segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Do Rei-Pastor ao Rei que homologa, com justiça, as nossas atitudes

 

A liturgia da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, que preencheu o 34.º domingo do Tempo Comum no Ano A, desta feita, a 26 de novembro, contribui para um encerramento eloquente do Ano Litúrgico.  

Na primeira leitura (Ez 34,11-12.15-17), antevê-se a vinda do Rei-Pastor que, na linha da proximidade, do afeto e do sacrifício da vida, apascenta as ovelhas e todo o Israel, nada mais, nada menos que os Israelitas, com quem o Senhor estabeleceu a Aliança.

Sobressai, pois, a imagem do Bom Pastor para apresentar Deus e definir a sua relação com os homens. A imagem vinca a autoridade de Deus e o seu papel na condução do seu Povo pelas vias da História; e, por outro lado, a preocupação, o carinho, o cuidado, o amor de Deus pelo Povo.

Ezequiel, “o profeta da esperança”, exerceu o seu ministério na Babilónia, desde 597 a.C., no reinado de Joaquin, quando Nabucodonosor toma Jerusalém, pela primeira vez, e deporta para a Babilónia a classe dirigente do país.

Na primeira fase do seu ministério profético, entre 593 a.C. (data do seu chamamento) e 586 a.C. (quando Jerusalém é arrasada pelas tropas de Nabucodonosor e é encaminhada para a Babilónia a segunda leva de exilados), Ezequiel procura destruir falsas esperanças e anuncia que, ao invés do que pensam os exilados, o cativeiro está para durar. A segunda fase desenrola-se a partir de 586 a.C. e prolonga-se até cerca de 570 a.C. Instalados em terra estranha, privados de Templo, de sacerdócio e de culto, os exilados desesperam e duvidam da bondade e do amor de Deus. Ezequiel procura alimentar a esperança e transmitir ao Povo a certeza de que o Deus salvador e libertador – o Deus que Israel descobriu na sua História – não os abandonou nem os esquece.

O trecho em apreço pertence, provavelmente, à segunda fase do ministério de Ezequiel. Depois de denunciar os maus pastores que exploraram e abusaram do Povo e o levaram por caminhos de desgraça e de morte, até à catástrofe, o profeta anuncia a chegada de um tempo novo em que o próprio Deus vai conduzir o Povo e apascentar as ovelhas – um oráculo de esperança, que abre uma nova História e propõe um novo futuro ao Povo de Deus.

No Antigo Médio Oriente, o título de “pastor”, atribuído aos deuses e aos reis, é bastante expressivo porque essas civilizações viviam da agricultura e do pastoreio. A metáfora expressa dois aspetos, aparentemente contrários da autoridade exercida sobre os homens: o pastor é, ao mesmo tempo, o chefe que dirige o seu rebanho e o companheiro que acompanha as ovelhas na caminhada para as pastagens onde há vida. Além disso, é o homem forte, capaz de defender o rebanho contra os animais selvagens, e é delicado para com as ovelhas. Conhece o estado e as necessidades de cada uma das ovelhas, leva nos braços as mais frágeis e débeis, ama-as e trata-as com carinho. Por isso, a sua autoridade não se discute: está fundada na entrega e no amor.

É neste pano de fundo que Ezequiel põe as relações que unem Deus e Israel. Os pastores humanos (os reis, os sacerdotes, a classe dirigente) trataram mal este Povo, mas o profeta anuncia a chegada de um tempo novo em que Javé assumirá a sua função de pastor. Vai cuidar das ovelhas e interessar-se por elas. Agora, as ovelhas estão dispersas numa terra estrangeira, depois dos acontecimentos dramáticos que trouxeram ao rebanho a desolação e a morte. Porém, Deus, o Bom Pastor, vai reuni-las, reconduzi-las à sua própria terra e apascentá-las em pastagens férteis e tranquilas. Mais: procurará cada ovelha perdida e tresmalhada, cuidará da que está ferida e doente, vigiará a que está gorda e forte e julgará, pessoalmente, os conflitos entre as mais poderosas e as mais débeis, a fim de que o direito das fracas não seja pisado.

