quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Outra forma de viver para lá da que sentíamos como única possível

 

À semelhança do que fez no fim de junho de 2020, quando se estava a trabalhar em regime de teletrabalho um pouco por todo o país, também agora, com o fim da obrigatoriedade do teletrabalho, o DN quis saber se as pessoas que estiveram ou ainda estão nesse regime voltaram ou vão voltar ao “normal”, o que sentem em relação ao regresso e como veem as propostas de regulamentação apresentadas no Parlamento.

Tal regulamentação estava, há muito, a ser pedida pelas centrais sindicais e pela Confederação do Comércio, mas que não se cingisse a um quadro de pandemia ou de outro tipo de emergência sanitária, mas que servisse de quadro para as situações de normalidade, contemplando diversos problemas que a pandemia acabou por evidenciar. Na verdade, “com o teletrabalho, as relações entre o trabalho, a família e os momentos de descanso deterioraram-se, com jornadas mais longas, o que aumenta os níveis de stresse e ansiedade entre os profissionais”, sintetiza Diego Costa Pinto, diretor do Marketing ​​​​​​​Analytics Lab da NOVA IMS.

Por isso, as entidades acima referidas defendem que o teletrabalho não pode ser imposto, deve ser objeto de negociação coletiva e a sua regulação deve ser ponderada e não basear-se na realidade resultante da pandemia.

Segundo o INE (Instituto Nacional de Estatística), em final de junho só 14,9% dos trabalhadores do país se mantinham em teletrabalho. Porém, na Área Metropolitana de Lisboa, a percentagem era de 28%, seguindo-se o centro e norte, com 10,8% e 10,6%, respetivamente, Algarve e Alentejo, com 8,7 e 8,2%, respetivamente, Açores, com 5,4%, e Madeira, com 3,5%.

A evolução destes valores percentuais ainda não era clara no final de julho, quando a obrigatoriedade do teletrabalho cedeu o lugar à sua recomendação. Talvez isto se clarifique em setembro. Com efeito, há muitos trabalhadores a voltar aos locais de trabalho e aquele regime era mais stressante, penoso e caro para os trabalhadores.

Fernanda Câncio, em artigo de 23 de agosto, aponta que o discurso mudou face a maio de 2020. Então, a ideia era de que a maioria dos trabalhadores não queria o teletrabalho, que era apenas um recurso necessário devido à pandemia, mas indesejado pela normalidade; agora, a postura é “mais temperada e pragmática”: há os trabalhadores que querem, os que querem menos e os que não querem nada. Muitos dizem que gostavam de ter um regime misto, uns dias em escritório e outros em casa. E a CGTP (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses) avisa que é importante não generalizar, pois o que é bom para uns não o é para outros; e é preciso “alertar para os perigos”. Por isso, sustenta:

O essencial é que haja acordo entre trabalhadores e empresas, não discriminação entre os que estão numa e noutra situação – houve, por exemplo, empresas que quiseram cobrar as falhas tecnológicas, faltas de luz ou de internet, aos que estavam em teletrabalho – reversibilidade a todo o tempo, ou seja, se se quiser voltar ao local de trabalho, tem-se esse direito, compensação pelos gastos, manutenção do subsídio de refeição (algumas empresas quiseram deixar de pagar) e garantia de exercício dos direitos sindicais.”.

Sabe-se, entretanto, que há empresas que decidiram não dar opção para um lado ou para o outro, quando há trabalhadores que pretendiam, à pala do trabalho remoto, deslocar-se para o interior ou simplesmente ficar mais por casa. Outros veem neste regime uma forma de evitar os ambientes difíceis de trabalho, incluindo a pressão e o assédio. A par destes, há os trabalhadores que preferem regressar ao local convencional de trabalho por falta de condições em casa, seja pela depauperação habitacional, seja pelo barulho da vizinhança, seja pela pressão das chefias ou da clientela, o que redunda num aumento de horas de trabalho, numa vigilância subtil, num aumento de despesas e em maior stresse. Por outro lado, há o aspeto psicológico do trabalho remoto aliado ao peso do confinamento, que foi obrigatório, prolongado e pesado. Assim é que, passados alguns meses em teletrabalho, muitos pediam o regresso ao escritório, sobretudo jovens no primeiro emprego como trabalhadores-estudantes que vivem em quartos alugados, sem casa própria, e que se sentiam a viver como reclusos nos seus quartos.

