sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Crise de fome está a atingir o Sudão do Sul por causa da guerra

 

 

O Programa Alimentar Mundial (PAM) da Organização das Nações Unidas (ONU), na avaliação da segurança alimentar, revela que 90% das famílias que regressam ao Sudão do Sul (perto de 300 mil pessoas, nos último cinco anos) estão em insegurança alimentar moderada ou grave e que os dados de rastreio recolhidos na fronteira revelam que cerca de 20% das crianças com menos de cinco anos e mais de um quarto das mulheres grávidas e lactantes estão subnutridas.

A maioria dos que fugiram dos combates e atravessaram a fronteira do vizinho Sudão com o Sudão do Sul são sul-sudaneses que “estão a regressar a um país que já enfrenta necessidades humanitárias sem precedentes”. “Estamos a ver famílias a trocar um desastre por outro, a fugir do perigo no Sudão, para se verem a braços com o desespero no Sudão do Sul”, afirma Mary-Ellen McGroarty, diretora do PAM no Sudão do Sul, advertindo que o PAM não dispõe de “recursos para prestar assistência vital aos que mais precisam”.

Em todo o Sudão do Sul, o PAM tem um défice de financiamento de 536 milhões de dólares, para os próximos seis meses, e só conseguiu chegar a 40% das pessoas em situação de insegurança alimentar com assistência alimentar até 2023.

Os sul-sudaneses “atravessam a fronteira apenas com a roupa do corpo” e alguns são vítimas de roubo e de violência na viagem, segundo o PAM, que teme epidemias na estação das chuvas.

Depois de se ter tornado independente do Sudão, em 2011, o Sudão do Sul mergulhou na guerra civil que fez quase 400.000 mortos e milhões de deslocados, entre 2013 e 2018. O acordo de paz, assinado em 2018, previa o princípio da partilha do poder entre os rivais Salva Kiir e Riek Machar no âmbito de um governo de unidade nacional. Porém, as tensões e a violência continuam a assolar o país mais jovem do Mundo, rico em petróleo, mas onde a grande maioria da população vive abaixo do limiar da pobreza.

Já no Sudão, a guerra iniciada, a 15 de abril, entre o exército, liderado pelo general Abdel Fattah al-Burhan, chefe do Conselho Soberano de Transição, e as Forças de Apoio Rápido (FAR – na sigla inglesa, RSF) de Mohamed Hamdan Daglo, seu antigo adjunto, no organismo que assegura o poder desde o golpe de Estado de 2019, já fez cerca de 7500 mortos, segundo a Armed Conflict Location & Event Data Project, e desalojou mais de cinco milhões de pessoas – 2,8 milhões das quais fugiram da capital Cartum, palco de incessantes ataques aéreos, de fogo de artilharia e de combates de rua.

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Cartum, que não conhecia a guerra desde a sua conquista por Mohamed Ahmed Al Mahdi, em 1885, tornou-se o principal teatro de guerra entre as RSF e as Forças Aéreas do Sudão.

No final de março passado, havia algum otimismo na capital, parecendo que os envolvidos nas negociações que deveriam reorientar o processo de transição democrática estavam amadurecidos. Com efeito, tinha sido anunciado que o dia 1 de abril era a data para a assinatura do acordo que reorientaria o processo; o 6 de abril, para a assinatura do texto constitucional transitório; e o 11 de abril, para a apresentação do governo civil de transição.

Nas ruas, afirmava-se que os líderes do movimento islamita se tinham reunido com a cúpula do exército para bloquear o processo e que se poderia esperar um golpe de Estado. Ao mesmo tempo, os media locais noticiavam a deslocação de 60 mil soldados das RSF, para o seu acampamento militar em Soba, o seu posicionamento ao redor da base das Forças Aéreas do Sudão (FAS – SAF, na sigla inglesa), em Méroe, a 436 km a norte da capital, e outra concentração de tropas em El Fasher, a capital do Estado do Darfur do Norte.

Os meios de comunicação começaram a noticiar discrepâncias entre as SAF e as RSF, no atinente ao processo de integração das segundas nas primeiras, para formar um exército único. As SAF defendiam que o processo deveria culminar numa liderança única para as forças armadas, corporizada por Abdel Fatah Al-Burhan, atual chefe do exército, ao passo que as RSF queriam um civil como autoridade última e comando supremo das forças armadas.

