terça-feira, 17 de outubro de 2023

A guerra na Ucrânia tem contornos e consequências religiosas

 

A guerra na Ucrânia tem consequências religiosas, da parte do poder político, na relação entre as diversas Igrejas ortodoxas entre si e, ainda, na relação com a Igreja Católica.

A nível político, a grande notícia é que o Parlamento ucraniano (Verkhovna Rada) pretende ilegalizar a Igreja ortodoxa alinhada com Moscovo. Com efeito, foram ineficazes as diligências do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) para congraçar as duas principais Igrejas ortodoxas da Ucrânia: a historicamente ligada ao Patriarcado de Moscovo (IOU-PM) e a autocéfala, recente, ligada ao Patriarcado Ecuménico de Constantinopla (IOU-PEC).

Como declarou, em comunicado, Jerry Pillay, secretário-geral do CMI, apesar dos melhores esforços, “obstáculos práticos e políticos” tornaram o arranque do “processo de diálogo” impraticável”. Foram aprovadas rondas de diálogo no verão de 2022, na cidade de Karlsruhe, na Alemanha, aquando da XI Assembleia do Conselho Mundial das Igrejas. Não obstante, o líder do CMI continua a acreditar que o compromisso da IOU-PM e da IOU-PEC é “uma base essencial para o processo de diálogo”, com vista a “promover a coesão social entre o povo da Ucrânia, no seu percurso como nação livre e independente, e pela busca mais ampla da paz num mundo profundamente dividido e em conflito”.

Este falhanço ocorre quando o Parlamento se prepara para apreciar, em primeira leitura, um o projeto de lei n.º 8371, visto por vários setores como preparação do terreno para o banimento da IOU-PM. O projeto visa alterar parcialmente a lei ucraniana “sobre a liberdade de consciência e as organizações religiosas” em determinados aspetos. Num dos artigos é adicionada uma alínea que refere: “Não são permitidas atividades de organizações religiosas que estejam afiliadas a centros de influência de uma organização religiosa, cujo centro de direção esteja localizado fora da Ucrânia, num Estado que leve a cabo uma agressão armada contra a Ucrânia.”

O projeto foi submetido à Rada pelo primeiro-ministro, no início do ano, mas, segundo Peter Anderson, especialista que acompanha de perto as questões do universo ortodoxo, ainda não tinha avançado por não estar assegurado o apoio de, pelo menos, 226 deputados. Porém, no início de outubro, o deputado Oleg Dunda declarou que o diploma podia avançar para primeira leitura, já que “o apelo dos deputados do povo para proibir a IOU-PM” havia recolhido cerca de 240 assinaturas. Quem reagiu a estes desenvolvimentos foi o Patriarcado de Moscovo e o próprio Cirilo, que apelou a várias instâncias internacionais – Vaticano, CMI, Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) … – contra este atentado à liberdade religiosa.

Também o CMI manifestou “sérias preocupações” quanto à eventual proibição da UOC e à conformidade da decisão com as normas internacionais sobre liberdade religiosa.

A mensagem, citada pelo jornal Strana, terá sido canalizada por Peter Prove, diretor da Comissão das Igrejas para os Assuntos Internacionais do CMI, notando que, segundo as conclusões do Gabinete de Peritos Científicos do Parlamento [ucraniano], a linguagem do projeto de lei “não cumpre os requisitos constitucionais” e o texto do projeto “não foi revisto na sequência desse parecer consultivo”. A este ponto, que é também sublinhado na análise da situação feita e publicada por Peter Anderson, o CMI acrescenta que é inaceitável a aplicação do princípio da responsabilidade coletiva às organizações religiosas.

“Os indivíduos que cometeram traição ou outros crimes contra a Ucrânia, no contexto da invasão russa, devem […] ser responsabilizados ao abrigo das leis ucranianas, através de processo legal adequado. No entanto, proibir ou punir a Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU-PM) como um todo, sem provas claras e públicas de que a própria Igreja representa uma ameaça genuína para a segurança nacional da Ucrânia, seria […] profundamente divisivo e contraproducente”, escreve Peter Prove, vincando que muitos membros da UOC servem “nas Forças Armadas da Ucrânia” e todas as famílias ligadas à Igreja, como todas as famílias ucranianas, têm “filhos, irmãos, pais, homens ou outros membros da família em risco na defesa da Ucrânia contra a agressão russa”.

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Nos últimos meses, tem-se assistido, na República da Moldávia, à transferência maciça de clero da Igreja Ortodoxa Moldava (IOM), vinculada a Moscovo, para a Igreja Metropolitana Ortodoxa autónoma da Bessarábia, canonicamente ligada ao Patriarcado da Roménia. O fenómeno agudizou-se desde 13 de julho de 2023, quando o patriarcado e o governo romenos assinaram um protocolo de cooperação com o Departamento de Relações Externas da República da Moldávia, perante o metropolita Petru. O clero viu-se obrigado a corresponder às orientações do patriarca Cirilo, incluindo a legitimação da invasão da Ucrânia pela Rússia, e a receber o salário do orçamento do Estado, com um governo que se demarca da influência russa e se abre ao Ocidente. A isto soma-se o facto de um tribunal de recurso de Chisinau, a capital, ter anulado dois acordos entre o governo moldavo e a IOM, o que, segundo a oposição pró-russa, pode levar ao confisco dos mosteiros dessa Igreja e a expulsão dos monges.

