sábado, 18 de novembro de 2023

A obra do padre Rafael Bluteau, o precursor da moderna lexicografia

 

Há dias, apareceu, na RTP1, elogiosa referência a Rafael Bluteau e à sua obra. Como, enquanto estudante, ouvi falar dele muito à superfície, interessou-me o frade teatino, pelo que fui à procura de dados que o tornaram um precursor da moderna lexicografia do Português, que tem o seu início em 1789, com o Diccionario de António Morais Silva, como refere João Paulo Silvestre no livro “Bluteau e as Origens da Lexicografia Moderna” (Lisboa, 2008).

Rafael Bluteau, nascido em Londres, a 4 de dezembro de 1638, e falecido em Lisboa, a 14 de fevereiro de 1734, foi um religioso teatino (Ordem de São Caetano), lembrado, sobretudo, como grande lexicógrafo da língua portuguesa. Filho de pais franceses, chegou a Portugal, a 26 de junho de 1668, com 29 anos de idade, a mando do Geral da Ordem. Trocou Londres por Paris, com a mãe, fugindo das agitações, quando da morte do rei Carlos I de Inglaterra. Estudou Humanidades no Colégio Real Henri IV (La Flèche, Sarthe) e, depois, no Colégio de Clermont (hoje, lycée Louis-le-Grand, Paris). Frequentou as Universidades de Verona, de Roma e de Paris. Doutorou-se, em Roma, em Ciências Teológicas e professou na Ordem Teatina, a 29 de agosto de 1661. Criou na França renome como pregador. Aprendeu depressa o Português e distinguiu-se como orador sagrado, com grande aceitação na corte.

Foi um dos padres estrangeirados, pois aderiu ao movimento académico patrocinado pelo conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes. Teve a proteção da Rainha Maria Francisca de Saboia, esposa do rei D. Afonso VI e, depois, de D. Pedro II, de quem se tornou partidário. Em 1680, foi encarregado de acompanhar à corte de Turim o Doutor Duarte Ribeiro de Macedo, para tratar do casamento da Infanta Isabel com o duque de Saboia, Vítor Amadeu. Tendo o Doutor Macedo falecido na viagem, o padre Bluteau substituiu-o na missão até chegar de Lisboa, em 1682, o duque de Cadaval, novo ministro, para concluir as negociações, que não se completaram, pela grave enfermidade que assaltou o duque de Saboia.

A morte da Rainha, a 27 de dezembro de 1683, causou muitos dissabores ao padre, que se retirou para a França. Regressou a Portugal, em 1704, mas sem o acolhimento que esperava, pois tornara-se suspeito ao governo em razão da guerra entre as duas coroas. Mal entrou em Lisboa, recebeu ordem de se recolher ao convento de Alcobaça, onde reviu o seu Vocabulário Português e Latino e várias outras obras. Em 1713, concluída a paz, obteve licença para residir em Lisboa. D. João V ordenou que fossem impressas todas as suas obras e nomeou-o académico do número, quando foi, em 1720, fundada a Real Academia de História, pois já pertencia, então, à Academia dos Generosos e à Academia dos Aplicados.

Destacou-se nas Conferências Discretas e Eruditas na casa do conde da Ericeira e na Academia dos Generosos, como divulgador da atividade científica das academias europeias. Discorreu, por exemplo, sobre Astronomia moderna e sobre os seus diversos sistemas, preocupando-se com as questões relativas à duração da terra, então foco de polémica. Criticava a lógica da Escolástica, acusando-a de especulativa, formalista e inútil, em nome da orientação vincadamente nominalista. Nas atividades literárias, foi uma espécie de intermediário entre Portugal e a cultura francesa, sobretudo na difusão do magistério de Boileau, e esteve atento às questões económicas, voltadas para a reforma da vida do homem em sociedade. Privilegiou os estudos de línguas mortas e vivas, especialmente as que falava com desembaraço: o Inglês, o Francês, o Italiano, o Português, o Espanhol e o Grego. Foi prepósito do convento de São Caetano e faleceu aos 95 anos.

