segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Apólogo da vinha, a saga do amor e do cuidado de Deus pelo seu povo

 

A Bíblia serve-se de várias imagens para caraterizar o Povo de Deus, nos novos tempos, a Igreja, tais como o rebanho, a assembleia convocada, a esposa, o campo e a vinha.

A liturgia do 27.º domingo do Tempo Comum no Ano A, releva a imagem da vinha de Deus, para falar do Povo que, tendo aceitado o desafio do amor de Deus e prometido colocar-se ao serviço de Deus – serviço que exige a produção abundante de frutos de amor, de paz, de justiça, de bondade e de misericórdia, sob a imagem das uvas – tem só produzido agraços e maltratado todos os que vêm em nome do Senhor, designadamente os profetas e o próprio Filho de Deus.

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Na primeira leitura (Is 5,1-7), Isaías dá conta do amor e da solicitude de Deus pela sua vinha, que não pode ter como contrapartida frutos de egoísmo e de injustiça. O Povo do Senhor tem de deixar-se transformar pelo amor sempre fiel de Deus e produzir os frutos que Deus aprecia – a justiça, o direito, o respeito pelos mandamentos, a fidelidade à Aliança.

O profeta não fala de realidades abstratas e intangíveis. A sua pregação refere-se a acontecimentos concretos e toca a realidade da vida, com as inquietações e com as esperanças dos homens. Para perceber a sua mensagem, convém situá-la na época e na realidade histórica que o profeta conhece e sobre a qual é chamado por Deus a pronunciar-se.

A primeira fase do seu ministério desenrola-se no reinado de Jotam (740-734 a.C.), época de relativa tranquilidade política, em que Judá se mantém afastado das jogadas políticas das superpotências de então. Tudo parece correr em clima de paz. Todavia, o olhar crítico do profeta deteta uma realidade diferente. A sociedade de Judá está eivada de grandes injustiças e arbitrariedades: os poderosos exploram os mais débeis, os juízes deixam-se corromper, os latifundiários deixam-se dominar pela cobiça e montam esquemas legais para se apropriarem dos bens dos pobres, os governantes oprimem os súbditos, as damas finas de Jerusalém vivem no luxo e na futilidade, no desrespeito pelas carências dos mais pobres. O culto floresce na abundância inédita de práticas de piedade e de solenes manifestações religiosas; e todo o fausto cultual é incoerente e mentiroso, pois não resulta da adesão a Javé, mas da tentativa de acalmar as consciências e de “comprar” Deus.

Segundo o profeta, Jerusalém deixou de ser a esposa fiel, para se converter numa prostituta. Dito de outro modo, a vinha cuidada por Deus só produz frutos amargos e não os bons (justiça e amor) pedidos a quem vive envolvido no ambiente da Aliança.

O “cântico da vinha”, um dos textos mais emblemáticos do período em referência, terá sido, inicialmente, um “cântico de vindima” ou um “cântico de trabalho”, que um poeta popular entoa para o seu círculo de amigos ou de companheiros de trabalho. Mas, como sucede com as formas de expressão da cultura popular, as palavras passam a evocar outra realidade.

Na cultura judaica, a vinha é um símbolo do amor. E o “cântico da vinha” passa então a ser uma “cantiga de amor”, que descreve os esforços do jovem apaixonado para conquistar a amada.

Por isso, Isaías recorre a esta “cantiga de amor” para transmitir a mensagem que Deus lhe confiou.

A canção que o profeta-poeta canta é bela e o tema é sugestivo. Tirando partido das sonoridades e do ritmo, o poeta põe em alternância os sons doces da canção de amor com os sons ásperos da canção de trabalho. Os interlocutores do amado, atentos e fascinados, escutam com prazer a descrição das patéticas tentativas do poeta para conquistar a amada. Ouvem-no falar dos trabalhos para construir a vinha, dos cuidados com ela, das ilusões, dos sonhos; sorriem ante as alusões ao lagar (onde será feito o vinho do amor) e à torre (donde o amado vigiará, para que ninguém entre na sua vinha e colha os frutos do seu amor). Aprovam quando espera os frutos saborosos do amor que cultivou. Revoltam-se quando a vinha só lhe ofereceu frutos azedos. Simpatizam com o poeta, identificam-se com ele, partilham a sua desilusão.

De súbito, o poeta transforma o cântico em queixa e reclama justiça. Interpela os interlocutores e exige-lhes um veredicto. Todos concordam que o profeta-poeta tem razão e que tem todo o direito em tirar a vedação que protegia a vinha, em não voltar a cuidar dela, em dar ordens às nuvens para que não a fecundem com a chuva. Porém, quando o auditório, que ele tem na mão, já pronunciou mentalmente o veredicto favorável, o profeta-cantor lança-lhe na cara a acusação que vinha a preparar, nos moldes da pedagogia socrática: “A vinha do Senhor do universo é a casa de Israel e os homens de Judá são a plantação escolhida. Ele esperava retidão e só há sangue derramado; esperava justiça e só há gritos de horror.” São eles, os recetores da canção, os elementos constitutivos da vinha má, e não outros. Apontar os erros presumivelmente de outrem é fácil; o pior é quando nos fazem ver que os erros criticados são nossos.

A imagem da vinha aplicada ao Povo de Deus encontra-se frequentemente na Bíblia. Os profetas e catequistas de Israel viram nessa imagem um símbolo privilegiado para expressar a História de amor que Deus quis escrever com o seu Povo, isto é, a Aliança. Neste apólogo, Deus é o vinhateiro e Israel é a vinha. Foi Deus quem trouxe de longe (do Egito) estas cepas escolhidas e as plantou em terra fértil (Canaã); foi Ele que removeu dessa terra as pedras (os outros povos que aí habitavam) que podiam estorvar a fecundidade da vinha, que cuidou e que amou a sua vinha.

Por conseguinte, Deus esperava que Israel praticasse o direito e a justiça (“mishpat” e “zedaqa”) satisfazendo, fielmente, a Aliança; esperava a vida em coerência com os mandamentos; esperava que Israel respeitasse os direitos dos mais débeis. Todavia, o Povo atua em sentido contrário ao que Deus pretendia: os poderosos cometem injustiças e arbitrariedades, os juízes são corruptos e não fazem justiça ao pobre, os grandes praticam violências e derramam o sangue do inocente, os órfãos e as viúvas veem espezinhados os seus direitos, sem que ninguém os defenda.

Ora, porque Deus não pode pactuar com este esquema, prepara-Se para abandonar a vinha. Assim, a lição fundamental é: o amor de Deus pretende criar no coração do Povo uma dinâmica que leve ao amor ao irmão. Deus ama-nos, para que nos deixemos transformar pelo amor.

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No Evangelho (Mt 21,33-43), Jesus, retomando a imagem da vinha, critica duramente os líderes judaicos que se apropriaram em benefício próprio da vinha de Deus e que recusaram oferecer a Deus os frutos que Lhe são devidos. Jesus anuncia que a vinha lhes será tirada e que será confiada a trabalhadores que produzam e que entreguem a Deus os frutos que Ele espera.

O texto em apreço insere-se num bloco de três parábolas (cf Mt 21,28-32. 33-43; 22,1-14), que ilustram a recusa de Israel em aceitar o desígnio de salvação que Deus oferece aos homens através de Jesus. Jesus convida os opositores – os líderes religiosos judaicos – a reconhecerem que se fecharam num mecanismo de autossuficiência, de arrogância e de preconceito, que não lhes deixa abrir o coração e a vida aos desafios de Deus. Esta é a segunda dessas três parábolas.

No tempo de Jesus, a terra estava, quase sempre, nas mãos de grandes latifundiários que viviam nas cidades e que utilizavam vários sistemas para a exploração das suas terras. Uma das formas preferidas (porque, para o latifundiário, não implicava grande trabalho) consistia em arrendar as várias parcelas do latifúndio, em troca de parte substancial dos produtos colhidos. Os rendeiros eram, geralmente, camponeses que, tendo perdido as suas terras, devido à pressão fiscal ou às más colheitas, viviam em situação periclitante: descontados os custos da exploração, os impostos pagos e a parte que pertencia ao latifundiário, mal ficavam com o indispensável para se sustentarem a si e à família. Em anos agrícolas maus, o esquema significava a miséria absoluta.

Este quadro provocava conflitos sociais e o aparecimento de movimentos campesinos que lutavam contra os latifundiários ou contra a carga excessiva de impostos.

A parábola contada por Jesus coloca-nos no ponto de partida da parábola da “vinha” de Is 5,1-7: um senhor plantou uma vinha, cercou-a com uma sebe, cavou nela um lagar e levantou uma torre.

Contudo, a parábola de Jesus afasta-se do apólogo de Isaías. Na versão de Jesus, o proprietário não explorou diretamente a vinha, mas confiou-a a uns vinhateiros que deviam dar-lhe, a cada ano, determinada percentagem dos frutos produzidos. Porém, quando os servos do senhor vinham recolher a parte que pertencia ao amo, eram maltratados e assassinados pelos vinhateiros; e, quando o dono da vinha enviou próprio filho a chamar os vinhateiros à responsabilidade e ao respeito pelos compromissos, foi assassinado.

A vinha de que Jesus fala é Israel, o Povo de Deus. O dono da vinha é Deus. Os vinhateiros são os líderes religiosos, encarregados de trabalhar a vinha e de fazer com que ela produzisse frutos. Os servos enviados pelo senhor são os profetas que os líderes da nação perseguiram, apedrejaram e mataram. O filho morto fora da vinha é Jesus, assassinado fora dos muros de Jerusalém.
É um quadro de muito grave. Os vinhateiros não só não entregaram ao senhor os frutos devidos, como, recusando toda a possibilidade de encontro e de entendimento com o senhor, maltrataram e apedrejaram os servos que ele enviou e assassinaram-lhe o filho.

Diante deste quadro, Jesus interpela diretamente os ouvintes: “Quando vier o dono da vinha, que fará àqueles vinhateiros?” A comunidade cristã primitiva encontrou a resposta para a questão. Na perspetiva dos primeiros catequistas cristãos, a resposta de Deus à recusa de Israel foi dada em dois movimentos: Deus ressuscitou o filho que os vinhateiros mataram, glorificou-O e constituiu-O a pedra angular da nova construção; e decidiu retirar a vinha das mãos dos vinhateiros ingratos e confiá-la a outros vinhateiros, um povo que fizesse a vinha produzir bons frutos e que entregasse ao senhor os frutos a que ele tem direito.

Entretanto, a Mateus não interessa tanto a questão do filho posto como pedra angular da nova construção como a da entrega da vinha a um outro povo. Ao sublinhar este aspeto, Mateus visa uma dupla finalidade.

Antes de mais, esclarece porque é que, na maioria das comunidades cristãs, os judeus – os primeiros trabalhadores da vinha de Deus – estavam em minoria: recusaram-se a oferecer frutos bons ao senhor da vinha e recusaram sempre as tentativas do Senhor no sentido de uma aproximação e de um compromisso. Por isso, o Senhor elegeu outros vinhateiros. O que é decisivo, para a escolha de Deus, não é que os novos trabalhadores da vinha sejam judeus ou não judeus; o que é decisivo é que estejam dispostos a oferecer ao Senhor os frutos que devidos e a acolher o Filho que o Senhor enviou ao seu encontro.

Depois, Mateus exorta a comunidade a produzir frutos verdadeiros que agradem ao Senhor da vinha. Estamos no final do século I; passou o entusiasmo inicial e os crentes da comunidade de Mateus instalaram-se num cristianismo fácil, descomprometido, instalado. O catequista Mateus aproveita o ensejo para exortar os irmãos a despertarem e a saírem do comodismo, a empenharem-se, a darem frutos próprios do Reino, a viverem com radicalidade a via de Jesus.

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Na segunda leitura (Fl 4,6-9), Paulo exorta os cristãos da cidade grega de Filipos – e todos os que fazem parte da vinha de Deus – a viverem na alegria e na serenidade, respeitando o que é verdadeiro, nobre, justo e digno, ou seja, os frutos que Deus espera da sua vinha.

Os primeiros dois versículos do trecho em apreço integram uma passagem mais longa, em que o apóstolo recomenda aos cristãos que vivam na alegria. Esta alegria, que nada tem a ver com gargalhadas ou com otimismos inconscientes, é a alegria que resulta da vida de comunhão com o Senhor, com tudo o que isso significa em garantia de vida verdadeira e eterna. O cristão vive na alegria, pois a comunhão com Cristo garante-lhe o acesso próximo (“o Senhor está próximo”) à vida definitiva. Daí resulta a serenidade e a paz, que permitem ao crente enfrentar a vida e sentir-se seguro nos braços de Deus Pai. Ao crente resta cultivar a comunhão com Deus, entregando-Lhe, diariamente, a sua vida “com orações, súplicas e ações de graças”.

Depois, Paulo recomenda aos filipenses seis qualidades que devem cultivar e apreciar: verdade, nobreza, justiça, pureza, amabilidade e boa reputação. Tudo isto é virtude, é digno de louvor. É esta a magna carta do humanismo. Estes valores, não exclusivos do cristianismo, são valores sãos e louváveis, igualmente propostos pelos moralistas gregos da época. No entanto, a comunidade cristã deve estar aberta ao acolhimento de todos os valores humanos. Os cristãos devem ser, antes de mais, arautos e testemunhas dos verdadeiros valores humanos.

E Paulo recomenda, a seu exemplo, viver esses valores em confronto fiel com o Evangelho.

2023.10.08 – Louro de Carvalho

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