terça-feira, 21 de novembro de 2023

A pandemia silenciosa que pode vir a matar mais do que a covid-19

 

O alerta vem sendo dado pelos especialistas. O abuso dos antibióticos pode redundar na sua ineficácia contra as bactérias, que sabem resistir.

A descoberta da penicilina, o primeiro antibiótico, constitui uma das maiores revoluções da História da Medicina. Diz-se que muitas descobertas científicas ocorrem por acaso. Porém, o acaso, como dizia Louis Pasteur, só favorece os espíritos preparados e não dispensa a observação. A descoberta da penicilina constitui, neste aspeto, exemplo típico. O bacteriologista do St. Mary’s Hospital, de Londres, Alexandre Fleming, vinha a pesquisar substâncias capazes de matar ou de impedir o crescimento de bactérias nas feridas infetadas. Tal preocupação justificava-se pela experiência da I Guerra Mundial (1914-1918), em que muitos combatentes morreram por infeção em ferimentos profundos. Em 1922, Fleming descobriu uma substância antibacteriana na lágrima e na saliva, que designou de lisozima. Em 1929, desenvolvia pesquisas sobre estafilococos e descobriu a penicilina. O fungo foi identificado como pertencente ao género Penicilium, donde provém o nome “penicilina” dado à substância que produz. Fleming passou a usá-la no laboratório para selecionar determinadas bactérias, eliminando das culturas as espécies sensíveis à sua ação.

Alexander Fleming, quando saiu de férias, por acaso (!), esqueceu algumas placas com culturas de micro-organismos no seu laboratório no Mary’s Hospital, de Londres. Quando voltou, viu que uma das culturas de Staphyloccocus tinha sido contaminada por um bolor em volta de cujas colónias não havia mais bactérias. Então, Fleming e o colega, Dr. Pryce, descobriram um fungo do género Penicilium e demonstraram que o fungo produzia uma substância responsável pelo efeito bactericida: a penicilina. Esta foi obtida em forma purificada, em 1940, por Howard Florey, Ernest Chain e Norman Heatley, da Universidade de Oxford, que comprovaram as suas qualidades antibióticas em ratos infetados, bem como a sua não-toxicidade. Em 1941, os seus efeitos foram demonstrados em humanos. O primeiro homem tratado com penicilina foi um agente da polícia que sofria de septicemia com abcessos disseminados – condição geralmente fatal à época – e que melhorou bastante, após a administração do fármaco, mas morreu, quando as reservas iniciais de penicilina se esgotaram. Depois, começou a ser industrializada. Em 1945, Fleming, Florey e Chain receberam o Prémio Nobel da Medicina Fisiologia por este trabalho de Fisiologia.

A penicilina salvou milhares de vidas de militares dos Aliados na II Guerra Mundial e ficou disponível para a generalidade dos doentes, passando o Mundo a ver-se munido da arma capaz de matar bactérias, agentes criadores de infeções que eram, na altura, a maior causa de morte no planeta. Assim, teve início o caminho de aumento da esperança média de vida, que, nos anos 30 do século XX, pouco passava dos 30 anos de idade, para os humanos da Europa Ocidental. Na década de 1960, já havia aumentado para os 63 anos. E, agora, ultrapassa os 80 anos.

Porém, se, ao longo dos anos se produziram antibióticos, primeiro, de natureza natural e, depois, de natureza sintética, vivemos, agora, o problema da possibilidade da sua eficácia. Arriscamos passar de um planeta “sem antibióticos”, como era antes de 1930, para um planeta “com antibióticos mas de efetividade muito reduzida por causa da resistência das bactérias”, como refere José Artur Paiva, médico internista e diretor do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA).

Passada a pandemia de covid-19 e toda a avalanche destrutiva de programas de apoio à prescrição de antibióticos, chegou o alerta da Europa de que é preciso voltar a centrar as atenções num velho e poderoso inimigo: as bactérias e a sua capacidade de escapar aos medicamentos que os humanos inventaram para as controlar. “Enfrentamos uma epidemia de resistência a antibióticos que, a longo prazo, irá causar muito mais mortes do que a covid-19”, disse Bruno Cianciodiretor de Vigilância do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC, na sigla inglesa), organismo preocupado com a falsa perceção de que o período pandémico mais severo fez passar relativamente a este combate.

