
É um pouco o que sucede hoje. Quantas pessoas não se regalam com
a missa, o batismo, o crisma, a comunhão, o matrimónio para a fotografia. O resto
– zelar pela pureza de alma e de intenção, fazer a vontade de Deus e trabalhar
pelos irmãos, designadamente os mais frágeis – não é da sua conta. Porém, não
cumprindo minimamente os mandamentos, gostam de sobrecarregar os outros com
mais e mais obrigações. Estas pessoas só têm direitos, quando os outros só têm
deveres; elas têm a consciência limpa, mas espreitam todos os furos para fugir
às leis civis e religiosas ou para as ludibriar. Não cumprem do fundo do coração,
mas estão em todas as cerimónias que lhes interessem. E não estarão se tal não
lhes der dinheiro e/ou vaidade e prestígio. Confundem a verdadeira Tradição com
as tradições (cuja origem
ninguém conhece ou cuja recente criação ficou obnubilada pela falta de memória).
Depois, Jesus dirige-se à multidão e ensina que a impureza
não está no que vai pelo homem adentro, mas no que dele sai. E desafia: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça”. Mostra
querer a sério que O entendam.
E, tendo regressado a casa, é interpelado pelos discípulos,
admira-se da sua falta de entendimento e explica: “do interior do homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades,
roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão,
inveja, difamação, orgulho, insensatez; todos estes vícios saem lá de dentro e
tornam o homem impuro”
(Mc 7, 22-23). O dito de
Jesus refere-se a dois “circuitos” diversos: o do estômago, onde entram os
alimentos que se ingerem; e o do coração, donde saem os pensamentos, os
sentimentos e as ações. Os alimentos não são fonte de “impureza”; os
pensamentos e as ações más que saem do coração do homem é que são fonte de
“impureza”.
A verdadeira religião não passa, portanto, pelo cumprimento
de regras externas, que regulam o que o homem come ou não come, mas por uma
autêntica conversão do coração, que leve o homem a deixar a vida velha e a
transformar-se num Homem Novo, que assume e que vive os valores do Reino.
A preocupação com as regras externas de “pureza” é
preocupação estéril, que atinge o essencial, o coração do homem e pode distrair
o crente do essencial, dando-lhe a falsa segurança e a falsa sensação de estar
em dia com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve ser moldar o seu
coração, a fim de que os seus sentimentos, desejos, pensamentos, projetos e decisões
se concretizem, no dia a dia, na escuta atenta dos desafios de Deus e no amor
aos irmãos.
Refere Dom António Couto que, “na parte do discurso
dirigido aos fariseus e escribas (Mc 7,1-13), Jesus pôs a nu o culto vazio e exterior, sem Deus e a vida nova que
d’Ele vem, e só com rodeios humanos”; e que, “na nova vaga agora iniciada (Mc 7,14-16), Jesus chama para junto de si a
multidão, que tinha sido referida pela última vez em Marcos 6,34, e lança dois
imperativos a todos: ‘Escutai-me e compreendei’ (Mc 7,14)”, reclamando “de todos a máxima atenção”. E enuncia “o novo
princípio ético do Novo Testamento, a pureza do coração”: “da fisiologia (lavar as mãos, os jarros…) para a ética assente na limpeza e na
pureza do coração”, pois “são as coisas que saem do homem que tornam o homem
impuro” (Mc 7,15).
Em casa, são os discípulos que pedem explicações (Mc 7,17). Só eles é que estão com Jesus em
casa. E querem apenas “compreender melhor o dizer sapiencial de Jesus à
multidão”. Mas Ele adverte-os, como quem espera uma melhor compreensão. Todavia,
explica, apontando outra vez o dedo ao coração: “Não compreendeis que tudo o que, de fora, entra no homem, não o pode
tornar impuro, porque não entra no seu coração, mas no ventre, e vai para a
fossa?”.
***
Acompanha a proclamação do Evangelho, como 1.ª
leitura, o texto do Livro do Deuteronómio (Dt 4,1-8), que transcreve o discurso de Moisés ao povo reunido à entrada da Terra
Prometida. Este livro é formado, basicamente, por quatro longos discursos de
Moisés no último dia da sua vida. O assunto é insistentemente o mesmo: para
viver feliz na Terra Prometida em que o povo de Israel está para entrar, isto
é, para entrar e viver na Casa de Deus, perto de Deus, Israel tem de escutar e
praticar os mandamentos de Deus.
O Deus que interveio na história para libertar Israel é o
mesmo Deus que agora oferece ao seu Povo leis e preceitos, que Israel deve
acolher e praticar como forma de gratidão ao Deus libertador, que mil vezes
agiu no passado para salvar o seu Povo, e porque as leis e preceitos do Senhor
são o caminho que guia o Povo pela estrada da felicidade e da liberdade. Na verdade,
viver de acordo com as leis e os preceitos do Senhor ajudará o Povo a
concretizar todos os seus sonhos e esperanças – nomeadamente o sonho de se
estabelecer numa terra, escapando aos perigos e incomodidades do nomadismo.
Contudo, Israel deve ter cuidado para não adulterar as leis e
preceitos que Deus lhe propõe. Há sempre o perigo de adaptar a Palavra de Deus,
de forma que ela sirva os nossos interesses; o perigo de suavizar a Palavra de
Deus, de forma que ela não seja tão exigente; o perigo de suprimir da Palavra
de Deus o que nos incomoda; o perigo de acrescentar algo à Palavra de Deus,
atribuindo a Deus ideias e propostas com as quais Deus não tem nada a ver.
