domingo, 22 de outubro de 2023

Cimeira da Paz no Cairo foi um esforço diplomático em vão

 

Juntaram-se, a 21 de outubro, na cidade do Cairo, Egito, 34 países – árabes e ocidentais –, a convite do Estado anfitrião, para debaterem a questão do conflito israelo-palestiniano. Uns e outros pediram um cessar-fogo entre Israel e o Hamas, a entrega de ajuda maciça à Faixa de Gaza e solução definitiva para aquele conflito no Próximo Oriente, que dura há 75 anos.

No entanto, o encontro, em que Israel não participou, terminou sem um comunicado conjunto, devido à falta de acordo entre os países árabes e os ocidentais, como informaram diplomatas árabes, no momento em que António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), advertia que a Faixa de Gaza enfrenta “uma catástrofe humana”.

Fontes diplomáticas disseram à Agência France Presse (AFP) que as negociações para o comunicado final conjunto emperraram em dois pontos: a recusa dos países árabes em assinar a “condenação clara ao Hamas” e “o pedido de libertação dos reféns” feito pelos ocidentais.

Assim, a reunião terminou com um comunicado da presidência egípcia que agradece o esforço na busca de consenso, acima de posições políticas ou religiosas, para enfrentar esta crise e a situação entre Israel e a Palestina, com especial foco na Faixa de Gaza, mas critica “uma comunidade internacional que mostrou, nas últimas décadas, a incapacidade de encontrar uma solução justa e duradoura para a questão palestiniana”. “Enquanto vemos um lado a condenar prontamente o assassinato de pessoas inocentes, do outro lado vemos uma hesitação incompreensível em denunciar o mesmo ato. Vemos até tentativas de justificar este assassinato, como se a vida do ser humano palestiniano fosse menos importante do que o de outras pessoas”, reza o comunicado.

Em resposta, Telavive lamentou a falta de condenação do “terrorismo islâmico”. “É lamentável que, mesmo depois de ter que enfrentar essas atrocidades horríveis, haja quem tenha dificuldade de condenar o terrorismo ou reconhecer o perigo”, critica o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel.

Quando se vive a iminência da entrada terrestre do exército israelita em Gaza, depois de Israel ter garantido que aumentaria, a partir do dia 21, a intensidade dos ataques, a Cimeira da Paz terminou sem um resultado consensual. Verificou-se, desde início, que, entre os participantes na reunião, havia um consenso a favor da ideia de reativar a solução de “dois Estados”, proposta em 1974 pela ONU, mas foi notada a falta de sensibilidade entre o mundo árabe e o Ocidente no atinente à avaliação da situação dos Palestinianos, com fontes árabes a informarem a agência espanhola EFE que a declaração final não foi produzida, apesar do acordo em muitas questões, devido à recusa europeia em responsabilizar Israel pelas mortes de civis e exigir o cessar-fogo.

Abdel Fattah el-Sissi, presidente egípcio, rejeitou qualquer conversa sobre a expulsão dos 2,3 milhões de Palestinianos de Gaza para a Península do Sinai e advertiu contra a “liquidação da causa palestiniana”. E o rei Abdullah II da Jordânia classificou o cerco e o bombardeamento de Gaza por Israel como “um crime de guerra”.

Os dois discursos refletiram a raiva crescente na região, mesmo entre os que têm laços estreitos com Israel e que, muitas vezes, têm trabalhado como mediadores, à medida que a guerra desencadeada pelo ataque terrorista do Hamas entra na terceira semana, com o número de vítimas a aumentar e sem fim à vista.

Para Germano Almeida, analista de questões internacionais, em termos da cimeira, a “grande declaração do dia”, do ponto de vista do que se poderá promover no terreno, foi a do líder palestiniano. Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, disse que os Palestinianos “não serão expulsos” das suas terras. “Nunca se demarcou muito do Hamas – que, como se sabe, é uma força oposta à Autoridade Palestiniana – e isso também denota muito do que se vive atualmente no terreno”, apontou o analista.