Uma drástica redução do consumo de antibióticos na Europa, que em Portugal atingiu os 25%, em 2021, ficou esbatida pela sobreposição do SARS-CoV-2. E, quando a pandemia vírica acalmou, regressaram os números da que, em 2022, denominada “pandemia esquecida” por Ramanan Laxminarayan, considerado um dos pais da resistência bacteriana.

Após redução inédita no consumo de antibióticos na pandemia (2020 e 2021) – atribuível às quarentenas e às dificuldades em aceder aos cuidados de saúde nesse período –, “em 2022 houve uma recuperação total do consumo de antibióticos, para valores próximos do que se verificou em 2019”, afirmou Dominique Monnet, diretor da secção de Resistência Antimicrobiana e Doenças Associadas, do ECDC, aos jornalistas numa conferência nas instalações do organismo, em Solna, Estocolmo, Suécia, que antecedeu a publicação do relatório anual sobre a matéria.

Na União Europeia (UE), de 2019 a 2022, o consumo reduziu 2,5%. Porém, esteve longe de ser linear no tempo e no espaço: primeiro, drástica redução; no último ano, subida radical. Na UE, as realidades são diversas, com 12 países a registar aumento geral do consumo, com a Bulgária a liderar a tabela (24%), e 15 a apresentar redução, com a Finlândia no topo (- 15%). Portugal acompanhou a tendência, reduzindo este consumo em 2,6%, de 2019 a 2023, mas também esta variação não foi linear: sofreu abrupta diminuição na pandemia e, após uma grande subida, em 2022, quase fez regressar o consumo aos valores pré-pandémicos.

Segundo a microbiologista Ana Margarida Almeida, do Instituto de Medicina Molecular, a redução do consumo de antibióticos, em 2021, na UE, foi da ordem dos 25%, devido a dois fatores: diminuição do número de infeções bacterianas, mercê da restrição à circulação e a aglomerações e do uso generalizado de máscaras; e redução do acesso a consultas médicas.

Já no meio hospitalar, que representa cerca de 10% do total de antibióticos consumidos, a pandemia trouxe expressivo aumento do consumo: em 2021, ultrapassou, pela primeira vez, a média europeia. É aqui que “estamos mais dismórficos, ou seja, mais fora da evolução europeia”, confirma o internista José Artur Paiva, diretor do PPCIRA. Não só aumentou durante o período pandémico, como esse aumento se tem mantido sustentado em 2023.

Entre as bactérias super-resistentes identificadas pelo ECDC como preocupantes pela capacidade de sofrerem mutações para “fugirem” aos antibióticos, a Klebsiella pneumoniae, capaz de causar pneumonia, é a que mais preocupa a Europa. Neste parâmetro, nos anos de pandemia, os países aumentaram 49,7% a incidência de infeções por esta bactéria. Em Portugal, aumentou 2,6%.

“O objetivo da Europa é reduzir [esta incidência] em 5%, até 2030, mas o que vimos é um aumento de quase 50% e um aumento ainda maior em muitos dos Estados-membros. Esta bactéria, em estudos laboratoriais, tem demonstrado uma grande resistência a vários antibióticos. Isto significa que com doentes não será diferente”, alerta Dominique Monnet.

Pela preocupação com a resistência das bactérias aos antibióticos, a Organização Mundial da Saúde (OMS), determinou que, de 2023 até 2030, o objetivo de consumo destes medicamentos terá de ser em 65% compostos pelos do grupo access, isto é, o grupo dos que não causam tanta resistência em bactérias. Portugal, estando nos 61%, tem algum caminho para andar.

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A resistência antimicrobiana (RAM) pode causar 10 milhões de mortes por ano, até 2050.

À medida que o Mundo recupera da covid-19 e a gripe aviária dizima as aves selvagens e de criação, a ligação entre a produção alimentar e o risco de pandemia nunca foi tão clara.

Desde as doenças zoonóticas (as transmitidas entre animais e humanos, por contacto direto ou indireto) até à RAM, os sistemas alimentares industriais estão a criar terreno fértil para vírus e bactérias. Embora a invasão dos habitats selvagens provoque fenómenos de alastramento, com vírus que se propagam diretamente dos animais para os humanos, muitos dos vírus que atualmente suscitam preocupação, como a gripe das aves, são exacerbados pela criação em fábricas e pelas condições de proximidade e de espaço reduzido em que os animais são mantidos.

