sábado, 14 de outubro de 2023

Direção executiva do SNS tem estatutos, mas há questões a esclarecer

 

Entrou em vigor, há quase um ano, o novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS), aprovado através do Decreto-Lei n.º 52/2022, de 4 de agosto, que marcou uma suposta profunda mudança organizacional no SNS, fortalecendo a sua capacidade para investir na promoção da saúde e do bem-estar, permitindo-lhe oferecer mais eficiência, maior acessibilidade e melhores cuidados de saúde. E, com a criação da Direção Executiva (DE-SNS, I. P.), cuja orgânica foi aprovada pelo do Decreto-Lei n.º 61/2022, de 23 de setembro, diz o governo, “conferiu-se uma nova dimensão à estrutura de gestão e operacionalização do SNS, sendo essencial dotá-la de uma capacidade operacional efetiva, que a torne capaz de implementar as políticas e ações que permitirão promover a equidade de acesso, a otimização da utilização de recursos e a melhoria contínua da qualidade dos serviços prestados, num conceito de rede do SNS.

Faltava a publicação dos Estatutos da Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, I. P. (DE-SNS, I. P.), omissão que deu lugar a várias críticas (incluindo as de setores ligados à Saúde e as do Presidente da República) assinalando que o SNS não andava nem desandava e apontando a responsabilidade para o Ministério das Finanças sob cujo controlo e até limitação tem funcionado o Estado, desde há quase um século. Porém, após as ditas críticas e com vários meses de atraso, foi publicada a Portaria n.º 306-A/2023, de 12 de outubro, que “aprova os Estatutos da Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, I. P. [Instituto Público]”, com sede na cidade do Porto.

Porém, enquanto o médico Adalberto Campos Fernandes, antigo ministro da Saúde, sustenta que há “muitas perguntas por responder” e adverte que “vai haver um tempo de perturbação”, uma vez que “reformas desta magnitude demoram anos a preparar e a executar”, o economista Pedro Pita Barros alerta para riscos na articulação de competências entre as diversas entidades.

Este organismo, que está responsável por gerir o SNS, vai ter 11 departamentos, quatro serviços e três cargos de direção intermédia, absorvendo ainda as competências das cinco administrações regionais de saúde (ARS), que são agora extintas. Os departamentos são: o de Estudos e Planeamento; o de Contratualização; o de Gestão de Pessoas, Promoção do Bem-Estar, Diversidade e Sustentabilidade; o de Gestão da Rede de Serviços e Recursos em Saúde; o de Gestão de Instalações e Equipamentos; o de Sustentabilidade Económico-Financeira; o de Gestão da Transformação Digital; o de Compras e Logística; o de Gestão da Doença Crónica; o de Gestão da Qualidade em Saúde e Segurança do Utente; e o de Formação, Investigação, Inovação e Desenvolvimento. Os serviços são: o serviço de Gestão Interna, o serviço Jurídico, o serviço de Comunicação e Marca e o Serviço de Auditoria Interna. E os cargos de direção intermédia são os de diretor de departamento, de diretor de serviço e de coordenador de unidade.

O n.º 1 do artigo 1.º do anexo ao diploma, de que faz parte integrante, além dos departamentos e dos serviços, menciona “unidades”, que não vêm especificadas nos números seguintes. No entanto, o n.º 4 estabelece: “Por decisão do diretor executivo, a publicar no Diário da República, podem ser criadas, modificadas ou extintas até vinte e oito unidades orgânicas flexíveis, integradas ou não nos departamentos ou serviços referidos nos n.os 2 e 3, que assumem a forma de unidades e cujas competências são definidas naquela decisão.

Também o n.º 5 estabelece que, para o desenvolvimento de objetivos específicos de natureza multidisciplinar e temporária, podem ser constituídas por decisão do Diretor Executivo, a publicar no Diário da República, até ao limite máximo de dez equipas de projeto, mediante despacho”, o qual, nos termos do n.º 6, “define, para cada equipa de projeto, os objetivos, o período de duração e os recursos humanos a afetar, bem como designa o respetivo coordenador”.

O preâmbulo do recém-publicado diploma prevê que “a conclusão deste edifício organizacional imporá ainda, num futuro próximo, a introdução, a nível orgânico, de alterações à estrutura de organismos do Ministério da Saúde, designadamente da Administração Central dos Sistema de Saúde, I. P. [ACSS], e dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E. P. E. [Entidade Pública Empresarial], e a integração dos serviços das diferentes Administrações Regionais de Saúde, I. P., na DE-SNS, I. P., ou nas ULS [Unidades Locais de Saúde].

