sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Cristóvão da Gama, militar e explorador no século de quinhentos

 

Quase no termo da leitura do livro de A. J. R. Russell-Wood, “O Império Português – 1415-1808. O Mundo em movimento(do Clube do Autor, 2018), vi que regista, na página 280, como “uma variante de jornadas individuais a narrativa de Miguel Castanhoso sobre a expedição militar bem equipada à Abissínia de Dom Cristóvão da Gama e 400 portugueses entre 1541 e 1543, que levou à sua morte e à do chefe turco Imam Ahmad, mas que expulsou os invasores da Etiópia”. E o historiador, que nasceu no país de Gales e se tornou docente na Universidade John Hopkins, neste capítulo dedicado ao “desenvolvimento nas letras e na imagem” no âmbito das permutas culturais e artísticas protagonizadas pelos portugueses em terras de África, Ásia e América, refere que “a campanha domina o relato, mas há episódios interessantes, como o da celebração da Páscoa e a descrição dos hipopótamos no Nilo Azul”.

E veio-me ao pensamento o facto de, no último quartel do século passado, o tenente-coronel Castro Carneiro (hoje coronel reformado e que foi um dos capitães de Abril que, para lá do aspeto militar deram à intervenção das forças armadas a conotação revolucionária da mudança de regime) ter escolhido Dom Cristóvão da Gama para patrono dum curso da arma de infantaria, que dirigiu na Academia Militar, onde era ao tempo professor de tática. E, para o efeito, serviu-se basicamente do relato de Miguel Castanhoso. Desde então fiquei com alguma curiosidade pela figura em causa, mas confesso que tenho encontrado pouca literatura para lá da obra de Castanhoso.

Também Hugo Miguel de Almeida Pereira, no estudo “Uma força Expedicionária Portuguesa na Campanha da Etiópia de 1541-1543(Academia Militar, 2012), sob a orientação do tenente-coronel de operações especiais Nuno Lemos Pires (atual brigadeiro-general comandante das forças da UE que treinam as unidades moçambicanas de intervenção rápida), anota a dificuldade em achar informação especializada e direta do lendário Preste João e da Campanha Portuguesa, em auxílio do reino cristão isolado. No entanto, refere, numa primeira linha, os autores contemporâneos da campanha portuguesa por estas terras e outros que estiveram in loco na Etiópia, mas passados alguns anos, entrando já no século XVII. Uma dessas obras é a do Padre Francisco Álvares que em 1521 acompanhou à Abissínia a embaixada de D. Rodrigo de Lima e publicou em 1541 a Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índia”; a “História de Etiópia a Alta, de Baltasar Teles”; a “Breve Relação de Embaxada que o Patriarcha dõ João Bermudes trouxe do Emperador de Ethiopia, vulgarmente chamado Preste João, de D. João Bermudes; e a “História da Etiópia, do Padre Jesuíta Pêro Pais. Com vertente centrada na presença militar dos portugueses, liderada por Dom Cristóvão, escreveu Miguel de Castanhoso a sua obra, “Historia das cousas que o mui esforçado capitão Cristóvão da Gama fez nos reinos de preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou. E aponta o autor do estudo que, para se ver a importância da campanha, o Corpo do Estado-maior do exército de Itália traduziu esta obra e a publicou com o título: “Spendizione Portoghese in Abissinia – Nel Secolo XVI, narrata da Michele de Castagnoso, Roma, 1888”, considerando “Michele de Costanhoso, uomo nobile e bravo cavaleire, che fu compagno di fatiche di D. Cristoforo, e che tutto scrive come testimonio di vida” (Castagnoso, 1888, p. VIII). E, numa segunda linha, menciona outras obras cuja leitura, enriquece o conhecimento. Tais são: “Em demanda do Preste João”, de Elaine Sanceau, uma narrativa eloquente da presença dos portugueses na Etiópia; e “A Campanha da Etiópia-1541-1543 de Luís Costa e Sousa, que já introduz a componente militar mais ao pormenor como a tática, equipamento, contingentes…

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Dom Cristóvão da Gama, nascido por volta de 1515, em Évora, foi o quarto filho de D. Vasco da Gama e de sua mulher D. Catarina de Ataíde. Recebeu os cargos de capitão de Malaca e de fidalgo da Casa Real depois de voltar da Índia em 1534, para onde tinha ido em 1532 (e chegado a Malaca), na esquadra de Pedro Vaz do Amaral, e como recompensa da bravura lá demonstrada. Efetuou diversas empreitadas depois de voltar à Índia em 1538 sob a direção do seu irmão, Dom Estêvão da Gama, enquanto este foi governador.

