terça-feira, 10 de outubro de 2023

Paulo Branco implica ministro na operação “Tempestade Perfeita”

 

Referia, a 29 de setembro, o Expresso que Paulo Branco, ex-responsável financeiro da Direção-Geral de Recursos de Defesa Nacional (DGRDN), um dos acusados pelos crimes de corrupção e de branqueamento na operação “Tempestade Perfeita”, implicou o ministro João Gomes Cravinho na assessoria-relâmpago inventada para pagar 50 mil euros a Marco Capitão Ferreira, ex-secretário de Estado da Defesa Nacional, que saiu do governo no início de julho, por ter sido constituído arguido por corrupção e participação económica em negócio. Segundo o que depôs, o então ministro da Defesa Nacional “tinha concordado” ou até “pedido” para se fazer contrato de assessoria com Capitão Ferreira para o compensar e “pôr as contas em dia” pelos trabalhos feitos numa “comissão fantasma” a funcionar na órbita do seu gabinete.

A 27 de julho, Branco declarou a Celestina Morgado, procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, que Marco Capitão Ferreira participou no “Grupo Ninja” ou “‘Black Ops’ (expressões militares), elaborando, clandestinamente, um estudo para a “revisão do setor empresarial do Estado da Defesa”. O grupo, que trabalhava na sombra, integrava outros elementos, como Catarina Nunes, que veio a ser presidente da idD (holding das indústrias de Defesa), e Irene Paredes, à data, funcionária da DGRDN. Era a “comissioni fantasmi”, segundo a classificação usada num e-mail por Capitão Ferreira.

A existência da equipa, sem nomeação formal e a trabalhar pro bono, foi confirmada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) à notícia da “Visão”. Um comunicado de Gomes Cravinho, de 28 de julho, esclarecia que o trabalho de aconselhamento e estudo de Capitão Ferreira para a reestruturação das indústrias de Defesa “não foi remunerado”. Mas o governante distinguiu o contributo gracioso do “contrato de assessoria prestada” à DGRDN “que foi remunerado” e pelo qual Capitão Ferreira recebeu 50 mil euros mais IVA, em cinco dias, para assessorar a renegociação, dos contratos de manutenção dos helicópteros EH-101.

Segundo Paulo Branco, que ligou as duas coisas, o contrato-relâmpago para assessorar a DGRDN na negociação dos EH-101 terá servido para pagar os trabalhos gratuitos da “comissão fantasma”, com apoio do ministro. Porém, em resposta ao Expresso, o gabinete do MNE refere que são dois processos distintos e que “não houve qualquer orientação” de Cravinho para o contrato de assessoria à DGRDN servir de compensação pelos trabalhos feitos.

A participação gratuita no “Grupo Ninja” e, depois, a assessoria à DGRDN coincidiram no tempo, entre fevereiro e março de 2019. Paulo Branco recordou, no interrogatório, que um dia, não sabendo precisar datas, Capitão Ferreira lhe entrou na sala, acompanhado por Alberto Coelho a dizer que vinha de reunião com o ministro, onde fora convidado para presidir à comissão liquidatária da Empordef, que daria origem, depois, à nova idD, e assumir a presidência desta. Alberto Coelho era o diretor da DGRDN, agora acusado de corrupção e branqueamento na “Tempestade Perfeita”. E Capitão Ferreira seria nomeado presidente da comissão liquidatária da Empordef (à época, a holding estatal para as indústrias de Defesa), semanas depois de receber os 61 mil euros da DGRDN. E Paulo Branco, um dos cabecilhas da teia, foi escutado a combinar com os outros acusados passar histórias a jornalistas, para apontar ao poder político e controlar a narrativa mediática. Foi o que fez no interrogatório: apontou ao ministro.

Nas declarações ao DIAP, Branco lembrou que foi Capitão Ferreira, depois da reunião com o ministro e com Alberto Coelho, quem lho disse: estaria disponível para ser nomeado para a Empordef, mas há muitos anos que trabalhava na Defesa e que esses trabalhos teriam de ser recompensados. Foi então que Branco mencionou a cumplicidade de Cravinho na assessoria fictícia: “O ministro da Defesa tinha concordado em fazer-se o contrato de assessoria e pagar-lhe 50 mil euros, em retorno desses trabalhos.” E disse que aquelas duas personalidades lho revelaram para ele operacionalizar.