Segundo Germano Almeida, o secretário-geral da ONU teve “a posição mais equilibrada”, na medida em que apontou as queixas do povo palestiniano como legítimas, não deixando de condenar o grupo islâmico Hamas pelo ataque perpetrado contra civis israelitas, mas sublinhou que esse ataque não pode legitimar o massacre do povo palestiniano na Faixa de Gaza. Disse também, muito concretamente, que “é preciso muito, muito mais” do que aqueles 20 camiões” que entraram em território de Gaza, no dia 21, pela fronteira de Rafah, pela primeira vez em 15 dias, com ajuda humanitária.

O analista de questões internacionais opina que “não houve nenhuma novidade muito concreta” com esta cimeira, mas que ela trouxe “alguns sinais importantes”, a começar pelas ausências – de Israel, como se antevia, e dos Estados Unidos da América (EUA), como se poderia prever.

“Isto mostra como os EUA têm uma diplomacia própria que não depende da União Europeia (UE)”, diz Germano Almeida, vincando as idas de Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano a território israelita, bem como a visita de Joe Biden, presidente dos EUA, a Israel.

Da parte dos países europeus, assistiu-se, em uníssono, à ideia de considerar legítima a defesa de Israel perante o ataque do Hamas de 7 de outubro, embora pedindo uma desescalada da guerra e apelando ao alívio do sofrimento dos dois milhões de civis presos em Gaza. Já do lado dos países árabes houve uma musculada condenação dos ataques de Israel a Gaza.

Na opinião de Germano Almeida, “o mais importante do dia passou-se num telefonema entre o chefe de diplomacia do Catar e Antony Blinken, que se estão a articular para libertar reféns de Gaza”. Isto porque, na ótica do comentador, o Catar parece “ser o país com mais condições de negociação – por ser o único que consegue falar com o Irão, com o Hamas e com Israel, por intermédio dos EUA”.

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Neve Gordon, israelita e professor de direito internacional, diz que a Europa, em vez de pedir o fim da violência, “empurra Israel para continuar”.

Conhecido por se posicionar contra as ações do seu país nos territórios palestinianos, o professor de Direito Internacional e Direitos Humanos na Queen Mary University de Londres, no Reino Unido, diz que as declarações e ações dos EUA e de alguns países europeus estão a legitimar Israel a continuar o ataque a civis em Gaza. E explica como se sente a sociedade israelita no momento de iminente ataque por terra àquele território.

Autor do livro “A ocupação de Israel”, de 2008, Neve Gordon integra a minoria que acredita na solução de um só Estado com duas nacionalidades onde todos os cidadãos tenham direitos iguais. E, em entrevista a Joana Ascensão, do Expresso, disse acompanhar com preocupação a iminente entrada por terra na Faixa de Gaza, pela possibilidade de escalar a guerra para um conflito regional, mas vê com maus olhos as declarações dos países ocidentais que se posicionam ao lado de Israel, aceitando a “desumanização” da população civil palestiniana, para legitimar a agressão, como “aconteceu aos judeus no Holocausto”.

Questionado sobre a efetiva perpetração de crimes de guerra, sustenta que estescomeçaram com os ataques do Hamas em Israel, que mataram cerca de mil e trezentas pessoas e em que foram raptadas cerca de duas mil”, a que se seguiu uma série de outros crimes de guerra por parte de Israel”, visando a “destruição da Faixa de Gaza”. Os cortes de água e de eletricidade, as ordens para que mais de um milhão de pessoas se desloquem para sul e os bombardeamentos da área populacional, de escolas, de hospitais – “tudo isto são crimes de guerra”.

O professor, que é membro ativo da Ta’ayush, organização não-governamental para o encontro entre o povo palestiniano e o povo judeu, não confia em nenhuma das partes: Hamas e Israel. Trata-se de uma guerra, “em que uma das primeiras vítimas, se não a primeira, é a verdade”. Ambos os lados já mentiram, muitas vezes, acerca das suas ações, sendo difícil, agora, saber quem mente “sobre este ataque em específico”, mas a verdade virá ao de cima.