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O Evangelho (Mt 25,31-46), num cenário dramático, apresenta o Rei Jesus a interpelar os discípulos acerca do amor que partilharam com os irmãos, sobretudo pobres, débeis e desprotegidos. Com efeito, o egoísmo, o fechamento em si próprio, a indiferença para com o irmão que sofre, não têm lugar no Reino de Deus. Quem enveredar por aí ficará à margem.

A descrição do juízo final é o corolário das três parábolas precedentes: a do mordomo fiel e do mordomo infiel; a das jovens previdentes e das jovens descuidadas; e dos talentos.

Neste contexto, aparecem dois grupos de pessoas que tiveram comportamentos diversos, enquanto esperavam a vinda de Jesus. E o evangelista mostra  o fim dos que se mantiveram e dos que não se mantiveram vigilantes e preparados para a vinda do Senhor.

Estamos nos últimos decénios do século I, passado que foi o entusiasmo inicial pela vinda iminente de Jesus, para instaurar o Reino definitivo. Os cristãos da comunidade de Mateus vivem uma fé descafeinada, rotineira, morna, pouco exigente e pouco comprometida. Alguns, ante as dificuldades, deixam a comunidade e renunciam ao Evangelho.

No texto em referência, Mateus mostra aos crentes – na linguagem veemente dos pregadores da época – o que esperam, no final da caminhada, os que se mantiveram vigilantes e viveram de acordo com os ensinamentos de Jesus e os que se esqueceram dos valores do Evangelho e que conduziram a vida de segundo outros critérios.

A parábola do juízo final começa com a introdução (vv. 31-33) com o seguinte quadro: o Filho do Homem, sentado no trono, separa as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. A seguir, vêm dois diálogos: um, entre o rei e as ovelhas, à sua direita (vv. 34-40); outro, entre o rei e os cabritos, à sua esquerda (vv. 41-46). No primeiro, o rei acolhe as ovelhas e convida-as a tomar posse da herança do “Reino”, preparado para elas desde o princípio; no segundo, o rei afasta os cabritos e impede-os de tomarem posse da herança do Reino.

O critério não é a prática religiosa, embora seja necessária, para incrementar a fé, firmar a esperança e fazer a caridade. A questão decisiva é, na ótica mateana, a atitude de amor ou de indiferença para com os irmãos mais pequenos de Jesus, que se encontram em dramáticas situações de necessidade – os que têm fome, os que têm sede, os peregrinos, os que não têm roupa, os doentes, os presos. É com estes – os pequenos, os pobres, os débeis, os marginalizados – que Jesus Se identifica. Portanto, manifestar amor e solidariedade para com o pobre e compartilhar com ele é fazê-lo a Jesus; e manifestar egoísmo e indiferença para com o pobre é fazê-lo a Jesus.

Entendida em sentido genérico, a palavra “irmão” designa qualquer homem. Assim, a exortação de Jesus convida os que querem entrar no Reino a ir ao encontro de qualquer homem que tenha fome, que tenha sede, que seja peregrino, que esteja nu, esteja doente ou que esteja na prisão, para lhe dar amor e solidariedade. Em sentido restrito, a palavra “irmão” designa o membro da comunidade cristã. Seja como for, a exigência de Cristo de amor e serviço é para com todos. Com efeito, todos são chamados a entrar na comunidade, a quem ninguém é estranho.   

A exortação de Mateus à sua comunidade cristã e às de todos os tempos e lugares, nas parábolas precedentes ganha, agora, uma outra força. Com os dados que este Evangelho tipifica, torna-se claro que “estar vigilantes e preparados” (tema do “discurso escatológico” dos capítulos 24 e 25) consiste em viver o amor e a solidariedade para com os pobres, os pequenos, os desprotegidos, os marginalizados. É este o critério que decide a entrada no Reino de Deus.

A exortação dirige-se a uma comunidade que negligencia o amor aos irmãos, que é insensível ao drama dos pobres e que não cuida dos pequenos e dos desprotegidos. Como essas são atitudes que não se coadunam com a lógica do Reino, quem vive assim não poderá fazer parte do Reino.

