quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Aumento das pensões e do salário mínimo escapam à crise política


Ainda que o Orçamento do Estado para 2024 (OE2024) caísse por terra, mercê da dissolução parlamentar subsequente à demissão do governo, o aumento das pensões no próximo ano estaria, à partida, fora de causa, visto que as regras de atualização das pensões estão previstas em legislação autónoma, desde 2006, e estão excecionadas das regras dos duodécimos, justamente para os pensionistas e os beneficiários de prestações sociais ficarem à margem dos ciclos políticos, dotados de maior previsibilidade.

O mesmo não sucede, por exemplo, com a descida do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), com a isenção do pagamento de IRS no primeiro ano de trabalho para os jovens que optem pelo IRS Jovem, com a gratuitidade dos passes para os estudantes até aos 23 anos de idade ou com o aumento de 25 euros do imposto único de circulação (IUC) – medidas vertidas na proposta de lei do OE2024.

Apesar de terem sido suspensas temporariamente em 2022, a Lei n.º 53-B/2006, de 29 de dezembro, na redação atual, e a Lei n.º 52/2007, de 31 de agosto, na redação atual, estão em vigor, obrigando o governo a aumentar o indexante de apoios sociais (IAS) e as pensões em função da inflação e do produto interno bruto (PIB). O valor definitivo será conhecido no final de novembro, com as projeções a admitirem que o IAS suba 6,2%, em janeiro de 2024, dos atuais 480 para 510 euros, e que com ele avancem, por exemplo, os valores mínimos (para 586 euros) e máximo (para 1275 euros) do subsídio de desemprego, o abono de família e as pensões. Assim, a esmagadora maioria das pensões, ou seja, as de montante até aos 1.020,44 euros brutos mensais, deverá subir 6,2% (ou uma décima abaixo), no próximo ano. E as outras pensões serão aumentadas em 5,8% (entre os 1020,44 e os 3061,32 euros) e em 5,2% (entre os 3061,32 e os 6122 euros).

Estas medidas têm implicações orçamentais com peso: 2,223mil milhões de euros de despesa anual (beneficiando cerca de 2,7 milhões de pensionistas), aos quais se somam mais 110 milhões de euros de despesa estrutural com outras prestações sociais em que interfere o IAS.

Em regra, não havendo orçamento do Estado aprovado, a despesa do Estado fica limitada. O governo em funções pode, em cada mês, gastar cerca de 1/12 da despesa pública aprovada para o ano anterior. Contudo, a Lei de Enquadramento Orçamental (aprovada pela Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro) admite exceções, deixando de fora, entre outras, as despesas referentes a prestações sociais devidas a beneficiários dos sistemas de proteção social, a direitos dos trabalhadores, a aplicações financeiras e a encargos da dívida. Ou seja, as pensões de reforma estão fora do regime de duodécimos, tal como as prestações sociais. Falamos só de atualização.

Há duas vias através das quais as pensões podem ser atualizadas: a via regular, a que está aqui em causa e que tem por base o crescimento económico e a evolução do Índice de Preços no Consumidor (IPC); e a extraordinária, que chegou a ser muito usada nos últimos anos, mas que o governo pôs de lado, desde que se instalou a inflação recorde.

Contudo, para o IAS e as pensões serem atualizadas será necessário que o governo em funções, no início do próximo ano, publique uma portaria com os valores de atualização, dando instruções aos serviços para aplicarem a lei. Foi o que sucedeu em 2022, altura em que houve eleições e as finanças públicas foram geridas em regime de duodécimos até à tomada de posse. Se, por hipótese, isso não acontecesse, os aumentos ocorreriam mais tarde, com efeitos retroativos.