No setor dos call centers, a esmagadora maioria das empresas está ainda em teletrabalho, sendo que a decisão será a de manter a maioria nesse modo. O novo CEO da Teleperformance anunciou um investimento de mais de seis milhões de euros para desenvolver tecnologia remota para pelo menos metade da força de trabalho. Nesse sentido, os operadores estão já a contratar pessoas especificamente para teletrabalho.

Em muitas empresas, os recursos humanos têm pedido às chefias para ver quem é quer voltar e muitas pessoas estão nervosas, porque não querem, pois muitas moram longe por causa dos preços das casas, têm filhos e sentiram que em teletrabalho não perdem tempo nas deslocações e se sentem mais dedicadas à família. Descobriram outra forma de viver para lá da conhecida como a única possível. Alguns pretendem um emprego cuja forma de ocupação seja o trabalho remoto, mesmo que lhes paguem menos. E outros, que julgavam que seria adotado a título permanente um modelo híbrido com rotação entre teletrabalho e presenças no escritório em vez de um regresso à rotina pré-pandemia cinco dias por semana, sentem-se desiludidos, porque o teletrabalho foi só um sonho e voltam à dura realidade.

Quanto a compensação pelos gastos acrescidos dos trabalhadores por terem estado quase um ano e meio a funcionar a partir de casa, uma das propostas constantes nos projetos apresentados por vários grupos parlamentares (PS, PSD, BE, PCP, CDS/PP, PEV, PAN e deputada não inscrita Cristina Figueiredo) para a nova regulamentação do teletrabalho, não tem havido grande generosidade ou justiça.

Apesar de, em fevereiro, o Governo ter frisado ser do seu entendimento que o empregador deve, caso não houvesse acordo em contrário, suportar os custos com telefone e internet em casa do trabalhador, serão muito poucas as empresas que assumiram essa responsabilidade durante o período em que o trabalho remoto foi obrigatório. Assim, as avultadas poupanças que lhe corresponderam – em limpeza e segurança das instalações, assim como em consumos de água e eletricidade – ficaram integralmente nos cofres empresariais, enquanto os funcionários arcavam com os custos acrescidos associados à situação. Nem o Estado fez isso à maioria dos seus trabalhadores. E este foi mais de um ano de poupanças vindas do bolso dos trabalhadores.

Assim, o STCC (Sindicato dos Trabalhadores de Call Center) exige, pelo menos, 150 euros mensais de compensação, abaixo do que o PCP propõe no seu projeto: pelo menos 2,5% do IAS (Indexante dos Apoios Sociais) sob a forma de ajudas de custo, o que implicaria 10,97 euros por dia, cerca de 220 euros por mês.

Já o PS defendeu, pela voz da líder da sua bancada parlamentar, durante a discussão dos diplomas, que as empresas não têm de assumir “todas e quaisquer despesas” e que “isso tem de ser matéria de acordo e tem que ser comprovado qual o acréscimo de despesa por parte do trabalhador”. Isto poderá significar que, se um trabalhador já tem um contrato de serviço de telefone e de internet compatível com as necessidades de teletrabalho, a empresa não será obrigada a contribuir, beneficiando assim de uma despesa em que aquele já incorria. E poderá implicar, por absurdo, que os trabalhadores tenham de “comprovar” que passaram a gastar, por exemplo, mais eletricidade e água e que em contrapartida a empresa diminuiu esses gastos, como se não fosse evidente que assim é, e receberem apenas depois da comparação feita.

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O Governo prevê alargar até aos 8 anos a idade dos menores cujos pais têm direito a requerer a aplicação de regime de teletrabalho, sem impedimento da entidade patronal, desde que a atividade seja compatível com o trabalho à distância. A proposta foi, em tempo, apresentada aos parceiros sociais no âmbito da Agenda de Trabalho Digno com que o Governo prepara uma série de alterações às leis laborais, incluindo limitações destinadas a reduzir períodos abusivos de contratação de trabalho temporário e regras para reconhecimento de relações laborais com plataformas digitais, excluindo para já as plataformas de transportes.

A medida de alargamento do direito ao teletrabalho para pais com menores de até 8 anos (atualmente, o direito estende-se a pais com filhos até três anos) coloca o limite de idade em linha com a determinação da diretiva europeia sobre conciliação trabalho-vida familiar para que os Estados-membros da UE deem acesso a regimes flexíveis de trabalho a quem tem menores até 8 anos, mas fica aquém do que Portugal já fixa para regimes de flexibilidade: o direito a pedir horário flexível estende-se a pais com filhos até 12 anos.

