quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Certa direita admite que não tem solução para a crise da habitação

 

 

No dia 5 de outubro, o Notícias de Aveiro publicou um artigo intitulado “Resposta à “Grenoeconomics da habitação”, do biólogo e político Nelson Peralta – que trabalhou em projetos de investigação científica na área dos recursos marinhos no Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro (CESAM-UA) e que participou noutros projetos de investigação sobre recursos aquáticos – contrapondo às narrativas correntes a sua narrativa sobre a crise da habitação, que, na minha modesta opinião, valerá a pena ter em conta.

A pedra de toque surgiu, na última sessão da Assembleia Municipal de Aveiro, da parte de Jorge Greno, deputado municipal do Partido do Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP), o qual se dirigiu à esquerda, sustentando, com toda a clareza e ironia, que “a direita não tem solução para a crise do preço da habitação”.

O articulista, frisando que o deputado municipal diagnosticou mal as causas do problema, faz-lhe dois agradecimentos: por explicar que, na temática da habitação, a oposição da direita é aos partidos da esquerda e não ao governo do Partido Socialista (PS); e “por clarificar que a direita (e o PS) não tem solução para o problema.

Em todo o caso, segundo Nelson Peralta, o arquiteto Jorge Greno (da GRENO Consultores, empresa dedicada à consultoria imobiliária) “repete o mantra da direita: o preço da habitação aumentou, porque há menos oferta e mais procura”. E, porque o afirma dogmaticamente, sustentando que “é uma questão básica de mercado”, pois, “se há mais oferta, o preço desce” (“está estudado há centenas de anos”), o articulista entende que deve responder, acolhendo o repto do deputado municipal do CDS-PP: “Estudem!”

O autarca do CDS-PP referiu os dados da construção a par a diminuição do número de pessoas por agregado familiar. No atinente ao primeiro aspeto, apontou de 120 mil novos fogos habitacionais, em 2002, para 7 a 19 mil por ano, na última década; e, quanto ao segundo, disse que há mais famílias). Porém, segundo as contas de Nelson Peralta, “no país, de 2011 para 2021, construíram-se 111 mil novas casas e há 105 mil novas famílias, ou seja, o saldo de construção é positivo”. É isto que Marques Mendes omitiu, contrariando qualquer uma das versões, quando disse, há tempos, no seu comentário dominical da SIC, que não houve, praticamente, construção de casas na última década (de 2011 para 2021). 

Todavia, o deputado municipal em referência, nas suas próprias palavras, contradisse a teoria que havia enunciado com toda a certeza e jactância. Começou a sua intervenção de fundo a relevar que Aveiro foi, a nível nacional, um “dos concelhos que mais aumentou o seu parque habitacional nos últimos cinco anos”. Assim, fez aumentar a oferta de habitação, mas os preços não desceram; e, em Aveiro, os preços não cresceram menos do que no resto do país. Pelo contrário. Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam que, do final de 2019 para o início de 2023, os preços, em Aveiro, subiram 40% quando, no país, subiram 24%.

Não se pode alegar irrelevância nisso, sob o pretexto de que é fenómeno europeu e até mundial.

É verdade que a subida dos preços da habitação é um fenómeno global, de todo o Ocidente, e não apenas fenómeno português. Por isso, a escassez que há, nalgumas cidades portuguesas, não é a força motriz do fenómeno e muito menos da sua escala.

O que mudou, segundo Nelson Peralta, foi a estrutura da economia capitalista ocidental. A saída da crise de 2008 teve duas respostas sem precedentes: juros muito baixos ou negativos e “quantitative easing” (política dos bancos centrais de injetar quantidades massivas de dinheiro na economia, sem paralelo na história da Humanidade).

Esta forma de solucionar a crise e de minimizar as suas consequências produziu um efeito perverso. A combinação daqueles dois fatores (juros baixíssimos e “quantitative easing”) potenciou o aumento desmesurado dos rendimentos do capital, “criou super-ricos como nunca antes, permitiu a acumulação de capital sem precedentes e criou uma enorme desigualdade social”. Os novos super-ricos e gigantes fundos imobiliários “entraram em força no imobiliário”, “um ativo seguro e pouco volátil”, de que precisavam para depositarem “as suas novas fortunas”.

