sábado, 4 de novembro de 2023

Incerteza: Zona Euro entre a recessão e a inflação

 

Pela primeira vez, nos últimos 15 meses, a instância responsável pela política monetária da Zona Euro não deu novas más notícias para as famílias e para as empresas endividadas da Zona Euro. Com a inflação a recuar e a economia quase a entrar em recessão, o conselho do Banco Central Europeu (BCE), na sua reunião, em Atenas, a 26 de outubro, optou pela não subida das taxas de juro, mas deixou no ar a dúvida,​ acentuada pelo conflito no Médio Oriente,​ sobre o que poderão vir a fazer nos próximos meses. Isso aconteceu, apesar de a presidente do BCE, Christine Lagarde, ter avisado para juros altos, durante um período prolongado.

Como apontam os indicadores e os economistas, a inflação na Zona Euro está a descer, tendo ficado nos 4,3%, em setembro, mas ainda é mais do dobro dos 2% de referência para o BCE. Simultaneamente, está muito débil a economia do espaço da moeda única, que terá contraído no terceiro trimestre, queda que ameaça repetir-se nos próximos trimestres. O contexto é de estagflação (combina inflação elevada, estagnação económica e aumento do desemprego), com o risco de recessão a crescer. A guerra em Gaza, além do drama humanitário, é mais uma variável negativa a pesar no cenário da economia. Os efeitos na Europa ainda são limitados, mas a eventual escalada do conflito pode ser catastrófica.

Foi com este pano de fundo que o BCE voltou a reuniu: as projeções das principais organizações internacionais para a economia da Zona Euro, neste ano, são de estagnação, com 2024 pouco melhor. Porém, crescem “os sinais de recessão na Zona Euro”, segundo uma nota do Commerzbank Aktiengesellschaft (o segundo maior banco comercial da Alemanha), destacando os índices PMI (Purchasing Managers’ Index), que são barómetro da atividade económica. Em outubro, o índice para o setor dos serviços caiu para 47,8 pontos e está “em território de recessão desde há três meses”, diz a nota, apontando que o índice para a indústria transformadora re­cuou para 43 pontos, permanecendo em “território recessivo há meses”. Por outro lado, a subida das taxas de juro de referência do BCE (subiram para 4,5% em mais de um ano) “está a abrandar a economia em todos os países da Zona Euro”, tendo o espaço da moeda única caído 0,1% no terceiro trimestre, face ao trimestre anterior.

Francisco Louçã, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa, diz que a política de juros altos do BCE leva à distorção da estrutura financeira, ao empobrecimento de parte da população, à acumulação de superlucros no sistema financeiro e à redução do investimento. “Tem um efeito recessivo”, diz, vincando que “o BCE quer reduzir a procura para baixar a inflação, mesmo que à custa de uma recessão”. Sustenta que “a causa desta inflação não é procura excessiva, mas uma espiral de preços de oligopólios, que, com a guerra, têm o álibi perfeito para manter superlucros”, e que o BCE o sabe, pois “tem estudos onde são atribuídos aos lucros das empresas cerca de dois terços da subida da inflação na Zona Euro”. Porém, como “nada é feito sobre isso e a situação está a cristalizar-se”, verifica: “Temos uma inflação de 5%, este ano, a cavalgar uma inflação de 8%, no ano passado. Estamos a caminho de uma situação de estagflação e mesmo de recessão na Europa.”

Ricardo Reis, professor da London School of Economics, no Reino Unido, admite que talvez estejamos a caminho de uma recessão. “Tendo em conta o enorme choque que foi o aumento dos preços da energia, seria de esperar uma recessão”, vinca, lembrando que os preços da eletricidade e do gás natural “ainda estão muito acima de 2019”. Salienta que, até agora, “a economia tem-se revelado extremamente resiliente”, mas o choque é “de tal forma negativo que leva a um crescimento modesto em 2023 e 2024, talvez mesmo a uma pequena recessão”, sendo a causa “o choque energético”, não “a política monetária”.