Em 1541 acompanhou o irmão na expedição de Goa ao Mar Vermelho, uma armada de 75 velas com o objetivo de queimar as naus turcas no Suez, em que tomou parte honrosa.

No século XVI os muçulmanos, chefiados por Ahmed Gran, lançaram uma guerra santa sobre a Etiópia. Acudindo ao apelo do Imperador Cristão da Etiópia, Lebna Dengel, os portugueses intervieram militarmente, enviando uma expedição de 400 homens comandados por Dom Cristóvão da Gama. Com este exército diminuto, o jovem comandante lançou-se através dos montes ínvios do vasto país, tomou lugares aparentemente inacessíveis, venceu batalhas contra forças quatro vezes superiores, libertando grande parte do território etíope.

Depois de, em agosto de 1542, ter sido feito prisioneiro em batalha numa dessas expedições, efetuada na Abissínia contra o xeque de Zeilá, acabou por morrer, vítima das torturas infligidas pelos seus captores. A obra “Historia das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou (1564), de Miguel de Castanhoso, relata este episódio.

Onde é hoje a Eritreia, em março de 1542, na batalha de Anasa, os muçulmanos combateram as forças conjuntas da Imperatriz da Etiópia (alguns dizem rainha) e de Cristóvão da Gama. A superioridade tecnológica do exército português levou a melhor e o chefe muçulmano, ferido, fugiu do campo de batalha. Imediatamente enviou um pedido de auxílio ao Paxá do Iémen o qual enviou uma força de 2000 árabes e turcos, já conhecedores dos segredos da pólvora.

Em Agosto de 1542, a Imperatriz e os portugueses reencontraram-se e combateram contra as tropas inimigas em Ashenge. Dom Cristóvão da Gama foi gravemente ferido no frenesim da batalha e escondeu-se num bosque para que as suas feridas sarassem antes que pudesse voltar para junto do exército. Enquanto se encontrava escondido, uma jovem rapariga turca que Dom Cristóvão tinha mantido como sua amante decidiu traí-lo e dirigiu os muçulmanos até ao local. Os captores espancaram-no brutalmente e arrastaram-no até ao comandante muçulmano. Tentaram, através da tortura, fazê-lo revelar para onde a Imperatriz se tinha retirado mas ele recusou-se a tal. O capitão aproximou-se do prisioneiro e disse-lhe que, se ele aceitasse converter-se ao Islão, seria misericordioso. A resposta de Dom Cristóvão da Gama foi cuspir na cara do muçulmano. Irritado, agarrou num machado e decapitou o filho de Vasco da Gama.

Entretanto, o jovem Imperador da Etiópia finalmente regressou com o seu exército e juntou-o com as forças da sua mãe e dos portugueses. A chegada do Imperador animou grandemente os soldados etíopes e portugueses, marchando atrás dele com grande entusiasmo. Após algumas batalhas importantes, em que os portugueses se bateram heroicamente, talvez com o desejo de vingança a incender-lhes o espírito, cristãos e muçulmanos encontraram-se em Fogera, nas margens do lago Tana, em fins de fevereiro de 1543, para aquela que viria a ser uma enorme e sangrenta batalha final. Durante a batalha, um servo leal de Dom Cristóvão chamado Pedro Leão viu a oportunidade de vingar o seu mestre e disparou contra o Capitão muçulmano que havia decapitado Dom Cristóvão, ferindo-o com gravidade. Porém, diz-se que ele, de forma a não causar pânico nas suas tropas, apenas disse “Continuai a lutar” e foi-se sentar atrás dum pedregulho de forma a não mostrar o quão seriamente ferido estava.

Pedro Leão, contudo, vendo isto, seguiu-o e acabou com ele. Cortou a orelha do Grão Sultão e exibiu-a aos jubilantes portugueses e etíopes que dançaram em sua volta em vitória.

Estava vingado o filho de Dom Vasco da Gama.

Pelos vistos, antes da batalha, o Imperador tinha prometido aos seus homens o casamento com a princesa da Etiópia a quem lhe trouxesse a cabeça do chefe muçulmano. Ao que parece, o humilde Pedro Leão, sem o saber, tornou-se assim noivo da filha do Imperador da Abissínia, onde ainda hoje permanece com descendência na Etiópia.

O Padre Jerónimo Lobo foi feito depositário dos restos mortais deste intrépido homem de armas até chegarem a Portugal, tendo sido achados pelos seus descendentes. Houve inclusivamente uma tentativa por parte de um seu familiar, com pouco sucesso, de o canonizar.