Mateus não é um repórter, mas o catequista que instrui a sua comunidade sobre os critérios e as lógicas de Deus. O objetivo é deixar claro que Deus não aprova uma vida conduzida por critérios de egoísmo, onde não há lugar para o amor a todos os irmãos, particularmente aos mais pobres e débeis. Um dos pormenores mais sugestivos é a identificação de Cristo com os famintos, os abandonados, os pequenos, os desprotegidos: todos são membros de Cristo e não os amar é não amar Cristo. Dizer que se ama Cristo e não viver do jeito de Cristo é mentira e incoerência.

Convenhamos, porém, que não é Deus quem condena. Quem se condena ou não é o homem, na medida em que não aceita ou aceita a vida que Deus lhe oferece. Deus limita-se a verificar a condenação que os renitentes fazem a si próprios. Mais: sabemos que o reino eterno foi preparado para nós, ao passo que o fogo eterno foi preparado, não para nós, mas para o diabo e para os seus anjos” e que, por nossa conduta o arrebatamos para nós, feitos mensageiros do diabo.

Não há dúvida de que Mateus é um pregador veemente, pois, ao estilo dos pregadores da época, recorre a imagens fortes que toquem o auditório e que o levem a sentir-se interpelado. Porém, é útil não esquecer que o egoísmo e a indiferença para com os irmãos não têm lugar no Reino de Deus. Este reino é de amor, de serviço, de compaixão, de solidariedade e de solicitude.

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Na segunda leitura (1Cor 15,20-26.28), Paulo lembra que o fim último da caminhada do crente é a participação no “Reino de Deus” de vida plena, para o qual Cristo nos conduz. Nesse Reino definitivo, Deus manifestar-Se-á em tudo e atuará como Senhor de todas as coisas.

No decurso da segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, vindo de Atenas, e ficou por lá cerca 18 meses (anos 50-52). De acordo com At 18,2-4, começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeo-cristãos. No sábado, usava da palavra na sinagoga. Com a chegada de Silvano e Timóteo a Corinto (2 Cor 1,19; At 18,5), Paulo consagrou-se ao anúncio do Evangelho. Mas, entrado em conflito com os judeus, foi expulso da sinagoga.

Contudo, em resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. A maior parte dos seus membros eram de origem grega, embora, em geral, de condição humilde, embora também houvesse elementos de origem hebraica. A comunidade era viva e fervorosa. Porém, estava exposta aos perigos do ambiente corrupto da cidade e era influenciada por esse ambiente.

A cultura grega estava fortemente influenciada por filosofias dualistas, que viam uma realidade negativa no corpo e uma realidade nobre e ideal na alma. Aceitar que a alma viveria sempre não era difícil para a mentalidade grega. O problema era aceitar a ressurreição do homem total: sendo o homem (segundo a mentalidade grega) constituído por alma e corpo, era difícil falar da ressurreição do homem. Face às objeções e dúvidas dos Coríntios, Paulo parte da ressurreição de Cristo, para concluir que todos aqueles que se identificarem com Cristo ressuscitarão também.

O trecho em apreço começa com a afirmação de que “Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram”. Assim, a sua ressurreição não foi um caso único e excecional, mas o primeiro caso. Entenda-se “primeiro” não apenas em sentido cronológico, mas sobretudo no sentido do princípio ativo da ressurreição de todos os homens e mulheres. Cristo foi constituído por Deus princípio da nova Humanidade; a sua ressurreição arrasta consigo toda a sua “descendência” – ou seja, todos os que se identificam com Ele, acolheram o seu estilo de vida e O seguiram – ao encontro da vida eterna. O destino da nova Humanidade é o Reino de Deus. O Reino de Deus será a realidade onde o egoísmo, a injustiça, a miséria, o sofrimento, o medo, o pecado, e até a morte (isto é, todos os inimigos da vida e do homem) estarão definitivamente ausentes, pois foram vencidos por Cristo. Deus manifestar-Se-á em tudo e atuará como Senhor de todas as coisas.

A reflexão paulina lembra-nos que o fim último da caminhada do crente é a participação no Reino de vida plena e definitiva, para o qual Cristo nos conduz. E esta solenidade faz-nos sentir o Reino como a realidade que Jesus semeou, que os discípulos são chamados a edificar na História, pelo amor, e que terá o seu tempo definitivo no Mundo que há de vir.

2023.11.26 – Louro de Carvalho

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