À semelhança
do que fez no fim de junho de 2020, quando se estava a trabalhar em regime de
teletrabalho um pouco por todo o país, também agora, com o fim da
obrigatoriedade do teletrabalho, o DN
quis saber se as pessoas que estiveram ou ainda estão nesse regime voltaram ou
vão voltar ao “normal”, o que sentem em relação ao regresso e como veem as
propostas de regulamentação apresentadas no Parlamento.
Tal
regulamentação estava, há muito, a ser pedida pelas centrais sindicais e pela
Confederação do Comércio, mas que
não se cingisse a um quadro de pandemia ou de outro tipo de emergência
sanitária, mas que servisse de quadro para as situações de normalidade,
contemplando diversos problemas que a pandemia acabou por evidenciar. Na
verdade, “com o teletrabalho, as relações entre o trabalho, a família e os
momentos de descanso deterioraram-se, com jornadas mais longas, o que aumenta
os níveis de stresse e ansiedade entre os profissionais”, sintetiza Diego Costa
Pinto, diretor do Marketing Analytics Lab da NOVA IMS.
Por isso, as entidades acima referidas defendem que o
teletrabalho não pode ser imposto, deve ser objeto de negociação coletiva e a
sua regulação deve ser ponderada e não basear-se na realidade resultante da
pandemia.
Segundo o
INE (Instituto
Nacional de Estatística), em final
de junho só 14,9% dos trabalhadores do país se mantinham em teletrabalho.
Porém, na Área Metropolitana de Lisboa, a percentagem era de 28%, seguindo-se o
centro e norte, com 10,8% e 10,6%, respetivamente, Algarve e Alentejo, com 8,7
e 8,2%, respetivamente, Açores, com 5,4%, e Madeira, com 3,5%.
A evolução
destes valores percentuais ainda não era clara no final de julho, quando a obrigatoriedade
do teletrabalho cedeu o lugar à sua recomendação. Talvez isto se clarifique em
setembro. Com efeito, há muitos trabalhadores a voltar aos locais de trabalho e
aquele regime era mais stressante, penoso e caro para os trabalhadores.
Fernanda Câncio,
em artigo de 23 de agosto, aponta que o discurso mudou face a maio de 2020. Então,
a ideia era de que a maioria dos trabalhadores não queria o teletrabalho, que
era apenas um recurso necessário devido à pandemia, mas indesejado pela
normalidade; agora, a postura é “mais temperada e pragmática”: há os
trabalhadores que querem, os que querem menos e os que não querem nada. Muitos dizem
que gostavam de ter um regime misto, uns dias em escritório e outros em casa. E
a CGTP (Confederação
Geral dos Trabalhadores Portugueses) avisa que é
importante não generalizar, pois o que é bom para uns não o é para outros; e é preciso
“alertar para os perigos”. Por isso, sustenta:
“O essencial é que haja acordo entre
trabalhadores e empresas, não discriminação entre os que estão numa e noutra
situação – houve, por exemplo, empresas que quiseram cobrar as falhas
tecnológicas, faltas de luz ou de internet, aos que estavam em teletrabalho –
reversibilidade a todo o tempo, ou seja, se se quiser voltar ao local de
trabalho, tem-se esse direito, compensação pelos gastos, manutenção do subsídio
de refeição (algumas empresas quiseram deixar de pagar) e garantia de exercício
dos direitos sindicais.”.
Sabe-se,
entretanto, que há empresas que decidiram não dar opção para um lado ou para o
outro, quando há trabalhadores que pretendiam, à pala do trabalho remoto,
deslocar-se para o interior ou simplesmente ficar mais por casa. Outros veem
neste regime uma forma de evitar os ambientes difíceis de trabalho, incluindo a
pressão e o assédio. A par destes, há os trabalhadores que preferem regressar
ao local convencional de trabalho por falta de condições em casa, seja pela depauperação
habitacional, seja pelo barulho da vizinhança, seja pela pressão das chefias ou
da clientela, o que redunda num aumento de horas de trabalho, numa vigilância
subtil, num aumento de despesas e em maior stresse. Por outro lado, há o aspeto
psicológico do trabalho remoto aliado ao peso do confinamento, que foi
obrigatório, prolongado e pesado. Assim é que, passados alguns meses em teletrabalho, muitos pediam o regresso ao escritório,
sobretudo jovens no primeiro emprego como trabalhadores-estudantes que vivem em
quartos alugados, sem casa própria, e que se sentiam a viver como reclusos nos
seus quartos.