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A campanha da Etiópia de 1541-1543, uma campanha militar fabulosa, surgiu inesperadamente. Num dos périplos pelo Mar Vermelho para conquistar pontos geoestratégicos e negar o acesso ao oceano Indico aos turcos Otomanos, foi necessário aportar em Máçua (Abissínia). Aí, um emissário do Preste João contactou com os portugueses a pedir auxílio contra os muçulmanos e turcos, que pretendiam erradicar daquela região o reino cristão. Dom Estevão da Gama, então governador do Estado da Índia, aceitou o pedido por configurar “grande serviço a Deus e ao rei de Etiópia, e cumprir os desejos do Rei de Portugal”. Para tal desígnio, escolhe o irmão mais novo, Dom Cristóvão como comandante da força. Concede-lhe o contingente de 400 homens, os melhores da armada, que se ofereceram; deu-lhe 8 peças de artilharia, 100 mosquetes e muitas munições; e, além das armas que os soldados levavam, mandou dar-lhe outras tantas de sobresselentes. Após a viagem da Índia à Abissínia, a 9 de julho 1541, e as devidas despedidas, a força iniciou o deslocamento para o interior deste território. Este, o pedestre, foi o meio de transporte que predominou na campanha. Doravante, estão condicionados ao que o território lhes oferecer e à carga que transportam.

Avançou a força portuguesa e 100 abexins em território com terreno e condições meteorológicas agrestes. Caminharam durante 6 dias até chegarem a Debarwa. E, como o inverno se iniciava, esperou-se que este acabasse. Ali o inverno é rigoroso e era preciso treinar a força (articulação e composição; treino operacional, treino de tarefas críticas…), bem como obter informações sobre a região e o adversário. Entretanto, o comandante determinou juntar a rainha Sabla Vangel ao arraial.

Terminado o inverno, a 15 de dezembro, iniciou novamente a marcha durante 8 dias até Salava, onde descansaram e festejaram o Natal a 25 de dezembro de 1541, após o que reiniciaram a marcha durante mais 5 dias até alcançarem Agame. Fez descansar a força e, sabendo duma força adversária ali perto, decidiu assaltar a sua posição na serra de Amba Sanayt, assalto que aproveitou para sistematizar os procedimentos que haviam treinado. Conquistada a serra, mandou descansar e permanecer no local até fins de fevereiro. Retemperadas as forças, retomou a marcha, mas assentou o arraial ao saber da proximidade do Rei de Zeilá. Neste momento, encontrou-se Sahart, onde por duas ocasiões defrontaram os muçulmanos. Nestas batalhas, os portugueses e os 200 abexins alcançaram a vitória sobre os muçulmanos (os naturais e os turcos que os apoiavam). Apesar de ter um efetivo muito maior e ter nas suas fileiras os aguerridos combatentes turcos, do outro lado, a forma de combater organizada, o apoio da artilharia móvel (entre outros aspetos), revelou que o confronto podia ser equilibrado. Findos estes dois combates, Dom Cristóvão levou a força para a serra de Ofla, onde passou o inverno de1542. Concluído este, novo confronto ocorreu. Neste interregno, Ahmad, e desiludo com o que sucedera, pediu “socorro ao Paxá de Zabid, que lhe mandou 900 turcos espingardeiros e 10 bombardas”. A 28 de agosto de 1542, neste novo confronto, o potencial de combate de cada uma das forças era teoricamente desequilibrado. E foi isso que aconteceu no terreno. Com o reforço do Ahmad e os portugueses sem qualquer tipo de abastecimento (recursos humanos ou materiais), o resultado do combate foi a estrondosa derrota portuguesa e abexim, o que originou a fuga de Dom Cristóvão, devido a ter sido gravemente ferido, tendo sido capturado pelos muçulmanos e levado a Ahmad, que lhe cortou a cabeça. Os restantes, de forma desorganizada fugiram do campo de batalha.

Terminada a batalha, e com a morte de D. Cristóvão, Ahmad pensou que os portugueses faziam parte do passado e que seria uma questão de tempo até eliminar os restantes abexins. Contudo, após um tempo de acalmia, que serviu para recuperar e reorganizar, a “seis de fevereiro de 1543, com 8 mil homens de pé frecheiros e adargueiros, e 500 a cavalo, e todos muito boa gente e luzida, e 120 Portugueses” estavam prontos para a vingança. Sob o comando do Preste João (aliás, imperador Cláudio II), ofereceram inesperadamente novo combate a Ahmad. Organizados ambos os dispositivos no terreno, iniciou-se a batalha, excecionalmente com a presença de portugueses a cavalo, com um resultado relevante para o futuro da região. Ahmad foi morto, o que originou a debandada da sua força. E, com esta morte, os muçulmanos nunca mais tiveram um líder unanimemente aceite e capaz de importunar o reino cristão do Preste João. Com a missão cumprida após mais de dois anos, era tempo de os portugueses regressarem, mas tal não se sucedeu. Permaneceram na Etiópia e não mais voltaram a servir em nome do rei de Portugal pelo motivo acima indicado.

