domingo, 8 de agosto de 2021

Ainda temos um longo caminho a percorrer

 

A Liturgia da Palavra do XIX domingo do Tempo Comum no Ano B abre com um trecho que relata um significativo pormenor da vida de Elias (1Rs 19,4-8) a mostrar que o profeta, como qualquer ser humano, precisa de alimento para reparar as forças e aguentar as caminhadas que lhe é dado fazer. Um belo aperitivo para a leitura o trecho evangélico desta dominga!

Elias profetiza em Israel (Reino do Norte) no século IX a.C., no reinado de Acab (873-853 a.C.) e ainda no de Ocozias (853-852 a.C.), quando a fé javista é ofuscada pela preponderância dos deuses estrangeiros na cultura religiosa de Israel pelo facto de os decisores quererem o intercâmbio político, cultural e comercial. O profeta aparece como porta-voz dos que recusam a coexistência de Javé e Baal na fé israelita, chegando a desafiar os profetas de Baal para um duelo religioso que redundou no massacre de 400 profetas de Baal no monte Carmelo (cf 1Rs 18), episódio que serve de apresentação da luta entre os fiéis e os que abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros povos. Por outro lado, Elias defende a Lei em todas as vertentes apoia os pobres na sua luta sem tréguas contra a aristocracia e comerciantes todo-poderosos que subvertem a seu gosto as leis e os mandamentos.

Após o predito massacre dos profetas de Baal, Acab e a sua esposa fenícia juraram matar Elias, que fugiu para o sul para salvar a vida e, chegado à zona de Beer-Sheba, internou-se no deserto.

É este o contexto do episódio relatado no trecho assumido para a 1.ª leitura.

Elias sente-se abatido e solitário, face à perseguição de que é alvo, e convicto de que tem a sua missão condenada ao fracasso. O pedido que faz a Deus no sentido de lhe dar a morte (1Rs 19,4) reflete o seu desânimo, desilusão e angústia – o que evidencia que o profeta, como homem que é, está sujeito à experiência da fragilidade e da finitude. Contudo, Deus não está longe nem abandona o profeta. Antes se revela a solicitude amorosa de Deus, que lhe dá, através do anjo, “pão cozido sobre pedras quentes e uma bilha de água(1Rs 19,6). E isto sucede por duas vezes: a primeira, dando azo a que o profeta fique saciado e, descansando, recobre forças; e a segunda, para que aguente a viagem, pois ainda tem um longo caminho a percorrer.

Os profetas de hoje como os de ontem não estão perdidos nem abandonados por Deus, mesmo que incompreendidos e perseguidos pelos homens. Deus está junto dos seus e cuida deles dando-lhes o alimento e o alento para serem fiéis à missão. Nunca anula a missão dos profetas, nem elimina os perseguidores: dá, antes, ao profeta a força para continuar a sua peregrinação.

Alimentado pela força de Deus, o profeta caminha durante “40 dias e 40 noites até ao monte de Deus, o Horeb” (1Rs 19,8). A referência ao tempo da caminhada alude à estada de Moisés na montanha sagrada (cf Ex 24,18), onde, no encontro com Deus, recebeu as tábuas da Lei, bem como à caminhada do Povo durante 40 anos pelo deserto até alcançar a Terra Prometida. Esta peregrinação ao Horeb, o monte da Aliança, é uma peregrinação às origens de Israel como Povo de Deus. Perseguido e incompreendido, Elias precisa de revitalizar a fé e reencontrar o sentido da missão como profeta do Senhor e defensor da Aliança que Deus ofereceu ao Povo no Horeb.

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O trecho evangélico (Jo 6,41-51) para cuja leitura e meditação e o episódio do alimento de Elias nos abriu o apetite insere-se no Livro dos Sinais de João (cf Jo 4,1-11,56), que nos apresenta cinco catequeses sobre Jesus, usando em cada uma, diferentes símbolos para nos dizer que Jesus é o Messias que veio ao mundo para cumprir o desígnio do Pai e fazer surgir o Homem Novo. Cada uma destas catequeses sobre Jesus – “a água que dá a vida” (cf Jo 4,1-5,47); “o verdadeiro pão que sacia todas as fomes” (cf Jo 6,1-7,53); “a luz que liberta o homem das trevas” (cf Jo 8,12-9,41); “o Belo Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas” (cf Jo 10,1-42); “a vida e ressurreição para o mundo” (cf Jo 11,1-56) – são seguidas do respetivo momento de oposição dos judeus à vida nova que Jesus nos traz. Repare-se que “judeus” no texto joânico não significa apenas os habitantes da Judeia ou os dali originários, mas todos os que se sentem autossatisfeitos com a velha Escritura, não precisando de novas pistas de vida e fé. 