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Também a remuneração mínima mensal garantida (RMMG), mais conhecida por salário mínimo nacional (SMN) poderia subir de 760 para 820 euros, em janeiro, conforme foi acordado na Concertação Social, apesar da crise política instalada com demissão do primeiro-ministro (PM), mesmo que o Presidente da República (PR) decidisse dissolver a Assembleia da República (AR) e antecipar as eleições legislativas. Segundo alguns constitucionalistas, o governo de gestão continuará a poder reforçar a RMMG, já que tal depende da publicação de um decreto-lei e não do “sim” da AR. Por exemplo, José Luís Moreira da Silva, sócio da SRS Legal, assegura que “o governo poderá ainda aprovar o novo valor do salário mínimo nacional”.

Por seu turno, Jorge Pereira da Silva, professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (UCP), sustenta que um governo de gestão tem a capacidade de aprovar esse decreto, até porque este já está na sua “fase final” e conta com o acordo em Concertação Social.

Com efeito, a 7 de outubro, antes da proposta de OE2024 ter entrado na AR, o governo, a União Geral dos Trabalhadores (UGT) e três das quatro confederações patronais com assento na Concertação Social subscreveram um reforço do acordo de rendimentos que prevê que a RMMG subirá dos atuais 760 euros para 820 euros, em janeiro. Como anotou o PM, está em causa o maior aumento alguma vez ocorrido: um salto de 7,8% ou 60 euros.

Entretanto, a 7 de novembro, precisamente um mês após a assinatura na Concertação Social, o país acordou com a notícia de que a residência oficial do PM e os ministérios do Ambiente e das Infraestruturas estavam a ser alvo de buscas, no âmbito de investigação em torno dos negócios do lítio e do hidrogénio verde. Horas depois, António Costa falaria ao país para anunciar a sua demissão, depois de ter tomado conhecimento de que era visado na referida investigação.

Cabe, agora, ao Presidente da República (PR) decidir se abre a porta à formação de novo governo ou se dissolve a AR, antecipando as eleições. Porém, tudo indica ter o PR optado pelo segundo cenário, uma vez que vinculou, desde sempre, a atual maioria absoluta do Partido Socialista (PS) diretamente a António Costa. Além disso, parece consensual, entre os partidos ouvidos pelo PR, que a dissolução da AR deverá ocorrer após a aprovação do OE2024. O próprio líder do Partido Social Democrata (PSD) declarou não se importar de governar com um orçamento do PS.

Tal declaração de Luís Montenegro, que parece um sintoma de boa atitude democrática, faz-me lembrar a declaração de Passos Coelho, em 2011, de que não se importava de governar com o FMI (Fundo Monetário Internacional). Isto pode também ser lido no sentido de que o que importa é ser governo. Em todo o caso, um orçamento do Estado pode ser alterado cirurgicamente através de um orçamento retificativo. 

Havendo dissolução paramentar, o país ficará com um governo dito de gestão, que tem poderes limitados, pois, como estabelece o n.º 5 do artigo 186.º da Constituição, “antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República ou após a sua demissão, o governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”.

É indefinida ou vaga a noção dos “atos estritamente necessários” que o governo pode praticar. Por isso, a definição do que são atos necessários tem sido alvo de várias interpretações e de acórdãos do Tribunal Constitucional (TC). “O que se vem retirando da prática política e das interpretações do Tribunal Constitucional é que o governo de gestão não esta impedido de aprovar leis, mas está restrito a situações de necessidade, ou seja, a situações que seriam prejudicadas caso fossem deixadas apenas após eleições para o novo Governo”, especifica José Moreira da Silva.

Assim, embora o governo tenha os poderes limitados, José Moreira da Silva e Jorge Pereira da Silva dizem que o aumento da RMMG poderá avançar, até porque isso depende da publicação de um decreto-lei, não precisando de ir à AR obter o “sim” dos deputados.

Importa notar que o reforço do acordo de rendimentos previa uma série de outras medidas, nomeadamente, de apoio às empresas (como a redução das tributações autónomas), mas estas ficariam todas prejudicadas, se o OE2024 caísse com a demissão de António Costa, visto que dependiam da sua aprovação e entrada em vigor.