E João Borges de Assunção, professor da Católica-Lisbon, sustenta que a inflação e a subida dos juros contribuem para a deterioração das perspetivas económicas. Vinca o “risco de contrações em cadeia do PIB [produto interno bruto]”, começado “já no terceiro trimestre de 2023” (terminou em setembro), e “pode haver uma contração no próximo ano”. Contudo, “o nosso cenário central para a Zona Euro é um crescimento de 0,4%, este ano, e de 0,7%, no próximo”, adianta, lembrando que “o desemprego da Zona Euro se mantém em níveis historicamente baixos”, parecendo difícil “falar de recessão sem uma subida significativa do desemprego”.

A guerra em Gaza complica mais o cenário. O drama humanitário é evidente, mas o impacto económico, nomeadamente para a Europa, para já, é contido. Sente-se instabilidade financeira e nos preços das matérias-primas. O barril de petróleo brent subiu mais de 9%, após os ataques do Hamas a Israel, mas o preço aliviou nos últimos dias e o aumento está nos 4%. Quanto ao gás natural de referência na Europa, acumula a valorização de 37% (chegou a ser de 41%).

Francisco Louçã nota que “a situação em Gaza é imprevisível” e o impacto “depende da escalada da situação, que pode ser catastrófica”, vindo os efeitos a ser “sempre negativos sobre a confiança e o investimento”. E a João Borges de Assunção parece “prematuro que esses efeitos alterem, de forma material, as perspetivas de evolução do produto”. Para Ricardo Reis, se os preços da energia dispararem, a recessão tornar-se-á “mais provável” e haverá choque inflacionista. Por si só, o choque seria temporário e sem impacto persistente na trajetória da inflação”, diz o economista, considerando que é cedo para especular sobre o conflito”. E Borges de Assunção diz que o conflito afetará o preço do petróleo e a inflação subjacente, que retira as varia­ções de preços dos bens mais voláteis, e para a qual o BCE olha com mais rigor.

Contudo, após mais de dois anos com a inflação na Zona Euro, acima dos 2%, “as expectativas estão parcialmente desancoradas”, alerta Ricardo Reis. Assim, “se um aumento nos preços da energia levar estas expectativas a subirem, isso porá seriamente em causa a trajetória descendente da inflação”. E avisa: “Se a inflação não estiver a descer de forma suficientemente rápida para regressar ao alvo de 2%, o BCE tem de subir as taxas de juro.”

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Há 10 anos, Portugal integrava as cinco economias da Zona Euro resgatadas pela troika, desde 2010, de bancarrota tida como certa pelos mercados. A nossa dívida integrava o clube das cinco piores do euro, juntamente com a Grécia, a Irlanda, Chipre e a Espanha, sucessivamente resgatados. Entretanto, ocorreu uma revolução na geografia do prémio de risco exigido pelos investidores para deterem dívida de alguns dos periféricos do euro.

A Irlanda subiu rapidamente para o clube dos melhores da Zona Euro, reduzindo a dívida pública para menos de 80% do PIB, já em 2015, e Portugal trilhou um caminho de vários anos para se financiar com juros de longo prazo mais baixos do que a Espanha. Nos mais recentes leilões, na dívida a vencer em 2029, o Tesouro português pagou o juro médio de 3,181%, enquanto o espanhol pagou 3,679%. Numa obrigação a vencer em 2035, Portugal pagou 3,632%, menos do que Espanha, num título a vencer mais cedo, em 2033, em que Madrid pagou 4,067%. Segundo as previsões recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) para 2024, o rácio da dívida portuguesa no PIB já será inferior ao da Bélgica e ao da França.

Apesar da subida dos juros da dívida desde as anteriores reuniões do BCE até 14 de setembro, graças ao agravamento do ciclo de aperto monetário, é irreconhecível a posição portuguesa com lentes dos tempos da troika, quando a nossa economia se incluía no pejorativo acrónimo dos PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). Desde 14 de setembro, os juros a 10 anos para a nossa dívida subiram pouco mais de duas décimas, registando 3,58%.

O ataque do Hamas, de 7 de outubro não agravou a trajetória: os juros desceram de 3,63%, a 6 de outubro (véspera da operação o dia 7) para 3,58%, a 25 de outubro. Em termos de prémio de risco exigido pelos investidores, o spread para a dívida portuguesa é, agora, mais baixo do que para 11 outras economias do euro. Está já muito próximo do prémio exigido para a dívida belga. O prémio de risco corresponde ao spread exigido em relação ao custo de financiamento da dívida alemã, referência na Zona Euro. Num leilão recente de dívida portuguesa a vencer em 2032, Portugal pagou 3,383%. A Bélgica, na colocação de dívida a vencer em 2033 pagou 3,586%. O Tesouro português ainda não lançou nova referência de dívida a 10 anos, a vencer em 2033, pelo que não é possível a comparação direta com as emissões belgas e espanholas.