Assim, João prepara os leitores para o que sucederá em Jerusalém no final da caminhada histórica de Jesus: a morte na cruz. O trecho em referência apresenta-nos uma história de confronto entre Jesus e os judeus. No fim do discurso explicativo da condivisão dos pães e dos peixinhos, proferido na sinagoga de Cafarnaum (cf Jo 6,22-40), Jesus propôs-Se como o Pão da vida (“ho ártos têis zoêis”) e instou os interlocutores a aderirem à sua Pessoa e doutrina para não mais terem fome. O texto de hoje destaca, na sequência desse episódio, a murmuração dos judeus a propósito das palavras de Jesus e descreve a controvérsia subsequente.

Dom António Couto situa o trecho no horizonte uniforme e mais largo de João 6,25-59, “ritmado pelo esquema pergunta-resposta”, saindo as perguntas da boca da multidão não identificada ou dos judeus, a que se seguem as respostas de Jesus. Seguindo este ritmo, o texto vem organizado em 5 pequenas secções: Jo 6,25-29; Jo 6,30-33; Jo 6,34-40; Jo 6,41-51; e Jo 6,52-59. Assim, o trecho desta dominga forma a quarta pequena secção, sendo que “a multidão” (“ho ókhlos) não identificada que até agora seguia Jesus (Jo 6,2.5.22.24) súbita e inexplicavelmente se transforma em “os judeus” (“hoi ioudaîoi). E, com esta transformação, cresce a hostilidade e a agressividade contra Jesus, traduzida pelo verbo “murmurar” (“goggýzô), a lembrar a postura dos Israelitas no deserto (Ex 15,24; 16,2.7-8; 17,3; Nm 14,2.27.29.36). A murmuração (“goggysmós) é a rebelião interior, assente na insatisfação, desconfiança, inveja, ciúme e azedume contra as pessoas e contra Deus, no caso, contra Jesus. Esta murmuração contra Jesus radica no facto de eles conhecerem bem o histórico de Jesus, o pai José, o carpinteiro, e a mãe Maria, toda a família, as suas raízes humanas humildes, e de não poderem, na sua ótica, conciliar estes dados muito humanos com a sua origem divina (Jo 6,42-43). Por isso, os interlocutores de Jesus não aceitam que se apresente como o Pão que desceu do Céu. Em consequência, não podem aceitar que Se arrogue a pretensão de trazer aos homens a vida de Deus.

É de anotar que a murmuração consiste em falar mal de alguém, não diretamente, tu a tu, mas em 3.ª pessoa: “Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: Eu desci do céu (“ek toû ouranoû katabébêka”)?” (Jo 6,42).