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Ficou transformado em realidade, embora não como se pensava, o mito do lendário Preste João e seu reino cristão algures, previsto em documentação papal e que os monarcas portugueses insistiam em contactar a que se juntou o interesse estratégico de Afonso de Albuquerque, pois desejava comunicar com Preste João, para cortarem uma serra e lançarem o Nilo por outra parte para destruírem o Cairo. Esperava-se desde as cruzadas – esperança que não desvanecia – que o poderoso rei cristão ajudasse na destruição do poderio muçulmano atacando-o pela retaguarda. E o cuidado do imperador etíope em contactar Dom Manuel inseria-se na modificação da estratégia definida pelo rei africano de combate ao Islão. Desde o reinado de D. João II os governantes etíopes, receando fugas de informação, impediram que os enviados do Príncipe Perfeito saíssem dos seus domínios. Agora, o Preste João mandava cometer casamento dos seus filhos com os do Rei de Portugal e oferecer-lhe gente e mantimento com vista à destruição de Meca e à derrota do Grão Sultão do Cairo; e garantia que tudo isto lhe mandaria pôr no porto de sua terra qual ele quisesse.

Foram muitas e variadas as informações fornecidas por esta representação diplomática, ficou a saber-se que o soberano não se chama Preste João, como lhe chamavam na Europa, mas João precioso, pois na língua etíope era João bebul e na língua caldeia era João encone, expressões que querem dizer João precioso ou alto. E não era Imperador do Abexim, mas da Etiópia. Não obstante, os Portugueses insistiram em chamar-lhe Preste João como consta, por exemplo, em carta de Afonso de Albuquerque a Dom Manuel I, de 1 de dezembro de 1513, em que as descrições da terra do Preste se apresentam mais verosímeis, embora ainda com numerosas e compreensíveis imprecisões. Entende-se que o reino africano era muito grande: estendia-se pelas Costas do sertão de Madagáscar até Sofala; destoutra banda estendia-se até ao Cairo pela ribeira do mar Roxo até Suaquem; e pelo sertão estendia-se a Nuba ou Etiópia, com que confinava, e com a terra duns mouros que se chamavam Ajaje, donde vinha o ouro para Suaquem em pedaços quadrados; e assim se ia estendendo a terra do Preste João até Manicingo e terras da Ribeira do mar daquela banda lá e costa que vem ter ao cabo da Boa Esperança.

Entusiasmado com as novas informações da terra dos Preste João, D. Manuel encarregou D. Rodrigues de Lima de o representar junto do rei africano, para o que se organizou uma viagem que foi pormenorizadamente relatada por Francisco Álvares, o qual, ao escolher para título do seu livro a expressão de “verdadeira informação”, procurou separar o país real que visitara dos mitos e lendas que envolviam o Preste João. (vd João António Salvado “A INFLUÊNCIA DO MITO. O EXEMPLO DO PRESTE JOÃO, in “A Viagem de Vasco da Gama”, Academia da Marina, 2002).

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A lenda do Preste João foi divulgada na Europa no tempo da 1.ª cruzada, em finais do século XI. Foi a necessidade de aliados que favoreceu a crença, entre os cruzados, de que iriam receber o auxílio dum poderosíssimo soberano, vindo da Ásia, que atacaria o Islão pelas costas. Ora começara então a circular uma mensagem dirigida ao imperador Manuel Coménio, de Bizâncio, que alimentava tal esperança. Tratava-se de uma carta enviada por alguém cuja grandeza assumia duas dimensões: a sagrada, relacionada com o divino; e a secular, em conjugação com o mais alto poder na terra. O Preste João era um rei, sacerdote cristão, um misterioso soberano, suserano de muitas dezenas de vassalos. Tão misterioso, que o reino se situara sucessivamente na Mesopotâmia, na China, nas Índias, na Arábia, na África Ocidental e, finalmente, na Etiópia. (vd Maria da Conceição Vilhena, O PRESTE JOÃO mito, literatura e história, Universidade dos Açores, 2001).

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Caiu o mito, ficou a campanha. E a esperança deu em resultado inverso: não foi a Etiópia a auxiliar na luta contra os Islão atacando pelas costas, mas os portugueses a proteger a Etiópia do mesmo Islão enfrentando-o. E, se de outras paragens regressavam para continuarem em serviço do seu Rei ou por lá morreram em serviço à Coroa, à religião ou ao conforto pessoal, da Etiópia não mais regressaram.

2021.08.05 – Louro de Carvalho  

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