No setor dos
call centers, a esmagadora maioria das empresas está ainda em teletrabalho, sendo
que a decisão será a de manter a maioria nesse modo. O novo CEO da
Teleperformance anunciou um investimento de mais de seis milhões de euros para
desenvolver tecnologia remota para pelo menos metade da força de trabalho.
Nesse sentido, os operadores estão já a contratar pessoas especificamente para
teletrabalho.
Em muitas empresas, os recursos humanos têm pedido às chefias para ver quem
é quer voltar e muitas pessoas estão nervosas, porque não querem, pois muitas moram
longe por causa dos preços das casas, têm filhos e sentiram que em teletrabalho
não perdem tempo nas deslocações e se sentem mais dedicadas à família.
Descobriram outra forma de viver para lá da conhecida como a única possível. Alguns
pretendem um emprego cuja forma de ocupação seja o trabalho remoto, mesmo que
lhes paguem menos. E outros, que julgavam que seria
adotado a título permanente um modelo híbrido com rotação entre teletrabalho e
presenças no escritório em vez de um regresso à rotina pré-pandemia cinco dias
por semana, sentem-se desiludidos, porque o teletrabalho foi só um sonho e voltam à dura realidade.
Quanto a
compensação pelos gastos acrescidos dos trabalhadores por terem estado quase um
ano e meio a funcionar a partir de casa, uma das propostas constantes nos projetos
apresentados por vários grupos parlamentares (PS, PSD, BE, PCP, CDS/PP, PEV, PAN
e deputada não inscrita Cristina Figueiredo) para a nova regulamentação do teletrabalho, não tem havido grande generosidade
ou justiça.
Apesar de,
em fevereiro, o Governo ter frisado ser do seu entendimento que o empregador
deve, caso não houvesse acordo em contrário, suportar os custos com telefone e
internet em casa do trabalhador, serão muito poucas as empresas que
assumiram essa responsabilidade durante o período em que o trabalho remoto foi
obrigatório. Assim, as avultadas poupanças que lhe corresponderam – em limpeza
e segurança das instalações, assim como em consumos de água e eletricidade –
ficaram integralmente nos cofres empresariais, enquanto os funcionários arcavam
com os custos acrescidos associados à situação. Nem o Estado fez isso à maioria
dos seus trabalhadores. E este foi mais
de um ano de poupanças vindas do bolso dos trabalhadores.
Assim, o
STCC (Sindicato
dos Trabalhadores de Call Center) exige, pelo
menos, 150 euros mensais de compensação, abaixo do que o PCP propõe no seu
projeto: pelo menos 2,5% do IAS (Indexante dos Apoios Sociais) sob a forma de ajudas de custo, o que implicaria
10,97 euros por dia, cerca de 220 euros por mês.
Já o PS
defendeu, pela voz da líder da sua bancada parlamentar, durante a discussão dos
diplomas, que as empresas não têm de assumir “todas e quaisquer despesas” e que
“isso tem de ser matéria de acordo e tem que ser comprovado qual o acréscimo de
despesa por parte do trabalhador”. Isto poderá
significar que, se um trabalhador já tem um contrato de serviço de telefone e
de internet compatível com as necessidades de teletrabalho, a empresa não será
obrigada a contribuir, beneficiando assim de uma despesa em que aquele já
incorria. E poderá implicar, por absurdo, que os trabalhadores tenham de “comprovar”
que passaram a gastar, por exemplo, mais eletricidade e água e que em
contrapartida a empresa diminuiu esses gastos, como se não fosse evidente que
assim é, e receberem apenas depois da comparação feita.
***
O Governo prevê alargar até aos 8 anos a idade dos
menores cujos pais têm direito a requerer a aplicação de regime de
teletrabalho, sem impedimento da entidade patronal, desde que a atividade seja
compatível com o trabalho à distância. A proposta
foi, em tempo, apresentada aos parceiros sociais no âmbito da Agenda de
Trabalho Digno com que o Governo prepara uma série de alterações às leis
laborais, incluindo limitações destinadas a reduzir períodos abusivos de
contratação de trabalho temporário e regras para reconhecimento de relações laborais
com plataformas digitais, excluindo para já as plataformas de transportes.
A medida de alargamento do direito ao teletrabalho para pais com menores
de até 8 anos (atualmente, o direito estende-se a pais com
filhos até três anos) coloca o limite de idade em linha com a determinação da diretiva
europeia sobre conciliação trabalho-vida familiar para que os Estados-membros da UE deem acesso a regimes flexíveis de
trabalho a quem tem menores até 8 anos, mas fica aquém do que Portugal já fixa
para regimes de flexibilidade: o direito a pedir horário flexível estende-se a
pais com filhos até 12 anos.