Os judeus dizem conhecer o pai de Jesus. Mas Jesus responde apelando ao fim da murmuração, “Não murmureis entre vós(Jo 6,43) e apontando o verdadeiro Pai, que os judeus não conhecem, pois “Ninguém pode vir a Mim (“eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o atrair” (“élkô) (Jo 6,44). Jesus põe termo à murmuração abrindo um discurso novo, pessoal, tu a tu. “Vir a Mim” subverte o “falar de Mim”. Mas o “Vir a Mim” é obra, não dos homens, que não o sabem nem podem fazer por conta própria, mas de Deus (“Todos serão ensinados por Deus” – cf Is 54,13). E Jesus conclui: “Todo aquele que escutou do Pai e aprendeu vem a Mim(Jo 6,45). Ora, enquanto os judeus falam do pai de Jesus, José, Jesus fala do seu verdadeiro Pai, Deus. Aponta o único Pai que nos leva a Jesus, o pão vivo descido do céu, que é a sua carne, que se toma na Eucaristia, bem como a sua identidade e forma de viver. Só identificando-nos com Jesus, aderindo à sua forma de viver, fazendo nossa a sua vida, deixamos entrar em nós a vida eterna. O 4.º Evangelho, que nos ensina que é Jesus que explica o Pai (Jo 1,18) e que conduz ao Pai (Jo 14,6), aqui ensina que é o Pai que explica Jesus e que a Jesus nos conduz. Por isso, em vez de discutir a sua origem divina, Jesus denuncia o que subjaz à atitude negativa dos judeus face à proposta que lhes faz: não têm o coração aberto ao dom de Deus e recusam-se a aceitar os seus desafios. O Pai apresenta Jesus e pede que O vejam como o pão de Deus para dar vida ao mundo, mas os judeus, instalados nas suas certezas e seguranças, acomodados ao vigente sistema religioso ritualista e estéril, decidiram que não têm fome de vida e não precisam do pão de Deus. Não estão dispostos, a acolher Jesus, “o pão que desceu do céu(Jo 6,43-46), pois estão instalados no orgulho e autossuficiência. Porém, àqueles que O aceitam como “o pão de Deus que desceu do céu”, Jesus traz a vida eterna. Ele “é”, de facto, o “pão” que sacia a fome de vida do homem (“Eu sou o pão da vida” – Jo 6,48). A expressão “Eu sou(“egô eimi”) é a fórmula de revelação (é o nome de Deus – “Eu sou aquele que sou” – como surge em Ex 3,14) que revela a origem divina de Jesus e a validade da sua proposta. Quem adere a Jesus e à sua doutrina (“quem crê” – Jo 6,47) encontra a vida. O que é decisivo é “crer” – isto é, aderir a Jesus e aos valores que propõe.

Essa vida que Jesus oferece não é vida parcial e finita, mas vida verdadeira e eterna. A sublinhar esta realidade, Jesus faz o paralelo entre o pão que Ele oferece e o maná que os israelitas comeram no deserto. No deserto, receberam um pão (o maná) que não garantia a vida eterna e que nem assegurava o encontro com a terra prometida e com a liberdade plena. Mas o pão que Jesus oferece ao homem levará o homem a alcançar a meta da vida plena (Jo 6,49-50).

Vida plena não indica apenas um tempo sem fim, mas, sobretudo, a vida com uma qualidade única, com uma qualidade ilimitada – uma vida total, a vida do homem plenamente realizado.

Jesus vai dar a sua carne (“o pão que Eu hei de dar é a minha carne” – Jo 6,51) para que tenhamos a vida. A carne de Jesus é a sua pessoa – a pessoa que os discípulos conhecem, Se lhes manifesta em gestos de amor, solicitude e misericórdia e lhes revela a via para a vida plena. Nas atitudes e palavras de Jesus, manifesta-se historicamente ao mundo o Deus que ama os homens e os convida, através de gestos concretos, a fazer da vida um dom e um serviço de amor.

Registe-se que sob o falar de Jesus está o lastro veterotestamentário em dois momentos. Um deles é: “Todos serão ensinados por Deus(Jo 6,45), citação de Isaías 54,13. Porém, Isaías é restritivo, pois diz “Todos os teus filhos(de Jerusalém), ao passo que Jesus alarga a perspetiva falando de todos em geral. O outro é: “Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair (Jo 6,44), que tem como subtexto Jeremias 31,3 (38,3 LXX): “Com amor eterno, Eu te amei; por isso, te arrastei (mashak TM; élkô LXX) com carinho”. Há no amor de Deus paixão declarada ou coação. Deus não desiste de nós, já não pode passar sem nós!

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E, na linha do pão que nos faz bem, Paulo (Ef 4,30-5,2) vinca: “Nada de azedumes, irritação, cólera, insultos, maledicências, maldade(Ef 4,31), mas que sejamos bons, misericordiosos, perdoadores (Ef 4,32), “imitadores (mimêtaí) de Deus, como filhos amados” (Ef 5,1).

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Em suma, como pessoas e como comunidade eclesial, precisamos do alimento que nos retempere as forças do corpo e as do espírito e o que nos fortaleça para o longo caminho para a missão e para a vida eterna. Por isso, é bom degustar e saborear como é bom o Senhor e o seu pão, que alimenta o viandante e cimenta para sempre a unidade dos filhos de Deus (vd Sl 34).

2021.08.08 – Louro de Carvalho

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