sexta-feira, 27 de outubro de 2023

A dessalinização, solução (não única) para a escassez de água doce

 

Vários fatores originam a falta de água doce. O consumo excessivo e o desperdício, a nível doméstico, público, agrícola e industrial tendem a esgotar as reservas naturais ou artificiais de água; as secas prolongadas, com que contrastam as enxurradas e as inundações, impossibilitam a reposição de águas nas reservas e, pela erosão, acabam arrastam água e sedimentos para o mar, sem hipótese de reposição. Por outro lado, a poluição inutiliza o consumo deste líquido vital.

escassez de água (falta de recursos para satisfazer à demanda do padrão) foi listada, em 2019, pelo como um dos maiores riscos globais no impacto potencial nesta década. Espelha-se na satisfação parcial ou inexistente da procura, na competição económica pela quantidade e qualidade da água, na disputa entre utilizadores, no esgotamento irreversível das águas subterrâneas e nos impactos negativos sobre o ambiente. 

Dois terços da população global (quatro mil milhões de pessoas) vivem em condições de severa escassez de água, pelo menos, um mês por ano. Meio milhar de milhões de pessoas enfrentam grave escassez de água todo o ano. Metade das maiores cidades sofre de escassez de água.

Só 0,014% da água da Terra é doce e facilmente acessível. Da restante, 97% é salina e pouco menos de 3% é de difícil acesso. Tecnicamente, há suficiente quantidade de água doce à escala global, mas, devido à distribuição desigual (agravada pelo aquecimento global), há locais muito húmidos e outros muito secos, além do aumento acentuado da procura global de água doce, nas últimas décadas impulsionada pela indústria. Por isso, a Humanidade enfrenta a crise hídrica. A procura superará a oferta em 40%, em 2030, se a tendência atual continuar.  

O aumento da população mundial, a melhoria dos padrões de vida e de consumo e a expansão da irrigação agrícola são as principais forças motrizes da crescente procura de água. Mudanças climáticas, como padrões climáticos alterados (incluindo secas e inundações), desmatamento, aumento da poluição, gases de efeito de estufa e desperdício de água causam insuficiência de abastecimento. A nível global e em base anual, há água doce suficiente disponível para satisfazer a procura, mas são grandes as variações espácio-temporais da procura e da disponibilidade de água, levando à escassez de água em várias partes do Mundo, em períodos específicos do ano.  

A escassez varia, ao longo do tempo, em resultado da natural variabilidade hidrológica, e varia mais em função da política económica vigente, do planeamento e das abordagens de gestão.

Prevê-se a intensificação da escassez com os modos de desenvolvimento económico, mas, se devidamente identificada, muitas causas podem ser previstas, evitadas ou mitigadas. Alguns países provaram a possibilidade de separar o uso da água do crescimento económico. Por exemplo, o consumo de água, na Austrália, diminuiu 40%, entre 2001 e 2009, enquanto a economia cresceu mais de 30%. O Painel Internacional de Recursos (PIR) da Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que os governos investem em soluções ineficientes: megaprojetos como represas, canais, aquedutos, ductos e reservatórios de água, que não são ambientalmente sustentáveis, nem economicamente viáveis. Segundo o painel científico, o modo mais custo-efetivo de dissociar o uso da água do crescimento económico, é os governos criarem planos holísticos de gestão da água que tenham em conta todo o ciclo da água: fonte, distribuição, uso económico, tratamento, reciclagem, reaproveitamento e devolução ao ambiente.

A disponibilidade da água (o principal meio pelo qual sentiremos os efeitos da mudança climática) torna-se imprevisível em muitos lugares, e o aumento da incidência de enchentes ameaça destruir os pontos de água e instalações de saneamento e contaminar as fontes de água. Nalgumas regiões, as secas exacerbam a escassez de água, afetando negativamente a saúde e a produtividade das pessoas. Garantir que todos tenham acesso a serviços sustentáveis de água e saneamento é uma estratégia crítica de mitigação da mudança climática nos próximos anos. Temperaturas mais altas e condições climáticas extremas e menos previsíveis afetarão a disponibilidade e distribuição da chuva, o derretimento da neve e do gelo, os fluxos dos rios e os lençóis freáticos, deteriorando mais a qualidade da água, levando ao aumento da escassez. E comunidades de baixos rendimentos, as mais vulneráveis ameaças ao abastecimento de água, serão as mais afetadas.

A escassez de água tem muitos impactos negativos no ambiente, como efeitos adversos em lagos, rios, lagoas, pântanos e outros recursos de água doce. O uso excessivo de água conexo com a escassez de água, localizado em áreas de irrigação agrícola, prejudica o ambiente de vários modos, incluindo o aumento da salinidade, a poluição por nutrientes e a perda de várzeas e de pântanos.