Por exemplo, Amancio Ortega, dono da Zara (uma única pessoa) recebeu, neste ano, 1,7 mil milhões de euros de dividendos, que investiu na aquisição de imobiliário.

A lei da oferta e da procura, enunciada categoricamente por Jorge Greno, cede à complexidade da realidade atual. Presentemente, na procura, não releva “o número de famílias a necessitar de casa”, mas “a capacidade financeira da procura, que não representa, necessariamente, a necessidade social de habitar”. Aí “o que conta é o mercado mundial de habitação, criado nesta nova configuração do capitalismo no Ocidente”. Lá está a oportunidade dos novos super-ricos e dos fundos, que engrossaram com o dinheiro barato até agora. É por isso que a nova construção, em Portugal, está quase toda direcionada para o segmento “premium” de preços, porque se destina a investidores ou a “quem está no topo da desigualdade social”.

Está visto que, em tempo de crise grave, há sempre aqueles que aproveitam a oportunidade para enriquecerem à custa de tudo: da falta de bens essenciais, da dificuldade de circulação de bens, da paragem da atividade empresarial, do descontentamento generalizado, da resignação de tantos, do desespero de muitos (que se dispõem a esvaziar as suas carteiras, para obterem aquilo de que necessitam), da tentação do açambarcamento, dos subsídios estatais, das solidariedades, etc.    

O fenómeno é internacional, mas os governos de Portugal não podem assobiar para o lado, alijando a sua responsabilidade. E os governos do PS – neste campo, não se distinguem da direita – e os do Partido Social Democrata (PSD) ajudaram a construir o “mercado globalizado de habitação para investimento”. Até foram mais longe do que grande parte dos países: vistos gold, estatuto de não residentes, nómadas digitais, turistificação das habitações, alojamento local, etc. É por isso que, agora, com a inversão da política de taxas de juro e com o fim do “quantitative easing”, os preços da habitação estão a baixar ligeiramente em vários países, mas em Portugal continuam a subir, continuando a especulação e o descontentamento.

Por outro lado, Portugal é exceção na Europa, no âmbito da habitação, o que o torna vulnerável: praticamente, não tem habitação de propriedade pública. Na Holanda 30% da habitação é pública, na Áustria são 25% (na sua capital, Viena, são 50%). Em Portugal, são 2%.

Chegámos a este estado de coisas, graças à opção da política de juros bonificados por parte do PS, do PSD e do CDS-PP. Também essa opção política, feita para beneficiar, teve um efeito colateral nefasto: aumentou os preços da habitação. O principal resultado foi transferir sete mil milhões de euros do Estado para a banca. Esse dinheiro, a valores dos anos 80 e 90, se fosse usado para construir habitação pública para arrendamento a custos controlados, teria produzido efeito mais benéfico. Hoje, a capacidade de o Estado regular o mercado é bem diferente. Porém, em minha opinião, ou o Estado intervém ou o problema não se resolve e os protestos sobem de tom.

É de anotar que, além da população residente, a população que se desloca para estudar ou para trabalhar precisa de sítio para habitar, que não encontra ou os encontra a preço incomportável.  

O deputado municipal em referência sustenta que “a única solução é construir mais”. Todavia, vê isso como não possível, por não haver trabalhadores disponíveis; e, mesmo havendo-os, a solução do problema “demorará vários anos”. Ora este discurso, embora não intencional, mostra “o valor do trabalho” e que “só o trabalho gera riqueza”. E, sendo factual que “a taxa de desemprego fora das camadas jovens é extremamente baixa”, é de concluir, do meu ponto de vista, que enfermamos de vícios, como a falta de adequado direcionamento do trabalho, a má organização e o insuficiente planeamento do trabalho e da empresa, a falta de formação dos empresários, a deficiente motivação e formação profissional (sobretudo quando substitui o emprego), a subvalorização salarial, a falta de condições para trabalho digno, a precariedade e a ausência de perspetiva de carreira atraente e a falta de articulação entre a vida profissional e a pessoal e familiar.     