Os acontecimentos apontam para a estratégia governamental de neutralização dos ortodoxos ligados a Moscovo, em consonância com um vasto setor político e da opinião pública do país que recusa a influência de Cirilo, devido à sua política, face à guerra. Segundo o blogue Parlons d’Orthodoxie, o partido no poder, da Presidente da República, Maia Sandu, defende o corte radical entre os ortodoxos moldavos e o patriarcado de Moscovo e está a examinar a possibilidade de transferir o edifício da Academia Teológica de Chisinau para a jurisdição da Igreja Ortodoxa em que superintende o metropolita da Bessarábia. E prevê-se que a Universidade da Moldávia retome o ensino da Teologia, agora ministrado por académicos vindos da Roménia. E a oposição pró-russa fez soar o alarme, badalando que a Igreja Ortodoxa Moldava está a ser atacada.

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O Patriarca Ecuménico Bartolomeu, de Constantinopla, disse, a 1 de setembro, que os esforços que desenvolveu para a unidade e cooperação das Igrejas ortodoxas autocéfalas (independentes) “foi destruído, nos últimos anos, por uma nova Eclesiologia, que vem do Norte, e por uma nova Teologia, a Teologia da guerra”.

Bartolomeu falava na abertura do ano novo eclesiástico (Indicção), a que presidiu, acompanhado pelo metropolita Epifânio “de Kiev e de toda a Ucrânia” e líder da Igreja Ortodoxa Ucraniana autocéfala. E a sua reflexão liga-se com o afastamento e rutura desta Igreja relativamente a Moscovo, que se começou a desenhar a partir de 2014 e se formalizou com o reconhecimento da sua autocefalia em 2019, e ganhou força com a invasão da Ucrânia. “É esta Teologia que a Igreja irmã da Rússia começou a ensinar, para tentar justificar uma guerra injustificada, profana, não provocada e diabólica contra um país soberano e independente, a Ucrânia”, especificou.

O patriarca considerou que, desde há quase dois anos, se vive uma tragédia no centro da Europa, pela degradação das relações entre as duas Igrejas e devido ao derramamento de sangue: “150 mil, talvez 200 mil soldados russos foram mortos nesta guerra, cerca de 100 mil soldados ucranianos e inúmeros civis. […] Isto, evidentemente, também tem um impacto nas relações das respetivas igrejas ortodoxas irmãs”, fez notar. E, referindo ter recebido propostas de várias Igrejas para que o Patriarcado Ecuménico convoque nova conferência pan-ortodoxa ou uma assembleia (sinaxe) de primazes para “tratar da questão eclesiástica ucraniana”. “O nosso Patriarcado – assegurou – rejeita estas propostas, porque não está disposto a submeter ao julgamento das outras Igrejas um ato canónico que ele próprio realizou”. E explicou: “Digo ato canónico, porque a concessão da autocefalia à Igreja da Ucrânia, com os seus 44 milhões de fiéis, foi feita no quadro dos direitos e responsabilidades diaconais do Patriarcado Ecuménico.”

Uma região que tem sentido o forte impacto da invasão da Ucrânia pela Rússia é a dos Estados bálticos (Lituânia, Estónia e Letónia), que fazem fronteira com a Rússia e integraram, até 1991, a União Soviética. As suas Igrejas ortodoxas integravam, como na Ucrânia, o Patriarcado de Moscovo. A eclosão da guerra e o receio do expansionismo da política de Putin funcionaram como fatores de pressão sobre aquelas Igrejas, no sentido de “tomarem uma posição clara contra a guerra e distanciarem-se do Patriarcado de Moscovo”, como apontou Sebastian Rimestad, do Instituto de Estudos de Religião da Universidade de Leipzig.

Na Lituânia, cinco padres ortodoxos discutiram, em 2022, a transferência do vínculo para Constantinopla, rompendo com Cirilo, e o bispo suspendeu-os, mas o titular do Patriarcado de Constantinopla (primus inter pares) visitou o país e debateu com o governo a possibilidade de criar, ali, nova jurisdição eclesiástica autónoma, ligada a Constantinopla. E o metropolita local declarou discordância de Cirilo quanto à guerra e requereu a Moscovo o estatuto de autonomia.

Na Letónia, o metropolita foi duro com a cobertura do Patriarca de Moscovo à guerra e à violência militar russa. Apesar de a Igreja ortodoxa local gozar de autonomia, foi o governo a declará-la autocéfala, obrigando-a a alterar os estatutos. O novo enquadramento foi enviado ao Patriarcado de Moscovo, mas ainda não houve pronunciamento. Cirilo poderia vir a considerar a autocefalia da Letónia como uma declaração puramente política, sem consequências canónicas.