Além disso, a escassez de água torna problemática a gestão do fluxo na reabilitação de córregos urbanos. Nos últimos cem anos, foram destruídas mais de metade das zonas húmidas da Terra, importantes, por serem o habitat de muitas espécies (mamíferos, pássaros, peixes, anfíbios e invertebrados) e por ajudarem o cultivo de arroz e de outras culturas alimentares, além de propiciarem a filtragem de água e a proteção contra tempestades e inundações. Sofrem os lagos de água doce, como o norte do Mar de Aral, na Ásia Central. Era o quarto maior de água doce, mas perdeu mais de 58 mil quilómetros quadrados de área e aumentou imenso a sua concentração de sal ao longo de três décadas.

Outro resultado da escassez de água é a subsidência (afundamento gradual de formas de relevo), que, para o Serviço Geológico dos Estados Unidos da América (EUA), afetou mais de 17 mil milhas quadradas em 45 estados dos EUA (80%), com o uso de água subterrânea. Nalgumas áreas a leste de Houston, Texas, o terreno caiu mais de 2,7 metros.

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Para ultrapassar a crise hídrica, estão em debate várias soluções. Uma delas, que não é nova, é a dessalinização – processo crucial nos países que sofrem maior stresse hídrico –, que consiste em eliminar os minerais (maioritariamente sal) da água do mar, mediante processos físicos e químicos, com vista ao consumo humano ou agrícola, e que impõe o aumento da capacidade das dessalinizadoras reduzindo, simultaneamente, o seu impacto ambiental. Ocorre, de forma natural, durante o ciclo da água: a evaporação da água do mar deixa atrás o sal, para formar nuvens que geram a chuva.

Aristóteles viu que a água do mar evaporada e condensada é doce e Da Vinci compreendeu que é fácil obtê-la com o alambique. Posteriormente, a dessalinização foi utilizada, sobretudo, em embarcações em submarinos, para fornecer a tripulação, em longas travessias. Porém, o processo não esteve disponível em larga escala até à revolução industrial e ao desenvolvimento das plantas de dessalinização. Segundo o último estudo, de 2019, dos pesquisadores do Instituto para a Água, Meio Ambiente e Saúde da Universidade das Nações Unidas (UNU-INWE), há cerca de 16 mil plantas de dessalinização em operação – distribuída por 177 países – a gerar cerca de 95 milhões de metros cúbicos de água doce por dia. O primeiro país a adotá-la, de forma massiva, foi a Austrália, país árido onde a Seca do Milénio, entre 1997 e 2009, causou estragos. Hoje possui plantas de dessalinização nas principais cidades, que utilizam o processo da osmose reversa. A Arábia Saudita é o primeiro país em dessalinização por volume, seguido dos Emirados Árabes Unidos (EAU). Ambos os países são desérticos e dependentes desse processo. Outros países do Oriente Médio, como o Kuwait e o Catar, também apostaram nessa técnica. Nos EUA, terceiro nesse particular ranking, há microplantas de dessalinização perto de quase todas as instalações de gás natural, para aproveitar o calor residual. A Espanha é o quarto, graças ao impulso das Ilhas Canárias e da costa de Alicante e de Múrcia, onde as centrais térmicas estão a ser substituídas por plantas de dessalinização.

A destilação consiste em ferver a água do mar num alambique, recolher o vapor e condensá-lo para obter água doce. É o método mais óbvio para eliminar o sal, mas não o mais eficaz, pois consome muita energia. Entre os processos de dessalinização mais utilizados, contam-se a osmose reversa, a destilação solar, a eletrodiálise, a nanofiltração e a formatação de hidratos gasosos.

A osmose reversa, o mais utilizado, consome menos energia que os demais, por utilizar membranas semipermeáveis que deixam a água passar, mas não o sal. Tais membranas são de poliamida ultrafina, que podem ser contaminadas com bactérias, pelo que a água deve ser tratada. A destilação solar imita o ciclo da água e consiste em evaporar água do mar em grandes instalações cobertas, onde se condensa e recolhe em forma de água doce. Embora a energia utilizada seja o calor do sol, são necessárias grandes extensões de terreno.

A eletrodiálise consiste em mover a água salgada, através de membranas carregadas eletricamente que retêm os iões de sal dissolvidos na água, permitindo extrair água doce. Há diversos tipos de eletrodiálise, como a convencional e a reversa.

A nanofiltração utiliza membranas de nanotubos com maior permeabilidade do que a osmose reversa, permitindo processar mais água em menos espaço e com menos energia. As membranas são fabricadas com compostos sulfonados que, além do sal, removem vestígios de poluentes.

