terça-feira, 31 de outubro de 2023

Igreja Católica em Espanha em evidência nos abusos

 

A Provedoria de Justiça espanhola entregou, a 27 de outubro, ao Congresso dos Deputados, o “Relatório sobre os abusos sexuais no âmbito da Igreja Católica e o papel dos poderes públicos – uma resposta necessária”, no qual se estima que 1,13% da população adulta em Espanha tenha sido vítima de abuso no seio da Igreja Católica, quando era menor de idade, o que corresponderá a cerca de 440 mil dos 38,9 milhões de adultos espanhóis.

Na apresentação do estudo de 779 páginas, solicitado há um ano e meio pelo Congresso (não pela Igreja), o provedor espanhol de Justiça, Ángel Gabilondo, “evitou os números a todo o momento”, como assinala a revista “Vida Nueva”. Não obstante, confirmou que o inquérito realizado a 8.013 pessoas revelou que 11,7% afirmam ter sido vítimas de abuso sexual antes de terem completado 18 anos, e que 1,13% dizem que os abusos ocorreram no contexto da Igreja. Há 0,6% que indicam que os abusadores foram padres ou religiosos, número que – extrapolado – corresponderá a mais de 200 mil pessoas e que é “semelhante ao encontrado em estudos realizados noutros países”.

Gabilondo informou também que a unidade de atendimento às vítimas, criada no âmbito deste estudo, para recolher testemunhos, recebeu 487 denúncias de abusos, que aconteceram desde 1940 até ao presente, tendo o pico ocorrido entre 1960 e 1970, coincidindo com “os anos da ditadura franquista”, e começando a decrescer a partir dos anos 80.

Três em quatro vítimas relatam ter sido apalpadas, 22% reportam masturbação passiva e 16% ativa. Foram reportados 115 casos de violação.

 O relatório, que foi disponibilizado online refere que a “resposta da Igreja Católica, pelo menos a nível oficial, foi caraterizada, durante muito tempo, pela negação ou minimização do problema” e que só “pouco a pouco”, à medida que os casos foram sendo conhecidos e como “consequência das diretrizes emanadas pela Santa Sé, os representantes da Igreja em Espanha foram tomando medidas e posições mais firmes, ainda que mais orientadas para a prevenção do que para a reparação”. “Algumas vítimas tiveram de enfrentar, não só a negação e ocultação, como até pressões e reações dos seus representantes, nas quais foram responsabilizadas pelos abusos sofridos”, pode ler-se no documento.

Defendendo que as vítimas “merecem ser escutadas, atendidas e correspondidas”, o provedor espanhol de Justiça deixou várias recomendações à Igreja, entre elas, a promoção de um “ato público de reconhecimento e de reparação simbólica” e a abertura por parte das dioceses e institutos de vida consagrada do “acesso à informação contida nos arquivos”. Além disso, preconiza a criação de um “fundo estatal para o pagamento de compensações a favor das vítimas”,

O relatório conclui que é necessário “prestar a máxima atenção tanto aos processos de seleção” dos membros do clero, bem “como à sua formação, para deteção de abusos”.

Entretanto, a Conferência Episcopal Espanhola (CEE) fez saber que já convocou uma assembleia plenária extraordinária para 30 de outubro, com o objetivo de analisar o relatório. Paralelamente, está a decorrer um estudo sobre os abusos na Igreja encomendado pela própria CEE ao Escritório Cremades & Calvo Sotelo, o qual pediu para “prorrogar o prazo de entrega dos trabalhos”, pedido esse que também foi avaliado durante a assembleia extraordinária.

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Foram mais de cinco horas de reunião, com apenas um terço dos bispos presentes e os restantes via Zoom. No final da Assembleia Plenária Extraordinária da Conferência Episcopal Espanhola, convocada para a tarde de 30 de outubro, na sequência da apresentação do relatório da Provedoria de Justiça sobre os abusos sexuais no âmbito da Igreja, foi divulgado um comunicado que sustenta que a extrapolação feita dos dados obtidos num inquérito – que indica ter havido 440 mil casos de abusos desde 1940 – “surpreende”. Os números, asseguram os bispos, “não correspondem à verdade, nem representam o conjunto de sacerdotes e religiosos que trabalham, lealmente e com entrega da sua vida, ao serviço do Reino”.

O comunicado dos bispos espanhóis, citado pelo jornal “Religión Digital”, refere que estes “valorizaram, de maneira especial, o testemunho recolhido das vítimas, que permite colocá-las no centro. Consideraram-se também valiosas as recomendações propostas neste relatório”.

Assinalando que “não ter em conta a magnitude do problema e a sua dimensão largamente extraeclesial significa não enfrentar as causas do problema e perpetuá-lo no tempo” e que, “além disso, centrar-se exclusivamente na reparação das vítimas da Igreja, discriminaria a maioria das vítimas, transformando-as em vítimas de segunda classe”, a CEE assegura que, “caso se constitua um fundo de compensação para reparar as vítimas a partir das autoridades públicas”, a Igreja contribuirá para o mesmo.

O principal “ponto de atrito” desta reunião, refere o Religión Digital, terá sido “o que fazer com a auditoria [sobre os abusos na Igreja Católica espanhola] encomendada ao escritório Cremades & Calvo Sotelo”, em fevereiro do ano passado, cujos resultados já deveriam ter sido entregues, mas cuja entrega se encontra atrasada. O escritório terá pedido uma prorrogação do prazo de entrega e os bispos decidiram adiar a decisão para a assembleia de novembro.