“É o estatuto possível, atendendo às condições em que a Direção Executiva foi criada”, afirma Adalberto Campos Fernandes, lembrando que a nova estrutura foi criada pela antiga ministra da Saúde, Marta Temido, quando o SNS enfrentava grande pressão das urgências hospitalares. O antigo ministro da Saúde reitera que todo o processo foi apressado“Viu-se, na altura, a dificuldade que foi elaborar o instrumento legal de enquadramento e viu-se que estivemos um ano à espera de um estatuto.”

Entre as competências da DE-SNS, consta ainda a designação dos responsáveis de direção dos hospitais EPE e dos agrupamentos de centros de saúde (ACS), a celebração de Parcerias Público-Privadas ou outros acordos com entidades do setor privado e social, bem como a gestão das redes nacionais de cuidados paliativos e de cuidados continuados e celebrar contratos-programa, entre outras competências. Porém, como aponta Campos Fernandes, há “muitas perguntas por responder”, por exemplo: “Como é que o financiamento é gerido, qual é o papel verdadeiramente da ACSS, os recursos humanos, os limites entre a própria ACSS e os hospitais, como é que fica a relação dos hospitais no seu grau de autonomia prometido?”

Já Pedro Pita Barros realça que a portaria tem muitas vezes a palavra ‘articulação’ em matérias onde se esperava que a DE tivesse “capacidade de decisão, em lugar de consenso articulado”. Para o especialista em Economia da Saúde e professor na Nova SBE, este pormenor tem riscos, dado que se pode cair em “dois pântanos”: culpabilizar o “outro”, num cenário de indecisão ou de ter corrido mal, “porque o outro lado não quis articular”; e “só o que for consensual, para as partes que têm de articular, será decidido”, pois, quando “houver divergências de opinião, não é claro como a ‘articulação’ vai resolver”. Além disso, diz Pita Barros, “como há também situações onde não é só articulação entre DE-SNS e ACSS, [mas] envolve SPMS [Serviços Partilhados do Ministério da Saúde] e/ou Infarmed, optou-se por uma abordagem de zonas cinzentas que será complicada de gerir em decisões onde haja visões fortes divergentes”. A este respeito, o antigo ministro da Saúde admite que “pode haver um impulso para capturar áreas de intervenção da DGS [Direção-Geral da Saúde]” que “devem ser tecnicamente independentes e devem ser poderosas”, dado que há ainda uma “zona de nevoeiro” sobre “onde acaba a ação política e onde começa a ação da Direção Executiva”.  É de notar que, entre os departamentos que integrarão a DE, está o de Gestão da Doença Crónica e o de Gestão da Qualidade em Saúde e Segurança do Utente, atualmente na alçada na DGS.

Campos Fernandes, que foi ministro do primeiro governo de António Costa, assume que estes estatutos poderão retirar autoridade política ao ministro da Saúde, dado que “toda a gente vai olhar para o diretor executivo como o futuro ministro e toda a gente vai olhar para o número dois da direção executiva como o novo diretor executivo”, sublinha, acrescentando que tudo “vai depender dos protagonistas”. “É preciso acautelar que esses riscos são minimizados e não querer que a Direção Executiva seja uma estrutura paternalista que faça aquilo que sempre combateram”, nomeadamente o diretor executivo, isto é, “que se sobreponha à desejável autonomia de gestão das ULS agora criadas”, sintetiza. É de notar, que no âmbito da reforma do SNS, para o próximo ano, vão ser criadas 31 ULS, que se juntam às oito já existentes.

Entretanto, Pedro Pita Barros sublinha que o organismo liderado por Fernando Araújo “deverá seguir as orientações políticas” definidas pelo governo e pela tutela, mas que, nas decisões técnicas, “o número de articulações com a ACSS [embora as haja também com outras entidades] sugere que as diferenças de opinião entre entidades tenham que vir a ser resolvidas por decisão do Ministério da Saúde”. O especialista em Saúde aponta ainda que “área menos clara é nos recursos humanos”, dado que não fica claro se “as negociações futuras de sindicatos devem ser feitas com a ‘entidade patronal’ SNS, dirigida pela DE-SNS, ou se continuará, como tem sucedido, no último ano, de forma muito mediática, centrada no Ministro da Saúde”.

