segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O claro e premente desafio aos aliados de Deus e seguidores de Jesus

 

Aparece com toda a nitidez logo no Antigo Testamento com o líder Josué (Js 24,1-2a.15-17.18b). Estando todas as tribos de Israel em Siquém reunidas à volta do líder, Josué elenca os momentos cruciais da fantástica história da salvação, mostrando ao Povo como Javé é o Deus em quem se pode confiar, pois as suas ações salvadoras em prol de Israel são prova mais que suficiente do seu poder e fidelidade (cf Js 24,2-13). Depois, insta os representantes das tribos presentes a tirarem as consequências e a optarem entre servir o Senhor que libertou Israel da opressão, o guiou pelo deserto e o introduziu na Terra Prometida, ou servir os deuses dos mesopotâmicos e os dos amorreus, adiantando que ele (Josué) e a sua família já escolheram servir o Senhor.

Josué abre o tempo das decisões em que “servir” é a palavra-chave, que se enuncia por 14 vezes. “Servir ou não servir eis a questão colocada por Josué ao povo nestes termos: “Se não vos agrada servir o Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir”.

A este desafio e seguindo o exemplo do líder, o Povo respondeu com a intenção firme de servir o Senhor – “Nós também serviremos o Senhor” –, em resposta à sua ação libertadora e à sua proteção ao longo da caminhada pelo deserto, abjurando do culto e do serviço aos outros deuses.

Eis uma opção que não decorre de qualquer das obrigações impostas a grupos de escravos como era usual naqueles tempos, nos povos vizinhos, mas como opção livre assumida por pessoas – um povo – que tinham experiência viva de encontro com Deus e que sabem que é só Nele que se realizam e alcançam a felicidade. Enfim, Israel verificou, sem quaisquer dúvidas, que só em Deus pode encontrar a liberdade e a vida.

Belo aperitivo que a 1.ª leitura do XXI domingo do Tempo Comum no Ano B nos oferece para a assunção da perícopa evangélica desta dominga!

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A sexta e última parte do capítulo 6.º do 4.º Evangelho contempla os últimos versículos (Jo 6,60-69) e estende a discussão havida com a multidão (Jo 6,25-40) e os judeus (Jo 6,41-58) com Jesus, também aos discípulos em geral, que entram em cena em João 6,60, para saírem, em breve e em, murmúrio, para fora da ação de Jesus, em João 6,66, sendo então a vez de Pedro tomar posição firme em nome dos Doze (Jo 6,67-69).

É de recordar que os segmentos que escandalizaram os judeus foram:

Eu sou o pão vivo que desceu do céu: se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que Eu darei é a minha carne pela vida do mundo. (…) Se não comerdes a carne do Filho do Homem e beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem vida eterna e Eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne é verdadeiro alimento e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e Eu nele. Assim como o Pai que vive me enviou e Eu vivo pelo Pai, também quem me come viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu. Não é como o que os vossos pais comeram: eles morreram; quem come este pão viverá para sempre.” (Jo 6, 51.53-58).

Assim é que eles altercavam entre si, dizendo: “Como pode este dar-nos a sua carne a comer?”:

Agora, os discípulos, como refere Dom António Couto (“O bisturi da Palavra de Deus”, in “Mesa de Palavras”), numa espécie de imbricação, retomam a atitude dos judeus, que os precederam: também murmuram (“goggýzô”) contra o escândalo da origem divina de Jesus (Jo 6,61) e classificam como duro (“sklêrós”) e intragável (Jo 6,60) o discurso de Jesus sobre a sua carne como vida doada em alimento para a vida verdadeira. Além disso, muitos dos discípulos abandonam Jesus (Jo 6,66), compaginando-se como antidiscípulos e excluindo-se do povo de Deus, que pretendeu, no deserto voltar para trás.

No caso dos discípulos e de forma diferente da multidão e dos judeus, é Jesus quem pergunta e dá a resposta. Os discípulos apenas murmuram, não ouvem, não respondem e vão-se embora. Porém, no caso dos Doze, Jesus faz a pergunta e é Pedro que, em nome dos Doze e, ao invés de todos os grupos anteriores, não apenas responde, mas profere uma verdadeira profissão de fé (Jo 6,68-69). Num primeiro momento, Pedro responde com uma pergunta, seguida duma breve confissão de fé: Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna!(“Kýrie, prós tína apeleusómetha; rhêmata zôês aiôníou ékheis”: Jo 6,68). E, num segundo momento, logo a seguir, atalha fazendo uma confissão de fé bem explícita: E nós acreditámos e sabemos que Tu és o Santo de Deus(“kaì hêmeîs pepisteúkamen kaì egnôkamen hóti sy eî ho hágios toû Theoû”: Jo 6,69).

Este capítulo VI do Evangelho de João, começado em festa (pela condivisão dos pães e dos peixinhos) e acabado em drama (Jesus abandonado pela multidão e por muitos discípulos após forte murmuração) e que agora atinge o seu ápice, mostra as diversas reações aos acontecimentos de Jesus, que constituem a chama “crise galilaica” e, dando conta duma querela nos alvores da Igreja primitiva, como diz o Cónego João António Teixeira, antecipam as crises sucessivas que vão surgir na Igreja. Está sempre em causa a grande decisão de fé pró ou contra a humildade da Incarnação, da Cruz e da Eucaristia.

São de reter algumas das considerações que o susodito Cónego João António Teixeira tece sobre esta perícopa num texto sob o título Uma «querela» entre a Igreja e Jesus”.

