quinta-feira, 5 de outubro de 2023

As instituições “mudam a bem ou mudarão a mal”

O que parece uma verdade de La Palisse foi um sério aviso deixado pelo Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, nas comemorações do 5 de Outubro – 113.º aniversário da implantação da República –, às instituições nacionais e às internacionais, sobretudo àquelas que Portugal integra ou com as quais se relaciona.

Embora politicamente mais contido do que em 2022 – em que aproveitou a efeméride para denunciar “erros, omissões, incompetências e ineficácias” na condução do país e lembrou que detém o poder de veto e o de dissolução parlamentar –, o chefe de Estado não deixou eclipsar a ferida que sente no país. E, condicionado pela necessidade de arrefecer a tensão instalada na coabitação com o primeiro-ministro (PM), deambulou por alguns meandros da História para desafiar António Costa que para mude de registo discursivo e de orientação governativa, pois o leme tem de funcionar na direção ajustada à rota pré-determinada (programa do governo).

O discurso do PR, de certo modo, parecia consonante com o do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, que falou primeiro. Efetivamente, o autarca, ao sustentar que temos de “recusar imagens idílicas de nós mesmos”, parecia querer atingir o irritante otimismo que o chefe de Estado encontra no governo.

Basicamente, a alocução presidencial tocou três pontos nevrálgicos: quando se perde tempo para “reformar a sério” e se fica no “esperar para ver”, acaba-se a mudar à força e mal, porque “atabalhoadamente”, pois as instituições mudam sempre “a bem ou a mal”; as “inércias” deixam atrás de si vazios que outros ocuparão, com potenciais riscos para as democracias (depois dos loucos anos 20 – tinha a República sido implantada há 13 anos –, a Europa acreditava que “dominaria sempre o Universo” e que “as guerras não regressariam”, mas findaram os impérios e instalaram-se as ditaduras); e, em 2023, “temos tempo e espaço para novos caminhos”, desde que saibamos reformar a sério”.

O repto que o PR lançou abrange as instituições nacionais e internacionais, no contexto de uma guerra global, sem olvidar os bloqueios nas questões climáticas por parte da Organização das Nações Unidas (ONU), da União Europeia (UE), da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e do mundo ibero-americano. Porém, inclui, explicitamente, as “instituições domésticas”, onde cabem o governo e todos os escalões da administração púbica, o parlamento, o sistema judiciário, as autarquias, as áreas metropolitanas e as comunidades intermunicipais. E os recados ao governo são nítidos, mas não exclusivos. Podemos evitar o pior, disse o PR, “se não nos habituarmos a prometer, ano após ano, que vamos reformar, sabendo que não vamos cumprir”. “Mais vale preparar a mudança do que deixar, para improvisos, acertos ou remendos de última hora, o que tinha de ser feito”.

Marcelo Rebelo de Sousa, aludindo “à guerra global feita de muitas outras guerras”, alertou para os tantos que insistem “em não ver que a balança de poderes do Mundo está em mudança”.

Segundo o PR, a situação agravar-se-á, se houver atrasos com o clima, com a energia, com a inteligência artificial ou em relação ao “peso das comunidades”, bem como se persistir a incapacidade ou a lentidão na superação da pobreza e das desigualdades sociais, no reconhecimento do papel da mulher ou do papel das minorias migrantes e dos jovens.

Há cem anos, vincou o chefe de Estado, na Europa e no Mundo, “ainda mandavam os do passado” e acreditava-se que “o liberalismo parlamentar de minorias era como que o fim da História”. Olhamos para o que era o Mundo, a Europa e Portugal, há precisamente 100 anos, e há realidades que, vistas a mais distância, nos impressionam”, vincou, recordando as dificuldades no acesso à educação, à informação e ao conhecimento que, “na altura, era acessível a privilegiados”.

Todavia, o PR defendeu que é possível ter “democracias mais fortes”, se não se optar por “esperar para ver”, pedindo reformas “a sério”, para evitar mudanças vindas dos pântanos e para “revolver águas paradas”. “A mudança chegar, porque se prefere a antecipação ao conformismo, a abertura ao fechamento, a alteração das mentalidades, das instituições e das práticas ao situacionismo e à inércia, só depende de nós. Nós, responsáveis a todos os níveis, nós povos, nós cidadãos de Portugal, da Europa e do Mundo”, sustentou.

“Podemos fazer organizações universais mais fortes, se não nos habituarmos a prometer, ano após ano, a sua reforma, sabendo que não vamos cumprir. Podemos reformar a sério, prosseguir o caminho das reformas, para não termos de ver contrarreformas fazerem ou pretenderem fazer aquilo que fizemos de conta que não importava assumir”, defendeu, advertindo para o risco que advirá, se as instituições e os sistemas demorarem “eternidades a compreender que devem evoluir e reformar-se, reaproximar-se dos povos e, desse modo, não deixarem espaço para que outros preencham o vazio que vão deixando atrás de si”. Tudo isto poderá suceder e mais depressa do que se pensa: a mudança submergir pântanos, revolver águas paradas, abrir comportas demasiado tempo encerradas”, alertou. Esta mensagem não é exclusiva para o governo.

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O anfitrião das comemorações, na Praça do Município, avisou que o divórcio entre a política e as pessoas pode criar um vazio “capturado pelas minorias barulhentas e pelos ativismos radicais” que podem levar ao fim do regime: “É este o atual divórcio que todos sentem entre a política e as pessoas. A política tem de voltar a ser vista, sentida e vivida pelas pessoas. Mas entre este mundo imaginário e o mundo real das pessoas, o que é que há? Há um vazio, capturado pelas minorias barulhentas e pelos ativismos radicais. À falta de um ativismo social moderado que dê respostas concretas, é a estes que as pessoas se agarram.”