Olhe-se para caterva de regras, rubricas, interpretações, imposições e
proibições que por aí há ou para as supressões de textos bíblicos que não queremos
ler por incómodos ou mal interpretados!
Na parte final do texto proposto, o catequista deuteronomista
manifesta o seu orgulho pelo facto de Israel ser um Povo especial, o Povo
eleito de Deus, facto que se manifesta na presença amorosa e libertadora de
Javé junto do seu Povo (“Qual
a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto o Senhor
nosso Deus sempre que O invocamos?”), no dom da Lei e na “sabedoria” presente nas leis e
preceitos que o Senhor deu a Israel, a fim de o conduzir pelos caminhos da
história (“Qual
é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que
hoje vos apresento?”).
***
O texto de São Tiago assumido em 2.ª leitura (Tg 1,17-27) insiste no mesmo tom, o da
verdadeira religião: ser fazedores (“poiêtaí”) e não apenas ouvintes da Palavra de Deus todos os dias e em
todas as circunstâncias, sempre atentos sempre aos mais pobres. Será pela nossa
atitude para com os pobres e necessitados que verificamos se somos ou não
fazedores da Palavra de Deus.
O autor da carta não desenvolve um raciocínio continuado, mas
vai elencando vários aspetos relacionados com a forma como os crentes devem ver
e acolher a Palavra de Deus.
Deus oferece continuamente ao homem os seus dons, a fim de
lhe proporcionar vida e felicidade. A Palavra de Deus é um dom que o “Pai das
luzes” oferece ao homem e se destina a gerar uma nova humanidade.
Os crentes, iluminados pela “Palavra da verdade” que lhes vem
de Deus, podem caminhar em segurança em direção à vida plena. Para tanto, devem
estar sempre disponíveis para acolher a Palavra de Deus, não podendo fechar-se
no seu orgulho e autossuficiência, ignorando as propostas de Deus, mas abrindo
o coração para que a Palavra, qual semente lançada por Deus à terra, aí
encontre lugar, aí possa lançar raízes e desenvolver-se.
Porém, a escuta e o acolhimento da Palavra têm de conduzir à
ação, pela conversão que leve à mudança, ao abandono da vida velha do egoísmo e
do pecado, a fim de se abraçar a vida segundo Deus. A escuta da Palavra de Deus
também não pode fechar o homem num espiritualismo alienante e estéril, mas tem
de conduzir a um compromisso efetivo com a transformação do mundo.
Por fim, o autor da carta descreve a religião autêntica, por
oposição à religião vazia, inoperante, morta, dos que falam muito, mas não
praticam ações coerentes com as suas palavras: “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo
do contágio do mundo”.
Conectando este versículo com o tema central desta liturgia
dominical, podemos dizer que é a escuta atenta da Palavra de Deus que nos lança
a ação e no compromisso. A escuta da Palavra de Deus leva o crente a passar duma
religião ritual, legalista, externa, para uma religião de efetivo compromisso
com a realização do projeto de Deus e com o amor dos irmãos, designadamente os
mais vulneráveis, representados, em Tiago, pelos órfãos e viúvas nas suas
tribulações.
***
O farisaísmo na Igreja leva a que as pessoas tentem servir-se
dela para os seus interesses e pompas, a zangar-se quando esse desiderato não é
secundado pelos líderes religiosos; leva ao pretenso cumprimento das regras e
rubricas, mas ao afastamento dos problemas que atolam as pessoas e a sociedade,
para não nos contaminarmos; leva à proscrição dos outros e a mandá-los para o
inferno por não pensarem e agirem como nós; leva ao contorno dos preceitos que
nos incomodem ou à observância literal dos mesmos sem atingir a profundidade e
a exigência de que eles são portadores; leva-nos à obstinação contra a mudança;
e leva-nos a desejar que haja pobres e doentes para podermos exercer a “caridade”.
O farisaísmo na política e na sociedade leva ao desaforo que
por aí se vê: propalar os bons princípios, mas fazer leis iníquas, deficientes
ou sobre os joelhos; falar de solidariedade, mas fragilizar e descartar (depois de usar); pregar a honestidade e imparcialidade,
mas atolar-se na corrupção e no compadrio; enaltecer a verdade, mas fazer propaganda
enganosa; falar do bem comum, mas zelar pelo próprio interesse.
***
Finalmente, o Salmo 15 constitui, segundo o Bispo de Lamego,
uma “Liturgia de ingresso” no santuário, “uma espécie de liturgia penitencial
ou exame de consciência feito à porta do Templo”, para se aquilatar se a pessoa
está em condições de entrar no Templo. Com efeito, para alguém poder transpor o
limiar do Templo e ir à presença de Deus, tem de preencher uma série de
requisitos morais e existenciais, e não apenas de pureza ritual.
As fachadas dos santuários do Egito e da Mesopotâmia tinham
inscritas as condições de acesso ao culto. Eram requisitos de natureza ritual
ou exterior. E o Talmude lembrava que “o homem não deve subir ao monte do
Templo com sapatos ou bolsa ou com os pés cheios de pó, não deve reduzir os
átrios do templo a entradas apressadas e, muito menos, cuspir neles.
Ora, o Salmo não se perde em ritualismos exteriores, antes
requer comportamentos como o cumprimento de atos éticos e existenciais que
envolvam a justiça e a verdade, que evitem a calúnia, o insulto e a usura. Enfim,
apela à generosidade.
***
Contra o farisaísmo a nossa simplicidade, sinceridade e reta
intenção!
2021.08.30 – Louro de Carvalho
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