Entre as obras que escreveu, sobressai o já referido Vocabulário Português e Latino, sob um título descritivo com o recurso a adjetivos, colocados por ordem alfabética, mostrando a variedade de temáticas abordadas. Por outro lado, refere o destinatário especial da obra em oito volumes in folio e dois de suplemento, bem como as circunstâncias da sua publicação e a identificação do seu autor, como se pode ler na portada do Volume I, edição digita da Biblioteca Nacional:  

“VOCABULARIO PORTUGUEZ, E LATINO, AULICO, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Chimico, Dogmatico, Dialectico, Dendrologico, Ecclesiastico, Etymologico, Florifero, Forense, Fructifero, Geographico, Geomecrico, Gnomonico, Hydrographico, Homonymico, Hierologico, Ichtyologico, Indico, Isagogico, Laconico, Liturgico, Lithologico, Medico, Musico, Meteorologico, Nautico, Numerico, Neoterico, Ortographico, Ornitologico, Poetico, Phisiologico, Pharmaceutico, Quidditativo, Qualitativo, Quantitativo, Rhetorico, Rustico, Romano, Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapeutico, Technologico, Vinologico, Xenophonico, Zoologico, autorizado com exemplos dos melhores escritores portuguezes, e latinos: E offerecido a El-Rey de Portugal D. João V pelo padre D. Raphael Bluteau, clérigo regular, doutor na Sagrada Theologia, pregador da Rainha de Inglaterra Henriqueta Maria de França e calificador no Sagrado Tribunal da Inquisição de Lisboa. Coimbra. No Collegio das Artes da Companhia de Jesu. Anno 1712. Com todas as licenças necessarias.”

O ano de 1712 é o da publicação do Volume I, pois a publicação da obra decorreu de 1712 a 1728.

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O corpus dicionarístico tem cerca de 7200 páginas, a que se juntam cerca de 500 páginas de dicionários especializados e glossários, e um corpus paratextual de perto de 200 páginas. O Vocabulário reúne cerca de 42 mil artigos, mas o número mais importante é a massa textual com mais de três milhões de palavras na parte dicionarística, de que cerca de três quartos são palavras portuguesas. A lista dos conteúdos de cada volume revela uma estrutura complexa, em que o dicionário português-latim é acompanhado de glossários temáticos, composições poéticas e textos preambulares com dispersa informação metalexicográfica. Os textos mais relevantes são:

Volume I (A) Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712: Prólogo do autor a todo o género de leitores; Catálogo alfabético, topográfico e cronológico dos autores portugueses, citados pela maior parte na obra; Catálogo de outros livros portugueses, cujo autor se dissimula ou se ignora, também citados na obra; Catálogo dos autores portugueses, segundo as matérias, que tratarão; abreviaturas das citações dos livros portugueses e a declaração delas; Sumária notícia dos antigos autores latinos, citados nesta obra, para exemplares da boa latinidade; e Abreviaturas das citações dos autores latinos e a declaração delas.

Tomo II (B-C) Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.

Tomo III (D-E) Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1713.

Tomo IV (F-I) Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1713.

Tomo V (K-N) Lisboa, Oficina de Pascoal da Silva, 1716.

Tomo VI (O-P) Lisboa, Oficina de Pascoal da Silva, 1720.

Tomo VII (Q-S) Lisboa, Oficina de Pascoal da Silva, 1720.

Tomo VIII (T-Z) Lisboa, Oficina de Pascoal da Silva, 1721: Dicionário Castelhano; Prosopopeia do Idioma Português à sua irmã, a Língua Castelhana; Tábua de Palavras Portuguesas, remotas da Língua Castelhana; Dicionário Castelhano e Português, para facilitar aos castelhanos o uso do Vocabulário Português e Latino.

Suplemento I (A-L) Lisboa, oficina de José António da Silva, 1727: Prólogo segundo ou segunda advertência do autor aos leitores, já nomeados nas primeiras folhas do primeiro volume do Vocabulário; Advertências a todo o leitor para o uso deste Suplemento; Catálogo de mais de cinco mil vocábulos, acrescentados aos oito volumes do Vocabulário Português e Latino, ou com mais amplas notícias declarados no Suplemento que se segue a este catálogo.