Foi anunciado que o Parlamento teria dois meses, a partir do início de maio, quando a discussão teve lugar, para, em sede da Comissão de Trabalho, construir um único projeto a partir de todos 10 que desceram sem votação. Mas até agora nada foi apresentado: presume-se que haverá novidades em setembro. Qualquer que seja a legislação aprovada, não terá porém efeitos retroativos ao tempo de teletrabalho obrigatório, de março de 2020 a julho de 2021.

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Houve novidades assustadoras no sistema de teletrabalho. Conseguiam as empresas controlar a produtividade das pessoas em casa e tinham maneira não só de saber, através de programas informáticos específicos, se as pessoas estavam conectadas (se estavam ligadas ao sistema informático da empresa) como se estavam a trabalhar ou não, de modo que o trabalhador, quando trabalhava em casa, se estivesse dois ou três minutos sem mexer no teclado, tinha de se ligar de novo, porque o sistema desliga.  

O STCC tem recebido queixas de situações similares ou ainda mais graves. E há indicações da CNPD (Comissão Nacional de Proteção de Dados) que proíbem a utilização de softwares de vigilância incorporados nos sistemas informáticos.

Nalguns casos, basta o teclado não ser pressionado por instantes para o trabalhador receber um alerta a perguntar onde está, como se usam tecnologias que conseguem fazer reconhecimento facial para se saber se está mais alguém na divisão onde se está a trabalhar. A pretexto da defesa da proteção de dados dos clientes, as empresas exigem que mais ninguém esteja ali e estão a desenvolver software próprio para saber se assim é.

Isto é ilegal, mas um dos problemas é como se fiscaliza isso, já que a ACT (Autoridade para as Condições de Trabalho) não tem meios suficientes nem diretivas de procedimento. Outro problema é o que tem sido referido como “direito a desligar”, havendo reservas quanto a essa designação, pois “os contratos de trabalho têm horário definido”. Ora, como na prática esses horários não são respeitados, pelo que há uma solução que está acautelada no projeto do BE, que é a diferença entre o direito a desligar e o dever de desconexão. Muitos trabalhadores são pressionados a trabalhar mais horas, mesmo sem receber compensação, pelo que a obrigação de desconectar deve ser colocada pela lei do lado do empregador.

Mas há mais abusos. Há novos contratos para pessoas que entram agora e que são já de teletrabalho, em que não há lugar a subsídio de alimentação e se oferecem salários diferentes por funções iguais. Na maioria dos casos, nos novos contratos não pagam sequer os telefones. Estes atropelos ocorrem com maior facilidade porque as pessoas estão isoladas dos colegas, há muitos menos comunicação e camaradagem, não há espírito de corpo. A nível de lutas e reivindicações é muito mais difícil construir relações de confiança. É a uberização do setor.

Tendo em conta a óbvia diferença de forças, os sindicatos defendem a perspetiva de BE e PCP sobre a nova lei: deve ser impositiva e não deixar tudo em aberto para a “negociação”, porque se assim for, como se verifica, as empresas tenderão a alijar a maior parte dos custos para cima do trabalhador, o que é injusto.

E há ainda a possibilidade de que empresas permitam a passagem para teletrabalho integral, ou que os trabalhadores se convertam a essa modalidade, ao proporem, nos termos da lei, um contrato de teletrabalho aos que já têm um vínculo laboral, chantageando-os, que aceitem um contrato completamente novo, interrompendo o anterior, o que dará perda de antiguidade. Por isso, segundo o STCC, “tem de ficar muito claro na lei que o contrato de teletrabalho não interrompe o contrato existente”.

Há quem diga que, apesar de esta situação apresentar muitos desafios, o que existia anteriormente à pandemia não vai voltar. Com efeito, o capital tem muita força e a vontade de um número significativo das pessoas é ficar em teletrabalho, que está a ser endeusado. Por isso, tem de haver salvaguardas, mas paira o receio de que as melhores propostas que se veem nos projetos de lei fiquem bloqueadas e não passem.

E é, finalmente, de advertir que muita da atividade não pode ser desenvolvida permanentemente em regime de teletrabalho. Tal é o caso onde se joga necessariamente o dado humano, por exemplo na educação e ensino, na saúde, na ocupação dos tempos livres. E, por outro lado, os trabalhadores não podem ceder à tentação da perda da camaradagem e da solidariedade, devendo, ao invés, apostar na luta pelo trabalho com direitos, um trabalho digno, mesmo que a forma de viver seja outra.

Há muita mais vida para lá do teletrabalho!

2021.08.24 – Louro de Carvalho

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