“O Evangelho coloca à nossa frente dois grupos de discípulos, com opções distintas. Um grupo está preso pela lógica do mundo e prensado pelos bens materiais, pelo poder e pela ambição. O outro grupo mostra-se disponível para seguir Jesus, sabendo que só Jesus tem palavras de vida eterna” (cf Jo 6, 68).

“Este inteiro capítulo é uma preciosa lição de pastoral e de vivência cristã. Ele ajuda-nos a fazer frente a uma espécie de Cristianismo ‘à la carte’, que está muito em voga. Não falta, com efeito, quem aplauda o que lhe agrada e conteste o que o incomoda. Aliás, o próprio Jesus já tinha denunciado que muitos O procuravam não por causa do milagre, mas por causa de lhes ter matado a fome (cf Jo 6, 26). Ficavam-se pelo significante, sem atender ao significado.”.

“A mensagem de Cristo não é para nossa satisfação, mas para a nossa conversão. Ele convida-nos a fazer a vontade de Deus e não a exigir que Deus faça a nossa vontade. Há dois mil anos, muitos aplaudiram Jesus quando Ele lhes deu o pão, mas afastaram-se de Jesus quando Ele lhes explicou o significado daquele pão. (…) A nossa lógica pode ser muito diferente da lógica de Cristo. De facto, dizer ‘a Minha Carne é verdadeira comida e o Meu Sangue é verdadeira bebida’ (Jo 6, 61) parece não ter lógica. Só que um discípulo é chamado a seguir não a sua lógica, mas a lógica de Cristo.”.

“Nós, hoje, somos chamados a reproduzir as palavras e os comportamentos de Cristo. E, por isso, temos, como Cristo, de estar preparados para o aplauso e para a contestação. (…) O que Jesus nos mostra é que não nos devemos deslumbrar com o aplauso nem deprimir com a contestação. Se adulteramos a mensagem para evitar a contestação e obter o aplauso, não estamos a ser fiéis. Se Jesus quisesse ser aplaudido, é natural que recuasse no Seu discurso. (…) Pelo contrário, até os Doze mais próximos são postos à vontade: ‘Também vós quereis ir embora?(Jo 6, 67).”: “Mê kaì hymeîs thélete hypágein;”.

Na verdade, o Evangelho não é uma questão de folclore em que até é giro participar, nem a Igreja é algo de que se use como peça de adorno ou como bazar donde possamos extrair elementos que engrossem as nossas vaidades ou satisfações pessoais, sociais e políticas. Trata-se de estarmos aptos e disponíveis para o serviço e de seguir Cristo por inteiro, não a meio gás ou de o pintar a meias tintas, pois Ele, que não tem medo da solidão, não retira uma vírgula do seu discurso nem se afasta um milímetro do seu percurso. Perante esta postura inabalável de Jesus, só nos resta o abandono ou o fortalecido e inabalável seguimento à laia de Simão Pedro.

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Dom António Couto recorda que, na Carta aos Efésios, “o ‘serviço’ chama-se amor” e que a tomada como 2.ª leitura desta dominga (Ef 5,21-32), “constitui um extrato de um dos ‘Códigos familiares’, que se encontram nas chamadas Cartas editadas de S. Paulo”, as quais “remontam a Paulo”, mas, editadas após a sua morte, “já não traduzem o esforço evangelizador patente” nas autênticas, antes “procuram levar o Evangelho a situações concretas da vida, como sejam a família e o trabalho”. O texto em referência releva a relação marido-esposa, para “retratar a relação sublime e salutar Cristo-Igreja”. Mas os subsequentes segmentos textuais mostram o Evangelho incarnado a “renovar as relações pais-filhos e patrões-empregados”.

Esta perspetiva faz desviar a atenção do espartilho da limitativa submissão feminina cultural circunstancial, muito presente nas sociedades ao longo do tempo – e ainda hoje – para nos centrarmos no amor mútuo e na entrega doante de Cristo pela sua Igreja, sendo que, tal como diz muito bem João António Teixeira, “a Igreja não é cabeça de Cristo, Cristo é que é a cabeça da Igreja”. Assim, o susodito Cónego João António Teixeira realça:

São Paulo garante que a opção por Cristo tem consequências até na vida familiar. A família tem de ser como que a primeira Igreja, a Igreja doméstica. Com a sua união, com a sua comunhão de vida, com o seu amor, a família cristã é chamada a ser sinal – e poderoso reflexo – da união de Cristo com a Sua Igreja. Esta união de Cristo com a Igreja assenta numa base muito sólida. É Cristo que conduz a Igreja, não é a Igreja que conduz Cristo.”.

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Por tudo isto, o grande e novo desafio que Deus faz à Igreja dos discípulos por meio de Jesus postula que despertemos como e com Simão Pedro e digamos convictamente: “Para quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna.”. Na verdade, só Ele é o Caminho, só Ele é a Porta do Reino.

E, assim, como ensina Dom António Couto, o canto do Salmo 34 far-nos-á perceber que “Deus atende sempre com solicitude os gritos de socorro do justo perseguido (v. 16.18), ao mesmo tempo que apaga da terra a memória dos malfeitores” (v. 17.22). É, pois, bom e salutar ver e saborear como o Senhor é bom e bendizê-Lo a toda a hora e em toda a parte, como prova de que aceitamos com gosto o desafio de Deus e do seu Cristo.

2021.08.22 – Louro de Carvalho

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