Suplemento II, Lisboa, na Patriarcal oficina da Música, 1728: outros dez vocabulários: Vocabulário de nomes próprios, masculinos e femininos, antigos, e não usados, vulgares, raros, e muito raros; Vocabulário de Sinónimos e Frases Portuguesas; Vocabulário de termos próprios e metafóricos em matérias análogas; Vocabulário de nomes, que ficaram de plantas, tomados do Latim e do Grego, para evitar circunlocuções; Vocabulário de Cavalaria; Vocabulário de termos comummente ignorados, mas antigamente usados em Portugal, e outros trazidos do Brasil ou da India Oriental e Ocidental; Vocabulário de palavras e modos de falar do Minho, Beira, etc.; Vocabulário de Títulos; Vocabulário de Artes nobres e mecânicas; Vocabulário de Vocabulários.

E ainda: Apologia do Autor do Vocabulário e do Suplemento, ilustrada com a censura do Conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes; Censura da Apologia do Padre D. Rafael Bluteau pelo Conde da Ericeira; Apologia do Autor do Vocabulário Português e Latino; e Censura sobre as matérias concernentes ao Reino de Portugal e suas Conquistas, referidas do Grande Dicionário Histórico de Luis Moreri.

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O trabalho de Rafael Bluteau é o ponto de referência fundamental para compreender o processo de renovação da descrição da língua, da tipologia dos dicionários e das funções que atribuíveis a tais instrumentos metalinguísticos. Na segunda metade do século XVII, a valorização do património linguístico e literário postulava a edição de dicionários. Dispondo só de obras cujo objetivo era descrever o Latim, esperava-se um dicionário que ampliasse a nomenclatura do Português, mostrando que a língua possui léxico para todos os registos. Porém, era complexo definir as caraterísticas desse dicionário, já que a inexistente oferta editorial deixava inúmeras necessidades por colmatar, pois o público escolar e quem buscava um instrumento de cultivo da língua reclamavam obras distintas na configuração tipológica. Um único dicionário não era, pois, solução bastante, não se prevendo a renovação e diversificação do tipo de obras dicionarísticas.

Uma opção seria reformular e ampliar as obras existentes, que eram instrumentos escolares, configuradas a partir de modelos da dicionarística latina bilingue, adequadas à nossa tradição pedagógica, mas que não poderiam crescer muito em tamanho, sem comprometer a sua funcionalidade. Outra hipótese era aproveitar o corpus literário, selecionando a nomenclatura e os exemplos de acordo com critérios que garantiriam coerência à descrição da língua. Todavia, essa tarefa pressupunha um trabalho colaborativo, credibilizado por um suporte institucional, o que a agitada vida política e militar neste período não favorecia.

No final do século, acentuava-se a consciência do desfasamento entre a dicionarística portuguesa e a lexicografia bilingue de outros países, com obras que incluíam ampla descrição do vernáculo, expressões e frases autorizadas. Alguns dicionários estrangeiros foram enriquecidos com maior quantidade de informação extralinguística. Conjugavam-se os fatores para que o novo dicionário esteja aberto à incorporação de modelos tipológicos estrangeiros, com informação enciclopédica, o que dispensava uma ampla equipa redatorial. À época, não havia notícia do interesse por um dicionário monolingue, porque a cultura e a língua clássicas tinham relevante papel na educação da nobreza e no ensino em geral e porque era mister apresentar à Europa culta o Português como justo herdeiro do latim.

Tal dicionário foi elaborado pelo Padre Rafael Bluteau, compilando imensa obra, com base no material que acumulou para aprender a língua, adaptando-o aos modelos lexicográficos da sua preferência. Bluteau é, para a história da língua e para cultura portuguesa, um ativo intermediário da cultura francesa e do património dicionarístico europeu. Os seus textos mostram que comparava e entendia as línguas na linha da intercomunicação de significados, e não de acordo com descrições gramaticais. Os dicionários foram, para o frade teatino, essenciais à aprendizagem das línguas e instrumento de acesso à erudição e ao conhecimento atualizados. O modo como descreve o Português deve mais à interessada leitura de dicionários do que à teorização lexicográfica com alguma consistência e originalidade. Na sua concepção, cada palavra dá acesso a sentidos sob a forma de notícias do que a palavra representa.

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Se já houvesse comboio, automóvel, avião, telefone, rádio, televisão, computador, Internet, redes sociais, tablet, iPed e inteligência artificial, de tudo isso teria falado o inefável Bluteau.

2023.11.18 – Louro de Carvalho

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