Na Estónia, há algumas especificidades, pois a Igreja Ortodoxa está dividida desde 1996, com uma parte ligada ao Patriarcado de Moscovo e a outra ao de Constantinopla. A invasão da Ucrânia e as posições dúbias do metropolita têm acicatado as divergências pré-existentes, representando “potencial para novas divisões”.

E Rimestad conclui que, “embora as igrejas ortodoxas do Báltico sejam pequenas e não sejam uma voz poderosa no mundo ortodoxo, a forma como respondem pode, no entanto, ter impacto na futura reconciliação ou numa maior divisão da ortodoxia mundial”.

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Neste contexto, Cirilo e Francisco têm um encontro no horizonte, mas visões antagónicas.

Desde a visita à China do cardeal Matteo Zuppi, enviado do Papa, a explorar caminhos para o términus da guerra na Ucrânia, as posições de Moscovo deram sinais de maior flexibilidade, no plano político e na esfera religiosa, mas o caminho é longo.

Apesar de o regresso de Zuppi à Rússia não estar marcado, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Serghei Lavrov, assegurou que a deslocação acontecerá e que Moscovo está pronto a recebê-lo. Essa possibilidade terá sido objeto de desenvolvimentos, na entrega de cartas credenciais do novo embaixador russo junto da Santa Sé. Já relativamente ao patriarca Cirilo, esteio na política bélica de Putin, a informação existente indica que há abertura russa para um encontro entre ele e o Papa, mas os passos teriam de partir do Vaticano.

Segundo o arcipreste Nikolai Balashov, conselheiro de Cirilo, a Igreja Ortodoxa Russa permanece aberta a novo encontro entre o Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia e o Papa; esse encontro deve ser devidamente preparado para ser eficaz; estão em funcionamento os canais para essa interação, levados a cabo pela Igreja Ortodoxa Russa através do Departamento para as Relações Eclesiásticas Externas; porém, devem esperar-se passos pró-ativos do Vaticano.

No entanto, tal encontro está longe de significar aproximação de posições, no atinente à busca da paz. Em recente deslocação à base militar de Vilychinsk, no extremo leste do país, onde estão sediadas as forças marítimas da frota do Pacífico da Federação Russa, que inclui submarinos equipados com ogivas nucleares, Cirilo foi consagrar uma nova igreja destinada a serviço religioso de civis e de militares. Aí invocou a “bênção de Deus, para que, pela ajuda divina”, os soldados “não tenham medo de qualquer força inimiga”.

Defendendo que “a formidável arma” que está nas mãos dos soldados “nunca deve ser usada”, o patriarca  afirmou: “Tive a oportunidade de ver a formidável arma para a defesa da nossa pátria. […] Que o Senhor proteja a terra russa, o nosso povo, as forças armadas e a nossa Igreja. Que todos juntos sejamos um só exército espiritual e temporal, capaz de defender as fronteiras sagradas com a nossa força militar, a nossa competência profissional e a nossa lealdade à pátria”. Mostrando a articulação entre ele e Putin, Cirilo rezou  pelo Presidente, “um verdadeiro ortodoxo, o comandante supremo Vladimir Vladimirovich Putin”, que pediu a Cirilo para ser portador das saudações presidenciais para todos os militares e seus familiares.

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Em contraste, o Papa Francisco escreveu numa publicação divulgada na sua conta da rede social X (ex-Twitter): “A posse de armas atómicas é imoral, porque – como observava João XXIII na encíclica Pacem in Terris – ‘não é impossível que um facto imprevisível coloque em movimento a máquina da guerra’. Sob a ameaça de armas nucleares, todos somos sempre perdedores!”

Enquanto “Cirilo recorre à fé para confirmar a necessidade das armas, inclusive as nucleares, Francisco denuncia a sua imoralidade, não só quanto à utilização, mas também à sua posse”, considera Lorenzo Prezzi, no Settimana News. Também Paul R. Gallagher, secretário da secção para a relação com os Estados, da Secretaria de Estado do Vaticano, em discurso na Organização das Nações Unidas (ONU), a 26 de setembro, e Daniel Pacho, seu colaborador na Secretaria de Estado, em discurso à Agência Internacional de Energia Atómica, no mesmo dia, em Viena, reiteraram o pedido do Papa por um desarmamento atómico.

E não se pode esquecer o equívoco surgido entre a Igreja Católica da Ucrânia e o Vaticano pelo facto de o Papa haver incitado os jovens russos ao cultivo das suas raízes históricas, o que levou ao protesto da chefia da diplomacia diplomática ucraniana a criticar o Pontífice e o chefe de Estado a declarar inadequado o Vaticano para qualquer mediação.

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Enfim, a guerra prejudica as relações entre as diversas confissões cristãs e cria ruído entre as mesmas e os poderes políticos.

2023.10.17 – Louro de Carvalho

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