Foi
anunciado que o Parlamento teria dois meses, a partir do início de maio, quando
a discussão teve lugar, para, em sede da Comissão de Trabalho, construir um
único projeto a partir de todos 10 que desceram sem votação. Mas até agora
nada foi apresentado: presume-se que haverá novidades em setembro. Qualquer que
seja a legislação aprovada, não terá porém efeitos retroativos ao tempo de
teletrabalho obrigatório, de março de 2020 a julho de 2021.
***
Houve novidades
assustadoras no sistema de teletrabalho. Conseguiam as empresas controlar a
produtividade das pessoas em casa e tinham maneira não só de saber, através de
programas informáticos específicos, se as pessoas estavam conectadas (se estavam
ligadas ao sistema informático da empresa) como se
estavam a trabalhar ou não, de modo que o trabalhador, quando trabalhava em
casa, se estivesse dois ou três minutos sem mexer no teclado, tinha de se ligar
de novo, porque o sistema desliga.
O STCC tem
recebido queixas de situações similares ou ainda mais graves. E há indicações
da CNPD (Comissão
Nacional de Proteção de Dados) que proíbem
a utilização de softwares de vigilância incorporados nos sistemas informáticos.
Nalguns casos,
basta o teclado não ser pressionado por
instantes para o trabalhador receber um alerta a perguntar onde está, como se
usam tecnologias que conseguem fazer reconhecimento facial para se saber se
está mais alguém na divisão onde se está a trabalhar. A pretexto da defesa da
proteção de dados dos clientes, as empresas exigem que mais ninguém esteja ali
e estão a desenvolver software próprio para saber se assim é.
Isto é
ilegal, mas um dos problemas é como se fiscaliza isso, já que a ACT (Autoridade
para as Condições de Trabalho) não tem
meios suficientes nem diretivas de procedimento. Outro problema é o que tem
sido referido como “direito a desligar”, havendo reservas quanto a essa
designação, pois “os contratos de trabalho têm horário definido”. Ora, como na
prática esses horários não são respeitados, pelo que há uma solução que está
acautelada no projeto do BE, que é a diferença entre o direito a desligar e o
dever de desconexão. Muitos trabalhadores são pressionados a trabalhar mais
horas, mesmo sem receber compensação, pelo que a obrigação de desconectar deve
ser colocada pela lei do lado do empregador.
Mas há mais
abusos. Há novos contratos para pessoas
que entram agora e que são já de teletrabalho, em que não há lugar a subsídio
de alimentação e se oferecem salários diferentes por funções iguais. Na
maioria dos casos, nos novos contratos não pagam sequer os telefones. Estes
atropelos ocorrem com maior facilidade porque as pessoas estão isoladas dos
colegas, há muitos menos comunicação e camaradagem, não há espírito de corpo. A
nível de lutas e reivindicações é muito mais difícil construir relações de
confiança. É a uberização do setor.
Tendo em
conta a óbvia diferença de forças, os sindicatos defendem a perspetiva de BE e
PCP sobre a nova lei: deve ser impositiva e não deixar tudo em aberto para a “negociação”,
porque se assim for, como se verifica, as empresas tenderão a alijar a maior
parte dos custos para cima do trabalhador, o que é injusto.
E há ainda a
possibilidade de que empresas permitam a passagem para teletrabalho integral,
ou que os trabalhadores se convertam a essa modalidade, ao proporem, nos termos
da lei, um contrato de teletrabalho aos que já têm um vínculo laboral,
chantageando-os, que aceitem um contrato completamente novo, interrompendo o
anterior, o que dará perda de antiguidade. Por isso, segundo o STCC, “tem de ficar muito claro na lei que o contrato de teletrabalho não
interrompe o contrato existente”.
Há quem diga
que, apesar de esta situação apresentar
muitos desafios, o que existia anteriormente à pandemia não vai voltar. Com efeito,
o capital tem muita força e a vontade de um número significativo das pessoas é
ficar em teletrabalho, que está a ser endeusado. Por isso, tem de haver salvaguardas,
mas paira o receio de que as melhores propostas que se veem nos projetos de lei
fiquem bloqueadas e não passem.
E
é, finalmente, de advertir que muita da atividade não pode ser desenvolvida permanentemente
em regime de teletrabalho. Tal é o caso onde se joga necessariamente o dado
humano, por exemplo na educação e ensino, na saúde, na ocupação dos tempos
livres. E, por outro lado, os trabalhadores não podem ceder à tentação da perda
da camaradagem e da solidariedade, devendo, ao invés, apostar na luta pelo
trabalho com direitos, um trabalho digno, mesmo que a forma de viver seja
outra.
Há
muita mais vida para lá do teletrabalho!
2021.08.24 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário