domingo, 29 de outubro de 2023

Crimes de guerra e violação do direito internacional condenam-se

 

Os povos têm o direito de se defenderem, os direitos humanos devem ser respeitados, os crimes de guerra são condenados e o direito internacional deve ser respeitado.

Esta é a linda cantilena com que os decisores ocidentais enchem a ribalta pública da comunicação. Porém, a ditadura do relativismo, em nome de um tipo de democracia – o nosso, que é bom – que se pretende exportar, leva-nos a condenar os crimes de guerra de uns e a legitimar os de outros; a criticar a violação do direito internacional por parte de uns e a perdoar a sua violação a outros; a apontar o desrespeito pelos direitos humanos nuns países e a fechar os olhos ao seu desrespeito noutros; a entender que uns têm o direito de se de fender, mas outros não o têm.

Em nome da nossa boa democracia, somos capazes de pregar a paz, mas vendemos armas e outros equipamentos bélicos aos nossos aliados e, sub-repticiamente, fazemos venda desses materiais a inimigos, caso o preço seja compensador.

Falamos da liberdade de pensamento, de expressão e de manifestação, mas vários países da UE coartam a palavra falada e escrita que ponha em causa a legitimidade bélica de Israel e proíbem ou condicionam as manifestações a favor do povo palestiniano e do Hamas. É a conveniente ditadura democrática do pensamento único. Já vi disso!             

A 7 de outubro, o Hamas massacrou, alegadamente de súbito, uma série de israelitas e fez muitos reféns. O governo israelita, alegando surpresa e deixando entreler falha dos serviços de informação – quando, pelos vistos, fora avisado por autoridades egípcias, mas que subvalorizou – declarou a situação de guerra e começou o ataque aéreo aos Palestinianos na Faixa de Gaza. Prometeu a invasão por terra e ordenou a retirada intempestiva do Norte para o Sul, onde deixa milhões de Palestinianos sem água, sem eletricidade, sem víveres e sem medicamentos. Posteriormente, bombardeou hospitais, escolas, creches, mesquitas e a única igreja existente.

É difícil saber quem massacrou mais gente, se o Hamas, se Israel. Por isso, independentemente do estatuto político de cada uma das partes, a comunidade internacional devia condenar, em absoluto, todos os crimes de guerra, todos os massacres, todo o desrespeito dos direitos humanos, toda a violação do direito internacional. Em guerra, não há sofrimento bom e sofrimento mau. Não vale dizer que Israel é uma democracia e que tem o direito de se defender.

Não quero essa democracia israelita. Tem o direito de se defender? Os outros também. Tem líderes escolhidos pelo povo? Os outros também. É urgente o cessar-fogo, avaliar o contexto e a origem do conflito, à luz da História e da evolução do tempo e tentar perceber a origem do conflito atual. Não bastam “pausas humanitárias”, como sugere a União Europeia (UE). Caso contrário, a linguagem ocidental dos direitos humanos não passará de conversa da treta.

Se, a princípio, o conselho de segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) teve uma atitude pouco ousada na avaliação do conflito, o secretário-geral da ONU, António Guterres, com o seu discurso pungente, a 24 de outubro, parece ter agitado as consciências. Não conseguiu a unanimidade da condenação, mas conseguiu que 140 países contestassem a atitude bélica de Israel sobre os residentes na Faixa de Gaza, tal como se contesta a criminalidade de guerra russa.

O secretário-geral da ONU disse o que esta organização deve a milhões de Palestinianos e a si mesma. Ao mesmo tempo, afirmou que os ataques do Hamas contra Israel, a 7 de Outubro, “não aconteceram do nada”, apesar de ter vincado que “o sofrimento do povo palestiniano não pode justificar os terríveis ataques do Hamas” e que “esses ataques não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano”.

A 20 de outubro, deslocou-se ao muro de Rafah, um dos sítios mais sensíveis do conflito entre Israel e o Hamas, não por ali haver disparos ou batalhas, mas porque há um muro, só um muro, “a separar a tragédia de alguma esperança”. “Temos 20 camiões que são uma linha de salvamento”, disse. Porém, são camiões parados. Ficou de “coração partido”, ao ver os camiões impedidos de ir evitar “a morte” de dois milhões de pessoas.

Perante o impasse na entrada de ajuda humanitária em Gaza, através do Egito, aterrou no norte do Sinai e, em questão de horas, estava diante do posto de fronteiriço de Rafah, que devia ter aberto para a entrada de água, comida e medicamentos na Faixa de Gaza.

Por isso, iniciara a reunião do conselho de segurança, no dia 24, com o apelo a imediato cessar-fogo humanitário, em Gaza, para facilitar a entrega de ajuda humanitária e a libertação de reféns. Na sua intervenção, afirmou que “o povo palestiniano foi sujeito a 56 anos de ocupação sufocante”. “Viram a sua terra ser constantemente devastada, as suas populações deslocadas e as suas casas demolidas”, disse, acrescentando que “a esperança de uma solução política para a situação tem vindo a desaparecer”. E, mencionando as “claras violações da lei internacional em Gaza”, referiu: “Num conflito armado, nenhum lado está acima da lei humanitária internacional.”        

O secretário-geral da ONU, que escolhera o muro de Rafah como pano de fundo, lembrou que o Mundo “está perante um paradoxo”. “Atrás deste muro, temos dois milhões de pessoas que estão a sofrer enormemente, que não têm água, comida, medicamentos, nem combustível, que estão debaixo de fogo e precisam de tudo para sobreviver.” E prosseguiu: “E, deste lado, vemos tantos camiões carregados com água, comida, medicamentos, exatamente o que é preciso do outro lado deste muro. Estes camiões não são só camiões – são uma linha de salvamento, a diferença entre a vida e a morte em Gaza.” O pedido da ONU é simples: movimentar os camiões com ajuda humanitária depressa e quantos quanto possível, mas, como lembrou, as condições e restrições de última hora têm vindo a atrasar a abertura do posto de fronteira de Rafah. 

António Guterres anunciou que a ONU “está agora ativamente envolvida com todas as partes – Egito, Israel e Estados Unidos”, para “tentar clarificar essas condições e diminuir as restrições para que, o quanto antes, estes camiões se movam para onde são mais necessários”. “É a diferença entre a vida e a morte”, sublinhou. Por fim, disse: “Tenho esperança de que haja futuro e de que um dia haja paz com uma solução de dois estados com palestinianos e israelitas a viverem em paz em dois estados, um ao lado do outro. Muito obrigado.”

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Pelo facto de Guterres ter afirmado, na dita reunião do Conselho de Segurança da ONU, em Nova Iorque, que os ataques do Hamas “não surgiram do nada”, o embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, rapidamente, o instou a demitir-se, sob a acusação de estar “completamente desligado da realidade” e de ver, “de forma distorcida e imoral, o massacre cometido pelos terroristas nazis do Hamas”. “O secretário-geral das Nações Unidas, que mostra compreensão pelo massacre de crianças, mulheres e idosos, não está em condições de liderar a ONU. Insto-o a demitir-se imediatamente”, pode lê-se na rede social X (antigo Twitter).

Além disso, o embaixador israelita disse que “não tem sentido falar com alguém que mostra compaixão pelas mais terríveis atrocidades cometidas contra os cidadãos de Israel e o povo judeu”. Por isso, Israel nega vistos a representantes da ONU no território israelita.

Por seu turno, o ministro dos Negócios Estrangeiros israelita também criticou o discurso do secretário-geral da ONU e recusou reunir-se com ele. Na sua intervenção, Eli Cohen questionou Guterres: “Senhor secretário-geral, em que mundo é que vive?”

O governo israelita deve reavaliar as suas relações com as Nações Unidas, afirmou à Lusa o embaixador israelita na ONU: “Depois daquilo que o líder desta organização [Guterres] acabou de dizer esta manhã, apoiando o terrorismo, não há outra forma de explicar. Obviamente, o nosso governo terá de reavaliar as relações com a ONU e [com] os seus funcionários que estão estacionados na nossa região".

O embaixador de Israel em Portugal, Dor Shapira, disse que os comentários de Guterres sinalizam a perda de credibilidade das Nações Unidas: “Hoje, 78 anos depois [da criação da ONU], o secretário-geral provou que este organismo perdeu a sua credibilidade ao trair o mundo livre”.
Também um coletivo de famílias de reféns israelitas retidos em Gaza pelo Hamas reagiu às palavras “escandalosas” de Guterres, acusando-o de “ignorar vergonhosamente o facto de que, em 7 de outubro, foi perpetrado um genocídio contra o povo judeu”.