Quanto à formatação de hidratos gasosos, é de ter em conta que são cristais sólidos que se formam ao combinar a água com um gás, como o propano, em alta pressão e a baixa temperatura. Durante o processo, desaparecem todos os sais e impurezas presentes na água e, ao elevar a temperatura, é possível recuperar o gás permanecendo a água doce.

A dessalinização é uma necessidade crescente, à medida que diminuem as reservas de água doce. Segundo o estudo da ONU, publicado pela revista Science of the Total Environment, combinada com o uso responsável pelos recursos hídricos, pode ser o elemento-chave para obviar à escassez de água, no futuro, apesar das desvantagens que convém não ignorar. De facto, o processo não está isento de impacto, já que o resíduo resultante é a salmoura, água residual com concentração elevada de sal e poluentes, que, em muitos casos, se despeja no mar, afetando os ecossistemas. Concretamente, o estudo estimou a descarga de salmoura em 142 metros cúbicos por dia. E há o risco de filtrações poderem contaminar os aquíferos da costa. Assim, Manzoor Qadir, coautor do estudo, propõe “converter um problema ambiental numa oportunidade económica”. No estudo, recomenda utilizar a salmoura para a aquicultura, para gerar eletricidade ou para recuperar os metais nela contidos, como o magnésio, o gesso, o cálcio, o potássio, o cloro ou o lítio.

Muitos processos de dessalinização exigem aquecer a água, pressurizá-la ou ambas as coisas, o que implica elevado custo energético. Então, há que utilizar energias renováveis, como a solar, para reduzir o consumo das dessalinizadoras. Outra via para uma dessalinização sustentável será utilizar a biotecnologia, mediante cultivos de cianobactérias capazes de processar a água do mar, formando ao seu redor um depósito de baixa salinidade.

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A dessalinização possui múltiplas vantagens, mas é só parte de um conjunto de soluções ao dispor dos serviços de água, até pelas desvantagens e riscos que envolve.

Os desafios de gestão de água, decorrentes de secas prolongadas têm permitido a proliferação do debate sobre as alternativas aos métodos tradicionais de captação e de produção de água para consumo humano. Surge a dessalinização como solução tecnológica inovadora que acabará com os males advenientes da escassez de água, sem que isso implique mudança de comportamentos de utilizadores ou de entidades gestoras. Ora, isso é exagero decorrente do desconhecimento do processo (há 42 anos, iniciou-se a dessalinização em Portugal) e do foco exclusivo nas vantagens do processo que tem limitações e problemas para os quais não temos solução clara.

Há textos de toda a espécie sobre o processo e como ele eliminaria o problema da escassez de água. Contudo, não se escreveu muito sobre os problemas de segurança da qualidade da água, do dispêndio energético (maioritariamente provindo de fontes não renováveis), que redundará no aumento do nível de emissões de gases poluentes, e da carga de produtos químicos decorrentes da salmoura resultante da dessalinização.

Alguns dos constrangimentos podem ser mitigados pela possibilidade de recurso a energias limpas – por exemplo, o protótipo em testes desenvolvido pelo INEGI, relativo ao sistema de dessalinização acionado por energia solar térmica – embora a fatura energética continue a pesar, com reflexo financeiro e ambiental na transição energética e nas metas de emissões a que Portugal se vinculou. Estas limitações sugerem a dificuldade em massificar a dessalinização, figurando esta como complemento aos métodos tradicionais e a outras ferramentas que, de forma integrada, permitam maior eficiência na gestão da água para consumo humano.

Muita da falta de água para consumo humano pode ser resolvida com o combate à perda de água numa rede de distribuição envelhecida, que representa perda de cerca de 30% da água produzida. Esta perda – a que acresce a deficiente política tarifária – é nefasta para a capacidade de investimento em modernização infraestrutural e tecnológica – ao dispor da entidade gestora e que, numa empresa, representaria o seu colapso financeiro. Outra possibilidade é o recurso à reutilização de águas residuais urbanas tratadas, nomeadamente, para a rega de jardins e outras atividades diversas do consumo humano.

A água, apesar de ser um setor de capital intensivo, promove um investimento multiplicador e sustentável, potenciador do desenvolvimento económico alicerçado na sustentabilidade, em que o racional é mais do que o valor acrescentado que traz à economia, projetando-se no impacto nas gerações futuras e no ambiente e assegurando um presente que não compromete o futuro. Porém, temos de empregar todos os esforços de moderação do consumo de água.

Tem, pois, a dessalinização múltiplas vantagens, mas não é a varinha mágica que multiplicará a produção de água doce. Representa só parte das soluções ao dispor dos serviços de água.

2023.10.27 – Louro de Carvalho

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