Segundo as projeções do algoritmo do portal World Government Bonds (WGB), especializado na dívida pública mundial, a manter-se o nível de aperto monetário do BCE ao longo de 2024, a trajetória de fundo dos juros será ascendente. Em dezembro do próximo ano, os juros portugueses no prazo de referência devem chegar a 4,5%, cerca de 1% mais do que atualmente. Apesar de maior custo do financiamento das novas emissões de dívida de longo prazo, em 2024, a concretizar-se tal projeção, os juros portugueses deverão estar entre os cinco mais baixos da Zona Euro, se a estratégia orçamental apresentada para 2024 se concretizar. O nível de juros português será similar ao da dívida neerlandesa e apenas superior ao da Alemanha e da Irlanda.

Apesar da queda do rácio no PIB, a trajetória da dívida pública portuguesa foi de agravamento até julho. Segundo dados do Banco de Portugal (BdP), a dívida pública aumentou de 272,44 mil milhões de euros, no final de 2022, para 280,93 mil milhões, em julho. Em agosto, registou-se uma redução de dívida de 468 milhões. O BdP ainda não disponibilizou os dados para setembro, mas a tendência de redução deve ter continuado a atender aos dados que a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) publica sobre dívida direta do Estado (diferente da avaliada pelo BdP, na ótica dos critérios de Maastricht). O stock da dívida direta reduziu-se cerca de mil milhões de euros, em setembro, caindo 292,58 mil milhões, em agosto, para 291,58 mil milhões, em setembro. E recentemente, Portugal amortizou uma obrigação lançada em 2008, que tinha um saldo de 9364 milhões, e não realizou, em outubro, a colocação de nova dívida em bilhetes ou obrigações do Tesouro, tendo só feito operações de troca de dívida.

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Tudo isto se reflete nas taxas de juro Euribor. Ao fim de quase dois anos de subidas, o aumento das taxas de juro Euribor estará perto do fim. Os mercados antecipam que o pico seja atingido até final deste ano, num patamar quase em linha com os valores atuais. A partir do início de 2024, espera-se uma descida nas taxas de juro Euribor, mas as famílias não terão grande alívio nas prestações do crédito à habitação, pois o recuo deverá ser lento e contido.

Depois de anos em território negativo e atingidos mínimos históricos em dezembro de 2021, as taxas de juro Euribor começaram a subir no início de 2022, o que se intensificou desde o verão de 2022, por causa do aperto da política monetária do BCE para combater a inflação. Em pouco mais de um ano, o BCE aumentou as taxas de juro de referência em 4,5%.

Como resultado, as taxas de juro de mercado Euribor disparam, atingindo os valores mais altos desde novembro de 2008, máximos renovados recentemente, no caso da Euribor a três meses (nos 4%) e a seis meses (nos 4,14%) e, no final de setembro, no caso da Euribor a 12 meses (4,23%). Desde então, as Euribor aliviaram ligeiramente, mas mantêm-se perto desses patamares. Em Portugal, o impacto foi sentido em força pelas famílias. Há cerca de 1,5 milhões de contratos de crédito à habitação em pagamento, tendo quase 93% taxa de juro variável indexada à Euribor, nalgum dos prazos (o mais frequente, em termos de número de contratos, é a seis meses).

Com a Euribor a disparar, as prestações mensais têm sofrido forte aumento. Porém, como esperam os mercados, a subida das taxas Euribor e das prestações mensais da casa deve estar perto do fim. Os contratos futuros sobre a Euribor a três meses, que traduzem as expectativas dos investidores, sinalizam que o pico será atingido até fins de 2023, nos 4%, patamar quase em linha com os valores atuais. Assim, as taxas Euribor subirão pouco e durante pouco tempo, caso se cumpra a expectativa dos mercados. Os investidores estão pendentes das mensagens do BCE, com as taxas de juro na agenda. Porém, a evolução da guerra em Gaza pode induzir alterações.

Agora, mais do que dramática, a situação é incerta e o futuro está de tempestade.

2023.11.04 – Louro de Carvalho

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