A honestidade de Jorge Greno faz-lhe dizer que, face a um dos maiores problemas da atualidade, a direita que integra assume que não tem solução e acha que o Estado nem deve intervir, a não ser para facilitar a vida dos privados. Porém, na ótica de Nelson Peralta, “há solução”. E essa passa pela efetiva redução da taxa de juro, responsabilizando a banca que, em Portugal, está a lucrar 11 milhões de euros por dia; pelo controlo do valor das rendas, como 16 países da União Europeia (UE) já estão a fazer; pela proibição de compra de casa por não residentes, uma vez que essa se destina a investimento e não a habitação; e pela garantia de que as habitações serão utilizadas para a sua função social de habitação, não para um mercado global de investimento, incluindo um conjunto vasto de medidas fiscais.

Jorge Greno considera a lei da oferta e da procura como “o elemento mais importante para a nossa vida” e diz que a esquerda nem a conhece. Não obstante, é de recordar que Adam Smith, no seu livro “A Riqueza das Nações” (obra fundadora da ciência económica), lançou a popularização dessa lei, mas faz o seu enquadramento ao tempo e enuncia as condições em que funciona. Adam Smith e os principais autores do liberalismo clássico “representam a rutura e a defesa do sistema capitalista [nos primórdios] contra a sociedade do feudalismo aristocrata [dominante], cuja riqueza provinha de rendas fundiárias”. Criticaram, drasticamente as rendas, que classificaram “de atividade económica diretamente improdutiva”, ao invés do trabalho e do capital.

Também a doutrina social da igreja (DSI) – que o CDS-PP diz seguir, enquanto partido que assume a lógica da democracia cristã – é clara, ao vincar que “a tradição cristã nunca reconheceu o direito à propriedade privada como absoluto e intocável”. Ao invés, “sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens”. Diz ainda que a propriedade é “não um fim, mas um meio” e que importa “reconhecer a função social de qualquer forma de posse privada”.  é clara na defesa da intervenção direta do Estado na economia: Nos casos em que o mercado não consegue obter os resultados de eficiência desejados e quando se trata de traduzir em ato o princípio redistributivo.” (Ver Conselho Pontifício “Justiça e Paz”, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Ed. Principia).

Pode dizer-se que os imóveis do Estado que não utilizados devem ser convertidos em unidades habitacionais, através de venda ou de arrendamento mais acessíveis ou, pelo menos, a custo controlado. Nada tenho a opor. No entanto, deixo duas advertências: por norma, os edifícios do Estado foram concebidos para finalidades específicas, pelo que a sua conversão em unidades habitacionais se torna muito dispendiosa (acessível a quem tenha muito dinheiro) e muito lenta (pelo peso burocrático e pelo tempo necessário para intervir na arquitetura, transformando até algumas estruturas). Se for o Estado, a fazer obra, será solução, mas a longo prazo. Por outro lado, os imóveis do Estado devolutos estão, normalmente, em estado adiantado de degradação, o que encarece demasiado a obra de restauro, de recuperação ou de reconversão.

Além disso, o Estado não pode vender a esmo, nem ceder de qualquer maneira; e deve reservar para si estruturas de que venha a precisar em tempo não muito distante.

Há municípios que demoliram edifícios e blocos habitacionais, com a promessa de construção de muitos outros, que não foi cumprida ou o foi só parcialmente, o que não devia ter acontecido.    

Seja como for, o Estado tem de, a nível central, regional local, aumentar em muito, a oferta pública de habitação e tem de intervir na definição de preços de venda e de arrendamento, legislando, fiscalizando, onerando fiscalmente lucros excessivos e incentivando a habitação social e a preços controlados. Para grandes males, grandes remédios!

                                                2023.10.18 – Louro de Carvalho

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