Já, no atinente às pensões e à RMMG, uma dissolução da AR, precipitando as eleições e deixando o país com um governo de gestão corrente, não haveria problema, pois o Executivo teria poderes limitados, mas suficientes para avançar com tais medida, que não têm de passar pelo crivo da AR.

Regra geral, tem-se entendido que um governo de gestão não está impedido de aprovar legislação, mas está “restrito a situações de necessidade“. Ou seja, só deve avançar com as medidas que seriam prejudicadas, caso só chegassem ao terreno após as eleições de que resultasse um novo governo, como é o caso das atualizações das pensões e da RMMG.

Para José Moreira da Silva, cabe ao PR verificar se o governo está a cumprir esse critério da necessidade, mas, no que toca às reformas e aposentações, a leitura deste advogado é a de que o Executivo tem margem para avançar.

Também Mário João Fernandes, consultor da Abreu Advogados, observa que um governo de gestão “não se confunde com um vazio de governação, mas não deve ser permitida a concretização de testamentos políticos”, nomeadamente a aprovação de medidas que “se possam confundir com atos de pré-campanha eleitoral.” Ora, no caso das pensões, trata-se da execução da fórmula legal, e não de uma decisão política “inovatória”, sustenta o advogado.

Aliás, ainda há dois anos, quando a proposta de Orçamento do Estado para 2022 foi rejeitada no debate na generalidade, levantou-se a mesma questão e a advogada Raquel Caniço, da Caniço Advogados, adiantou que a atualização das pensões, tendo por base a inflação, seria possível. E assim foi: em janeiro de 2022, as pensões aumentaram até 1%, apesar da crise política de então.

Quanto a 2024, como a inflação tem estado em níveis históricos, as previsões são mais robustas. Segundo o anunciado pela ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, na apresentação do Orçamento da Segurança Social, as pensões até 1.020,44 euros aumentarão 6,2%, as pensões entre 1.020,44 euros e 3.061,32 euros terão subidas de 5,8% e as que superem os 3.061,32 euros crescerão 5,2%. Tudo isto custará ao erário público 2,223 mil milhões de euros.

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Por fim, uma referência a uma área não diretamente conexa com esta temática, mas que é crucial para as pensões, para a RMMG e, em geral, para todo o OE2024: serenidade e foco na economia.

As confederações patronais pedem “serenidade” e “foco no crescimento da economia”, mesmo que o PR dissolva a AR e o país tenha por alguns meses, um governo de gestão.

“A nossa reação é de passar alguma serenidade e o foco será sempre o de erguer a economia”, vinca o presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), Armindo Monteiro.

Só no dia 9 é que Marcelo Rebelo de Sousa revelará se pretende dissolver a AR, antecipando as eleições, ou não, abrindo a porta a que se forme um novo governo, no âmbito da atual maioria. Porém, ainda que o chefe de Estado convoque eleições, Armindo Monteiro entende que o governo terá condições para dar centralidade à economia, pois é importante que o trabalho em torno do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e dos demais fundos europeus continue a acontecer. “Seria terrível que o Estado pura e simplesmente deixasse de funcionar”, alerta.

O “patrão dos patrões” reconhece que não ter um OE2024 é negativo, mas assinala que é preciso “transformar este momento numa oportunidade para promover o crescimento da economia nacional”. Ou seja, depois deste momento de crise, é preciso ter “muito mais energia e muito mais foco no crescimento económico”, insiste.

E João Vieira Lopes, presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) e porta-voz do Conselho Nacional das Confederações Patronais (CNCP), salienta que “as empresas gostam de previsibilidade e estabilidade”, causando estas situações instabilidade, “mas fazem parte do sistema democrático”. Depois, entende que o cenário mais provável é o país ir para eleições, na medida em que o PR vinculou a maioria absoluta do PS a António Costa.

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Enfim, demissão do governo, dissolução da AR e eleições antecipadas dispensavam-se. Contudo, a perversidade de alguma prática política e a minuciosa atenção ou a prepotência de alguma prática justiceira atrapalham a democracia, mas o eleitorado resolverá.   


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