Sobre a História menos recente, fala de “um projeto colonial de Israel” e de pessoas de Gaza que, há 16 anos, estão “postas numa gaiola com outros dois milhões de pessoas, a viverem em extrema pobreza, sem terem as necessidades básicas asseguradas, com os direitos violados e a quererem ser livres”. Da História mais recente, sublinha a fragmentação da sociedade israelita. Semanas antes do ataque do Hamas, a sociedade israelita estava completamente dividida e havia protestos contra o governo. Com o ataque, a que se junta “a falha do sistema de inteligência israelita” e a “falha na resposta militar imediata, muito por causa dos colonos que estavam na Cisjordânia a violentarem Palestinianos”, o que passou a unir a sociedade israelita “é a retaliação contra o Hamas e contra as pessoas em Gaza”. E o objetivo consensual é “atacar Gaza”, “destruir Gaza”.

Não obstante, há Israelitas contra a guerra, a quererem o cessar-fogo, como há “as famílias dos reféns do Hamas”. Diz o professor que “Israel é um país pequeno, onde toda a gente conhece ou alguém que foi raptado, ou alguém que conhece alguém que foi raptado”. Por isso, estas pessoas “querem um cessar-fogo, porque entendem que o objetivo dos militares é matar os raptores, mesmo que isso signifique matar os reféns”, seja por causa dos ataques aéreos, seja pelo “iminente ataque por terra”. Neste momento, há um grande movimento dentro de Israel para encontrar uma solução para os reféns. Muitas pessoas querem a retaliação, mas, antes, a troca de prisioneiros. E há uma parte muito pequena, entre cinco mil a dez mil, num país com oito ou nove milhões de Judeus, que considera Israel um estado colonialista e está mesmo contra o que está a acontecer. E o professor pertence a esse grupo.

Questionado sobre se considera natural que a maioria dos países europeus apoie a ofensiva de Israel, em primeiro lugar, vê os factos: a França e a Alemanha proibiram protestos a favor dos Palestinianos. No Reino Unido, são reprimidos estudantes que apoiam a libertação dos Palestinianos. Os EUA enviam aviões carregados para a região, Antony Blinken veio a Israel uma e outra vez e Joe Biden também. Rishi Sunak, primeiro ministro do Reino Unido, envia barcos com armas para Israel. Quer dizer: em vez de pedirem a desescalada, apoiam.

Há um medo instalado de o conflito tomar proporções maiores e se tornar num conflito do Médio Oriente. Se as tropas de Israel entrarem por terra na Faixa de Gaza, o Hezbollah poderá entrar com toda a força no norte de Israel. E a mensagem que o Reino Unido e os EUA estão a passar, principalmente ao Irão e ao Hezbollah é para não entrarem em Israel, se Israel entrar em Gaza. Porém, entram em contradição, permitindo que Israel entre com tanques na Faixa de Gaza e pedindo “que toda a gente veja e não intervenha”.

Também fala do mito do “exército moral de Israel”. E diz que um dos processos para justificar a violência mortal sobre populações é desumanizar essas pessoas. Essa foi a estratégia nazi contra os Judeus. E, agora, é a dos países colonizadores: “os colonizados são sempre apresentados como bárbaros, como animais”, o que “justifica reprimi-los e matá-los”. Desde há muito, em Israel, mas sobretudo depois do ataque de 7 de outubro, aumentou a desumanização, em que o ministro da Defesa chama aos Palestinianos “animais humanos” e Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro, diz que Gaza é a “cidade do demónio”. Por outro lado, defende que o holocausto está sempre no subconsciente do judeu israelita; e o Estado de Israel é a única defesa contra o antissemitismo global. Assim, mesmo quando bombardeia Gaza, Israel sente-se vítima.  

Considera que o problema com a Europa é saber que a solução dos dois Estados é do passado, mas ainda apoia tal ficção. O que deviam fazer os líderes europeus era perceber que há uma realidade territorial que vai do Jordão ao Mediterrâneo e que, entre o Jordão e o Mediterrâneo, “há um regime de Apartheid”. Assim, a questão não é “haver dois Estados em paz, neste pedaço de terra”, mas como o “democratizarmos”: Um Estado binacional, com dois lados em igualdade de direitos, deveres e oportunidades? E a UE rejeita falar sobre isto, que é claro para todos.  

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A paz é possível, desde que se deseje acima de tudo. Importa, com vista à reconciliação, relevar as vozes de Judeus que defendam Palestinianos e as de Palestinianos que defendam Judeus.

2023.10.22 – Louro de Carvalho

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