Tais declarações contrariam o que o ministro disse, em audição parlamentar na Comissão de Defesa, a 21 de julho. Então, o MNE omitiu a criação do “Grupo Ninja”, cuja existência negara ao “Observador” e garantiu só ter sabido do contrato de Capitão Ferreira, quando foi noticiado. E assegurou que “não houve, em nenhum momento, qualquer indicação” da sua parte “a esse respeito, até porque não” lhe “competia interferir no funcionamento interno da DGRDN”. A decisão de contratar “foi única e exclusivamente da DGRDN e do seu diretor-geral, assim como os termos do contrato, seja a duração ou o valor”.

Na mesma audição, o MNE disse desconhecer o visado antes de exercer funções – “era uma das raras pessoas com conhecimento aprofundado nesta área muito especializada” – e recusou apontar culpas, remetendo a dissipação de quaisquer dúvidas para o “lugar próprio”. E, a 29 de setembro, declarou, em comunicado enviado às redações: “Repudio, de forma veemente e inequívoca, a sugestão feita na manchete do jornal Expresso, baseado aliás em informações pouco credíveis, como fica claro pela leitura do respetivo artigo.”

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A 2 de outubro, Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do Partido Socialista (PS), assinalou que as acusações contra Gomes Cravinho partem de um arguido no processo “Tempestade Perfeita”, podendo o governante estar a ser vítima de quem cometeu crimes no Ministério da Defesa Nacional. Esta posição foi transmitida no aeródromo de Ponte de Sor, distrito de Portalegre, nas reuniões descentralizadas da direção do grupo parlamentar do PS.

Interrogado se Cravinho tem condições políticas para continuar no governo, depois dos últimos desenvolvimentos, Brilhante Dias pediu leitura atenta da notícia do Expresso, pois a notícia “diz, preto no branco”, que a personalidade em causa, arguida no processo, é uma personalidade “que foi escutada junto de outros arguidos a montar uma estratégia de envolvimento dos políticos”. Custa-lhe que se faça política acusando o ministro, “quando se sabe que esse conjunto de pessoas, que tem, naturalmente e legitimamente, direito à presunção da inocência, foi escutada a procurar envolver políticos para desviar as atenções”. E repetiu a tese de que a “área da Defesa precisa de uma auditoria geral”. “Hoje, temos notícias que a auditoria está de facto a ocorrer por iniciativa da senhora ministra”, vincou.

Também a 2 de outubro, o primeiro-ministro (PM), António Costa, no final de entrevista à TVI e CNN/Portugal, se insurgiu contra fugas seletivas de informação na investigação “Tempestade Perfeita” envolvendo Gomes Cravinho, mas prometeu avaliar politicamente eventuais futuras consequências do processo, sem se antecipar à justiça.

Confrontado com a notícia do Expresso sobre depoimentos no processo “Tempestade Perfeita”, que podem pôr em causa a atuação do ministro, respondeu: “Não nos deixemos intoxicar por fugas seletivas de informação, sobretudo quando, depois, aparecem escutas onde se percebe […] que um arguido diz: ‘Vamos lá implicar os políticos para controlarmos esta narrativa’. […] Não sei se é verdade, se não é verdade, porque eu não tenho acesso às escutas.”  

Disse não saber se Gomes Cravinho está a ser vítima da ação de quem é suspeito de ter cometido crimes no processo e salientou que ninguém está acima da lei. Se houver indícios relativamente a quem quer que seja, a justiça atuará. Portanto, António Costa não se antecipa à justiça. E, observando, pelo que leu, que há arguidos que, nas conversas entre eles, dizem querer implicar o ministro, “para terem um escudo protetor”, desafiou o Ministério Público a, se tem algo a apontar ao ministro ou a quem quer que seja, que aja. Depois, avaliará. Porém, advertiu que não é critério ser arguida uma pessoa, para ter de sair do governo, pois o estatuto de arguido foi criado para proteção do investigado, pelo que “ser arguido não é uma pré-condenação”. Reiterando a ideia de que não se mete na justiça, porfiou a certeza de que a justiça “não se mete na política nem se guia por critérios políticos”. Por isso, avaliará, em função do que acontecer, mas não especula, muito menos com base em escutas que não conhece e “que objetivamente ninguém devia conhecer”.  

A 9 de outubro, Vítor Moita Cordeiro – escudado nas opiniões da politóloga Paula do Espírito Santo, do embaixador Seixas da Costa e do deputado Tiago Moreira de Sá, do Partido Social Democrata (PSD) – escreveu, no Diário de Notícias (DN), que o ministro se mantém “imaculado no plano internacional, apesar das controvérsias”.

Para Seixas da Costa, não há fragilização da imagem internacional de Cravinho, pois o caso é “uma questão luso-portuguesa” (pleonasmo). Porém, as vozes de vários partidos insurgiram-se contra Gomes Cravinho e contra o governo. O PSD, apesar de não haver processo que envolva o ministro, desafiou o PM a avaliar se o governante tem condições para manter o cargo. O líder do Chega propôs que Gomes Cravinho e a ministra da Defesa vão ao Parlamento esclarecer dúvidas, sugerindo que, se não o fizerem, avançará com uma comissão de inquérito. Dentro do seu partido, Cravinho foi amparado pelo grupo parlamentar.