Seja como for, “a Igreja quer contribuir para a erradicação do abuso sexual na infância, não só na Igreja, mas em toda a sociedade, e coloca a sua triste experiência ao serviço da mesma, num espírito de colaboração”, conclui o comunicado da CEE.

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Além do referido comunicado, o portal do Vaticano “Vatican News” menciona uma conferência de imprensa da CEE, para discutir o relatório do Defensor cívico sobre abusos sexuais na Igreja e expressar a sua tristeza pelos danos causados, reafirmando o seu compromisso de erradicar esse flagelo na Igreja e na sociedade. Ao mesmo tempo, o secretário da CEE pede que a sombra da suspeita não se estenda a todos os sacerdotes: “A grande maioria trabalha fielmente a serviço do povo de Deus.”

“Dor, perdão e desejo de reparação”. Eis o sentimento expresso dos bispos espanhóis que, na manhã de 31 de outubro, apresentaram aos jornalistas o trabalho realizado na Assembleia plenária extraordinária realizada, a 30 de outubro, para analisar o relatório do Defensor cívico, Ángel Gabilondo, sobre os abusos sexuais na Igreja, publicado recentemente. Essa foi a quarta Assembleia plenária extraordinária realizada pela CEE, que contou com a presença de um total de 88 bispos, 31 bispos pessoalmente e 57 por vídeo.

O cardeal presidente, Juan José Omella, juntamente com o secretário-geral, Dom Francisco César García Magán, relataram os dois pontos-chave que analisaram: o estudo e a avaliação do relatório apresentado pelo Defensor cívico e o estudo do pedido da empresa Cremades & Calvo Sotelo para estender o prazo do trabalho que está a ser realizado em nome da CEE.

Os bispos expressaram tristeza pelos danos causados pelos abusos sexuais cometidos por alguns membros da Igreja e reiteraram o seu pedido de perdão às vítimas. Reiteraram, igualmente, o desejo de trabalharem juntos na reparação global e de aprofundar os caminhos para a proteção e o apoio aos sobreviventes e a prevenção de abusos. No entanto, a CEE disse-se surpresa com a extrapolação feita a partir de alguns dados obtidos num estudo anexado ao relatório. “Não correspondem à verdade”, diz um comunicado emitido pela CEE, “nem representam o grupo de sacerdotes e religiosos que trabalham com lealdade e dedicação das suas vidas a serviço do Reino”. Vários jornalistas presentes na conferência de imprensa insistiram no número de vítimas, mas o presidente do episcopado explicou que não queria entrar na questão das cifras: “São vítimas”, disse ele, essa é a única preocupação. Os bispos asseguram que trabalharão para garantir a reparação e o apoio: “Existe a vontade de todos”.

A Conferência Episcopal assegura que se junta ao pedido do Defensor cívico, instando o Estado a implementar as recomendações contidas no relatório às várias instituições, para que elas assumam as suas responsabilidades em pôr fim a este flagelo que afeta toda a sociedade.

Juntamente com a responsabilidade da Igreja na questão dos abusos, o estudo do Defensor apresenta uma visão geral do problema também fora da Igreja: “o abuso sexual contra menores é um problema social ao qual todas as instituições públicas e empresas privadas têm o dever de responder”, diz o estudo. “Não levar em conta a extensão do problema e a sua dimensão amplamente extraeclesial significa não enfrentar as causas do problema e perpetuá-lo ao longo do tempo”, afirmam os prelados espanhóis. “Um único caso de abuso já é intolerável”, reiteram, expressando o compromisso de erradicar os abusos sexuais contra menores na Igreja e na sociedade.

Durante a conferência de imprensa, o secretário da CEE, Dom Francisco César García Magán, quis enfatizar que “é injusto e falso estender uma sombra de escuridão e suspeita sobre todos os sacerdotes e pessoas consagradas”. “A grande maioria de nossos sacerdotes e religiosos”, disse, “trabalha fiel e desinteressadamente, servindo ao povo de Deus, tanto nas paróquias como nas comunidades, e naquelas áreas da Espanha esvaziada e rural, prestando serviço espiritual e de acompanhamento, porque estamos a falar de solidão e de uma população idosa. Aí temos muitos padres que trabalham com horários heroicos.”

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É de salientar, além da surpresa dos bispos, a sua determinação em se juntarem à postura da Provedoria de Justiça, a manutenção do estudo por eles requisitado e, sobretudo, apesar de criticarem a extrapolação (que se entende necessária como estratégia metodológica), afirmarem categoricamente a necessidade da extinguir o flagelo na Igreja e na sociedade, incluindo a contribuição pecuniária para o sugerido fundo estatal.

Também é de enaltecer a tentativa de equanimidade da Provedoria de Justiça ao salientar as respostas que a Igreja, no meio da sua grande heterogeneidade, tem vindo a dar ao problema. Com efeito, o relatório especifica, no quadro das respostas da Igreja, o marco jurídico e institucional; atuações específicas da Igreja em Espanha, ante as denúncias de abuso sexual, e a atenção às vítimas; e respostas da Igreja ao defensor do povo.

Por outro lado, o relatório fala dos abusos noutras confissões religiosas e das obrigações também dos Estados, quer na prevenção, no combate e na reparação, a nível pecuniário, mas sobretudo psicológico.

Por fim, é de inteira justiça não tomar a árvore pela floresta e lançar o labéu sobre todos os agentes ativos da Igreja Católica.

2023.10.31 – Louro de Carvalho

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