O autarca sublinhou que os políticos, como atores sociais, têm a “responsabilidade ética, moral e social de não deixar que os Portugueses se habituem a discursos políticos inconsequentes”, que parecem falar de “um país imaginário onde não vivem as pessoas reais”. E lembrou que a República de 1910 se autodestruiu “também por causa dessas minorias barulhentas e desses radicalismos e, por isso, o 5 de Outubro é “também uma lição histórica”.

“Quem fomenta esses radicalismos arrisca-se a colher, mais cedo ou mais tarde, a dissolução do regime. Não queiramos nós, hoje, que caminhamos para os 50 anos do 25 de Abril, contribuir para um desfecho assim”, exortou.

O autarca de Lisboa dirigiu-se ainda aos trabalhadores que fazem Portugal, “todos os dias, com a sua dedicação”, muitos dos quais “pensam, com razão, que vivem sobrecarregados de impostos”, para lhes dizer que “é possível não trabalhar apenas para alimentar a máquina do Estado”. “Sim, é possível diminuir os obstáculos à vossa vida. Todos temos de fazer este esforço: Estado central e autarquias”, afirmou. E, a este respeito, Carlos Moedas relevou que, durante o seu mandato, a autarquia tem baixado os impostos. “E, para o ano, baixaremos mais um ponto percentual, devolvendo aos lisboetas 4,5% do seu IRS. Gradualmente, mas com firmeza”, porfiou.

“É preciso estar do lado das pessoas”, vincou. E, aproveitando para ‘vender’ o que tem vindo a fazer em Lisboa – baixar impostos, apoiar “um Estado Social local”, nas áreas da saúde e dos transportes – Carlos Moedas mostrou-se disposto a “ajudar” António Costa: “Senhor primeiro-ministro, pode contar connosco”, afirmou, garantindo que “todos os municípios” estão a trabalhar na resposta aos problemas sociais do país.

Tal como o PR fez, Carlos Moedas, a tentar moderar a crispação que, também em Lisboa, tem marcado a sua relação com o Partido Socialista (PS) e com o governo, pediu “moderação, bom senso e pragmatismo”. E fechou com a expressão do Papa Francisco – “Todos, todos, todos” – que marcou a recente Jornada Mundial da Juventude (JMJ).

Já a sua proposta da celebração dos símbolos nacionais foi provocadora, nomeadamente quando defendeu que “o que fazemos com os símbolos é a nossa responsabilidade” e anunciou que, em Lisboa, vai associar às comemorações do 25 de Abril “uma grande iniciativa para celebrar o 25 de novembro”. A esquerda é contra e o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, chegou a considerar inoportuno alargar as comemorações do 25 de Abril (a cuja comissão presidiu antes de ir para o governo) a datas “fraturantes”. Mas a discussão está em marcha e os “novos caminhos” de que fala o PR também passarão por aqui.

Porém, se todas as datas são importantes e não há ideologia na proposta, deverá estar aberto a comemorações do 28 de Setembro e do 11 de Março, para não falar do 16 de março de 1974.

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António Costa, que não usou da palavra nas comemorações (é esse o costume), considerou o discurso do PR uma “reflexão interessante”. “O discurso do senhor Presidente da República foi uma reflexão particularmente interessante para aquele alerta que todos temos que estar, que é preciso antecipar as questões para tomar as boas decisões.”

O PM considerou este alerta “particularmente oportuno” no momento em partia para Granada, em Espanha, para a III reunião da Comunidade Política Europeia e para uma reunião informal do Conselho Europeu, no dia 6 de outubro, onde se debaterá o que vai ser o futuro da Europa, do ponto de vista estratégico, e onde há decisões fundamentais a tomar relativamente ao alargamento. E isso é, no dizer do PM, uma condição essencial para assegurar uma paz justa e duradoura na Ucrânia, mas que implica, no caso concreto, que haja reformas na UE, “para que este alargamento seja um caso de sucesso como têm sido todos os outros”.

O chefe do executivo lembrou que Portugal aderiu à UE há relativamente pouco tempo, em 1986, e salientou a “extraordinária revolução” que o país teve desde esse ano. “E é aquilo que temos que garantir que todos os novos Estados-membros, seja a Ucrânia, sejam os países dos Balcãs Ocidentais, possam fazer também esse percurso e para isso é necessário que a União se prepare para isso”, frisou.

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Não vale a pena estar com rodeios. O PR disparou em várias direções. Atingiu o governo, como é óbvio, mas também as oposições, quase parecendo não acreditar que uma alternativa a este governo seja melhor ou mesmo igual. Não vale a pena os partidos à direita regozijarem-se com os recados ao PM ou (alguns) demarcarem-se de populismos e arruaças, como é vão o discurso à esquerda, no sentido de que o PR deveria ter ido mais longe nas críticas ao governo (não é por falar mais vezes e mais alto que este muda) ou no de que dá indicações, mas sem dizer como se aplicam (o PR não tem funções executivas stricto sensu).

Carlos Moedas surge como o pacificador, mais do que Marcelo, e cooperante para a instauração de um Estado social local. Uma ótima ideia, desde que o governo e todas as autarquias a assumam. Será convincente esta disponibilidade do autarca lisboeta, que revela sentido de Estado?

O PM, parecendo obnubilar o lado doméstico das advertências do PR, apontou para as instâncias internacionais. Tem alguma razão, pois as advertências presidenciais assumem uma índole universal. Resta saber se a Europa e as demais instâncias internacionais ouvirão nosso PR.

Contudo, Portugal tem de fazer tudo o que está ao seu alcance, a todos os níveis.

2023.10.05 – Louro de Carvalho 

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