É de recordar que Israel aceita cessar as hostilidades com a restituição de reféns e com a entrega dos respetivos captores, o que é surreal e não constitui, pela experiência do passado, garantia de que tais hostilidades cessem. E sabe-se que algumas famílias de reféns não querem os ataques de Israel, por terem os seus familiares sob a ameaça de metralhadora.

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Perante estes dados, é de ter em conta um artigo, de 25 de outubro, de Alexandra Lucas Coelho, jornalista e escritora, ex-correspondente do Público em Jerusalém, sustentando que Guterres, na “declaração histórica” ante o conselho de segurança, deu “o salto em frente” e que “a reação expõe o estado a que chegou Israel”. Ao mesmo tempo, considera que o líder da ONU resgatou, “com clareza e coragem”, a verdade radical que era preciso dizer.

Com efeito, tendo ido tão longe quanto lhe era possível, “surpreendeu quem não esperaria tanto do secretário-geral”, inclusive “o Estado de Israel, que lhe declarou guerra através do embaixador na ONU, dizendo-se “chocado” com o discurso, “exigindo a demissão de Guterres e anunciando que vai recusar vistos à ONU”, porque “chegou o momento de lhes dar uma lição”. Israel assume “a supremacia de quem se acha acima da lei humanitária e internacional” e da ONU, pensando que “pode tudo, porque tem podido muito”, pela ajuda dos EUA e pela capitulação da UE.

A 20 de outubro, António Guterres foi a Rafah e viu que do lado de lá estão dois milhões de pessoas trancadas. A 24, disse as palavras que a ONU devia a essas pessoas e a si mesma. Tornou-se “o líder contra a barbárie”, na véspera de a UE, “herdeira de guetos, cercos e massacres”, ter sido incapaz de “apelar a um cessar-fogo humanitário”. António Costa não podia deixar de apoiar Guterres e apoiou-o. Porém, digo eu, não contrariou, a inépcia humanitária do Conselho Europeu.

A jornalista, que acompanhou no terreno, durante duas décadas, o conflito, sinaliza como a longa dependência da assistência humanitária perpetua o status quo e sugere que, desprendendo-nos desse statu quo desde 7 de outubro, se proceda a novo e urgente debate, para que que 2,3 milhões deixem de estar “sob bombas, com fome, sede, milhares no chão de hospitais em colapso, operados sem anestesia”, depois de haver “6500 mortos, dois mil dos quais são crianças”.

Fala de “escavadoras a enterrarem corpos em valas comuns”, do “risco de epidemias”, da coragem dos repórteres locais (depois de tantos terem morrido), de inúmeros telemóveis carregados com sol, partilhados nas redes. “É a violência de um Estado sobre um povo sem Estado.”

Refere o modo “como as pessoas se salvam umas às outras, partilham comida, água, Internet; horas para arranjar água potável ou pão; tendas e gente ao relento sob bombas”. E é assustador: “Mais de dois milhões reféns em Gaza. E quase três milhões na Cisjordânia, agora também bombardeada com drones, além dos ataques dos colonos. Centenas de mortos e feridos lá.”

Também em Israel está a “atmosfera tão cerrada”. “Israel recolheu-se na dor dos seus 1400 mortos, na angústia dos seus 220 reféns, da orgia de sangue […], enquanto centenas de milhares de soldados aguardam a iminente invasão terrestre, milhares de civis têm agora licença para se armarem, e as bombas caem em Gaza.” Milhares de judeus fora, sobretudo nos Estados Unidos da América (EUA), dizem “o que Guterres disse sobre o cessar-fogo, a ocupação, as violações de Israel” e “dizem a Israel e ‘a esse novo presidente de Israel que se tornou Joe Biden’: a nossa dor não é a vossa arma”. Barac Obama “criticou o corte de água, comida e energia, a desumanização dos Palestinianos que endurece gerações”, o que “ajudou a atenuar o belicismo de Biden”. Todavia, “foi Guterres quem deu o salto em frente”. E a Europa deverá perguntar-se: “Se fossem cristãos, judeus, brancos, já apelaria ao cessar-fogo? Teríamos chegado ao gueto de Gaza?” Com efeito, “zero tolerância para antissemitismo vai a par com zero tolerância para qualquer racismo”.

Com a sua postura, Guterres toca as gerações que saem à rua pelo Mundo, contra o horror em Gaza. Não se pode permitir que Israel persista na vingança até eliminar o último Palestiniano.

2023.10.28 – Louro de Carvalho

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