O que está em equação é a importância do MNE, para o país, com o protagonista do cargo rodeado de controvérsias. Paula do Espírito Santo sustenta que é “uma das pastas mais importantes do governo”, ponte fundamental entre Portugal e o exterior. “Sabendo que estamos a falar num Estado democrático”, é fundamental que haja um Ministério dos Negócios Estrangeiros forte, com a imagem de credibilidade, a nível interno e externo. O cargo depende muito do suporte institucional, que deve vir do PM, e do reconhecimento dos seus pares, no governo, e dos seus pares no plano externo. Se calhar, é uma das pastas mais importantes na coesão nacional e na relação de Portugal com o exterior, porque “não vivemos sozinhos e não podemos olhar-nos enquanto regime como um Estado pária”, adianta a politóloga.

Tiago Moreira de Sá, coordenador do grupo PSD na Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, diz que o MNE é “uma função de soberania absolutamente crucial”. E cita a asserção de John F. Kennedy de que “a política interna apenas pode derrotar-nos, enquanto a política externa pode matar-nos”, esclarecendo que esta pasta lida “com assuntos que, no extremo, podem levar à paz e à guerra”. Critica a tutela de Cravinho: “Nós não podemos ter, mas, em certo sentido, temos, um meio Ministério dos Negócios Estrangeiros.” E lembra que a pasta dos assuntos europeus está nas mãos do PM, ideia que pode ter algumas virtudes, porque são cada vez mais os assuntos que tocam em vários ministérios, mas, na prática, retalhou as funções do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O deputado aponta como “estranho” que os assuntos europeus estejam fora do MNE, quando a “opção europeia” é “a prioridade da política externa”. Depois, o Orçamento do Estado para os Negócios Estrangeiros é “indigno”, por ser muito baixo, “de uma função de soberania e da mais importante função de soberania do país”, situação a que se junta a “pesadíssima herança que vem do Ministério da Defesa”.

Segundo Paula do Espírito Santo, a posição de Cravinho como governante “está comprometida” pela suspeição, pelo menos, em responsabilidade política. Não há em curso nada contra ele no plano jurídico e o que se lhe pode apontar, para já, é só no plano interno e num ministério que já não tutela, “pela proximidade que tinha, e por ter que anuir em determinadas decisões” que envolviam Capitão Ferreira, nos processos que ele desenvolvia. Contudo, “publicamente, ele não dá sinal de que esteja desconfortável”, diz a politóloga. De facto, desenvolve toda a sua atividade na atual pasta e não há reflexo ou reconhecimento de culpabilização política neste processo. E o PM já disse que, se ele fosse constituído arguido – ele próprio já o foi – isso não significa muito, porque ser arguido não significa ser culpado.

Se e quando houver, da parte da justiça, alguma ação, o PM tirará conclusões. “Isto no plano interno. No plano internacional, não me parece que haja qualquer fragilização”, vinca Seixas da Costa, antes de fazer um retrato político do ministro. Neste, destaca-se o seu estatuto no plano internacional estabilizado há anos, como embaixador em várias instâncias, como governante e como quadro político-partidário. Segundo Seixas da Costa, os seus contrapartes não estarão preocupados com estas notícias, sobretudo, quando não há “concretização de qualquer tipo de ação de natureza judiciária que o possa tocar”.

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Falar de responsabilidade política (relevante, mas difusa) do ministro tem poucas consequências: ou fica no governo ou sai. E, saindo, paga por erros que não está a tempo de corrigir; e quem lhe sucedeu pode deixar cometer os mesmos erros. Por isso, o importante será passar a pente fino todas as contas e procedimentos de todos os departamentos do Ministério da Defesa Nacional, bem como de todos os Ministérios sobre os quais recaia a mínima suspeita, sendo esta a única forma de não se ficar a assobiar para o lado. Responsabilizar criminalmente o governante com base na alegação de arguido em processo é ignóbil: se há suspeita fundamentada, a justiça que funcione com processo à parte. Deixar pairar a dúvida, condenar em praça pública ou usar processos judiciais (é mais fácil) como arma de arremesso político-partidário é que não! E discutir junção ou repartição de pastas, a propósito do MNE é inútil. Também, por exemplo, o ministro da Educação só será meio ministro (já não tem a ciência e o ensino superior) e ninguém o diz.

2023.10.09 – Louro de Carvalho

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