Face a tais incertezas, Campos Fernandes diz que “tem de haver um tempo de operacionalização”, para que se verifique “quais são as virtudes e quais são as dificuldades que o estatuto encerra”, mas tem “esperança” de que o diretor executivo “tenha o génio e a arte” para ir testando, retificando e introduzindo” as mudanças necessárias. Porém, avisa, nomeadamente mercê da extinção das ARS: “Vai haver um tempo de perturbação. Não tenho dúvida nenhuma de que este processo, o primeiro ano de implementação destas medidas, vai ser difícil, vai ser duro, porque vão surgir muitas dificuldades“, sublinhando que “reformas desta magnitude demoram anos a preparar e anos a executar”. Para o ano, a DE-SNS contará com 300 funcionários e com um orçamento de 30 milhões, valor que compara com os 10 milhões alocados neste ano.

No âmbito da reforma do SNS, para o próximo ano vão ser criadas, como se disse, 31 ULS, que se juntam às oito existentes. Em junho de 2023, o SNS contava com 150.422 profissionais, mais 25% face a dezembro de 2015 e mais 10,8% face a dezembro de 2019.

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Antes dos estatutos, os especialistas diziam que a DE-SNS não tinha as competências clarificadas e que a generalização das ULS, no modelo de financiamento por capitação ajustada, traz riscos, pois, se estas gastarem mais do que o orçamento que lhes é atribuído, criam “dívida e pagamentos em atraso”, bem como “monstros administrativos e económico-financeiros”.

Campos Fernandes e Carlos Cortes defendem que esta entidade trouxe “enorme esperança e expectativa” de mudança, prometendo uma “visão global” do sistema de saúde público, ao “conectar as instituições”. No entanto, um ano depois, o bastonário da Ordem dos Médicos (OM) diz que ficou aquém das expectativas. Todos os problemas que havia, há um ano, mantêm-se e amplificaram-se, diz Carlos Cortes, dando o exemplo dos problemas com as maternidades, onde “há obstetras a apresentarem a demissão”. As urgências “estão cada vez piores” e continua o cenário de utentes sem médico de família e o das listas de espera para cirurgia e consulta.

Campos Fernandes ressalva que um ano “não é nada”, face às transformações no SNS. Porém, apesar da “vontade, motivação e determinação” de Fernando Araújo, o facto de a DE não ter estatutos aprovados não era “de menos importância”. E “talvez falte aquele gatilho que despoleta um envolvimento e uma mobilização dos diferentes stakeholders, das diferentes partes envolvidas neste processo”, admite. E Pedro Pita Barros realça que a “maior aposta” da DE foi o “esforço de generalização das ULS” e a redefinição do sistema de urgências, que “apesar do esforço feito, não terá conseguido todos os resultados esperados”.

Campos Fernandes vê benefícios nesta forma de gestão das ULS, mas considera erro implementar as ULS nos “grandes hospitais universitários”, por se tratar de unidades de ensino, de investigação e de referenciação e por não suportarem a criação de “monstros administrativos e económico-financeiros de elevadíssimo risco”. Já o bastonário considera que as ULS existentes “não deram provas de que realmente foram capazes de melhorar os cuidados de saúde”. 

Pita Barros realça que a generalização das ULS é exigente em acompanhamento e em ajustamento e que o financiamento por capitação é uma forma de “criar maior interesse das ULS em procurar assegurar uma melhor saúde da população”. Todavia, alerta para o risco de a ULS gastar mais do que o orçamento atribuído, perdendo o efeito do pagamento por capitação, e para o risco de uma ULS ter interesse em ‘exportar’ doentes mais complicados para outras ULS, o que baralhará o orçamento destas. Outro risco é o de o funcionamento da ULS ser dominado pelas necessidades hospitalares, o que perturba o funcionamento dos cuidados de saúde primários. Além disso, defende que, antes de proceder à generalização das ULS, a DE devia dar “maior atenção à questão dos pagamentos em atraso”, bem como “à melhoria da capacidade da gestão hospitalar”.

Todavia, a DE-SNS tem poderes limitados e, sobretudo, poderes mal definidos, quando deve ter capacidades e poderes efetivos para executar. Ao invés, não passará de mais um ente criado, para que, mudando, tudo fique, mais ou menos, na mesma. Mas haja esperança!

2023.10.14 – Louro de Carvalho

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