Muitas vezes referida pela OMS como “a pandemia silenciosa”, a RAM ocorre quando bactérias, vírus, fungos e parasitas evoluem para resistir ao antibiótico utilizado para os tratar. Tal resistência torna as doenças muito difíceis de tratar e aumenta o risco de propagação.

A RAM pode ocorrer quando os antibióticos são utilizados em excesso, porque as bactérias que desenvolvem resistência são capazes de se multiplicar. A administração de antibióticos em doses baixas também pode levar à RAM, pois as bactérias que estão a ser tratadas não são destruídas e podem desenvolver resistência. “Se algumas das bactérias desenvolveram resistência”, explica Cóilín Nunan, conselheiro científico da Alliance to Save Our Antibiotics, “essas bactérias não são afetadas pelo antibiótico e podem continuar a proliferar, espalhando-se de humano para humano, ou de animal para animal, ou de animal para humano”.

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No discurso de entrega do Prémio Nobel, em 1945, Fleming alertou para os riscos da administração de doses baixas do medicamento. No entanto, quatro anos mais tarde, cientistas norte-americanos descobriram que a administração de doses baixas de antibióticos aos animais promovia o crescimento e a utilização de antibióticos. Assim, os antibióticos foram utilizados em grande escala para prevenir doenças em animais saudáveis, não raro, devido a más condições de higiene e a sobrelotação. A este respeito, Cóilín explica: “Os sistemas alimentares recorrem, muitas vezes, ao uso excessivo e rotineiro de antibióticos, sobretudo quando os animais são criados de forma muito intensiva, porque as doenças podem propagar-se muito mais facilmente. Quando os animais são mantidos em ambientes fechados em grande número, as doenças propagam-se de forma muito semelhante à forma como se propagam nos seres humanos.”

Embora a UE tenha proibido a utilização de antibióticos para promover o crescimento, em 2006, estima-se que 66% de todos os antibióticos utilizados continuam a ser administrados a animais de criação, não a seres humanos. A maior parte da resistência aos antibióticos está ligada à utilização humana, mas há provas de que a sua utilização nas explorações agrícolas contribui para a resistência aos antibióticos nos animais de criação e para as infeções nos seres humanos.

Quando os animais são alimentados com antibióticos, algumas bactérias podem desenvolver resistência e eles têm bactérias resistentes nas entranhas. Depois, no abate, algumas contaminam a carcaça e, quando a carne é manuseada, ou se for comida mal cozinhada, as bactérias que estejam vivas podem espalhar-se para os seres humanos e causar infeções resistentes.

As bactérias também podem entrar no sistema alimentar de formas menos diretas. Os animais de criação excretam antibióticos pela urina, que acaba, depois, em chorume – gordura que exsuda da carne de um animal – e estrume. Este, espalhado em terrenos agrícolas, para fertilizar as culturas, pode passar às culturas bactérias resistentes, sendo comidas cruas algumas delas.

Porém, graças à pressão de alguns grupos, a mudança está a começar. Em janeiro de 2022, a UE proibiu todas as formas de utilização rotineira de antibióticos nas explorações agrícolas, incluindo os tratamentos preventivos de grupo, bem como a utilização de antibióticos para compensar a má criação (reprodução e cuidados) ou a falta de higiene. É posição radical, pois grande parte da sua utilização é para compensar a falta de criação e de higiene. Quando cada um de 30 mil ou 50 mil frangos num pavilhão tem de espaço menos de uma folha de papel A4, a higiene será péssima.

O Reino Unido prepara legislação semelhante à da UE. Embora o governo planeie adotar muitas das leis da UE, alguns aspetos-chave poderão ficar para trás. A boa notícia é que a utilização de antibióticos nas explorações agrícolas do Reino Unido diminuiu 55% desde 2014, embora a utilização de antibióticos na aquicultura esteja a aumentar.

Este fenómeno de alto risco será travado pela módica utilização médica de antibióticos: apenas sob prescrição clínica e segundo rigorosas instruções. Salve-se a Humanidade, salve-se o planeta!

2023.11.21 – Louro de Carvalho

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