As RSF veiculavam, havia meses, a narrativa de que o exército regular (SAF) representava o regresso ao regime islâmico, opunham-se à transição e perfilavam-se como garantia de êxito do processo democrático. Embora a sua posição não pareça muito credível, pois Hameidti, líder das RSF, apoiou Burhan, líder das SAF, no autogolpe de Estado de outubro de 2021, que suprimiu a figura do primeiro-ministro e bloqueou o acesso à presidência do Conselho Soberano de Transição da componente civil. E foi este discurso que lhes pareceu justificar um golpe de Estado para depor Abdel Fatah Al-Burhan, pois, como refere o jornalista Osman Mirghani, as RSF e alguns civis da plataforma do Comité Central para a Mudança e a Liberdade tinham até preparada a lista de ministros para o novo governo.

As RSF eram milícias conhecidas como “janjawid” que operaram no Darfur, ao serviço de Omar Al-Bashir, presidente do Sudão, entre 1989 e 2019, em operações de limpeza étnica contra as tribos negras da região – acusação que levou o Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, a condenar o presidente deposto, que dotara as RSF de entidade jurídica como parte integrante do exército, para operações ordinárias e para alguns serviços secretos de operações extraordinárias, com competência especial para o controlo de fronteiras.

Quando o exército depôs Omar Al-Bashir, devido à pressão popular (Revolução de 2019), as RSF traíram o seu mentor e envolveram-se no novo governo de transição. O seu líder, Mohamed Hamdan Dagalo “Hameidti”, foi nomeado vice-presidente do Conselho Militar de Transição (Presidência da República), que lideraria o processo. Então, as RSF tinham só 20 mil soldados, mas controlavam minas de ouro no Darfur e no Kordofan Ocidental.

O governo civil liderado pelo primeiro-ministro Abdallah Hamdok, que surgiu como resultado do início do processo de transição, em agosto de 2019, iniciou a reforma dos serviços secretos, que tinham sido responsáveis por torturas e crimes inconcebíveis no novo Sudão a construir. Porém, era preciso redefinir o seu papel e limitá-lo ao fornecimento de informações ao governo.

O general Abdel-Fatah al-Burhan confiou às RSF o desmantelamento dos antigos serviços secretos. E as RSF aproveitaram o ensejo para ocupar os apartamentos, edifícios e infraestruturas onde funcionavam os serviços secretos e incorporaram alguns dos membros na sua estrutura.

O líder das RSF, Hameidti, foi responsável pelas negociações com diferentes partes no conflito do Sudão e representou o país em visitas internacionais, incluindo uma visita a Putin, em Moscovo, a 9 de fevereiro de 2022, com um avião cheio de barras de ouro, como relatou o New York Times. A sua dimensão internacional, não limitada à região de Darfur, o seu poder e a sua ambição eram cada vez mais evidentes. A exploração de minas de ouro sob o seu controlo e outras atividades das empresas registadas em nome de outros membros da família e a permissividade do general Burhan permitiram-lhe aumentar o seu ordenado e o tamanho do seu exército, que chegaria aos 100 mil soldados.

O general Burhan foi responsável pelo treino militar dos soldados de Hameidti no Darfur, no início do século. Juntos, enviaram tropas para o Iémen, para combater os Hutis em nome dos governos financiadores da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos (EAU), estando sedeadas, neste último país, as contas bancárias das empresas de Hameidti e dos familiares, e orquestraram o autogolpe de outubro de 2021 que expulsou os civis do governo de transição, quando se preparava a entrega de Omar Al-Bashir ao TPI. Nenhum dos dois estava interessado em que o ditador deposto falasse, nem podia aceitar, tranquilamente, que um governo civil pusesse em risco a sua impunidade e os grandes interesses económicos que o exército e a família de Hameidti administram. E é verdade que a componente civil, inicialmente unificada contra a ditadura, se dividiu em dezenas de elementos opostos onde o interesse pelo bem comum se perdia sob um véu de interesses particulares e de pontos de vista opostos.

Apesar de tudo, Hameidti, afirmando publicamente, nos últimos meses, que o autogolpe fora um erro, distanciava-se do companheiro de batalha e falava abertamente em prol da componente civil do processo de negociações.

A assinatura do acordo de referência não ocorreu. O conflito armado eclodiu em dois cenários: em Soba, ao sul de Cartum, e na base militar de Méroe, local estratégico para o exército sudanês, porque de lá poderiam partir os caças para desequilibrar os combates. As RSF não possuem força aérea. Em poucas horas, os soldados de Hameidti ocuparam o palácio presidencial, os aeroportos internacionais de Cartum e de Méroe e a sede da televisão nacional e cercaram o quartel-general do exército, onde Burhan resistia ao comando das SAF e quase foi capturado e morto. O exército sudanês foi apanhado em falso. E os soldados das RSF, embora não tivessem passado por uma academia militar, eram mais experientes no combate corpo a corpo, devido às recentes experiências na zona Este da Líbia, ao lado do exército de Khalifa Haftar, no Darfur e no Iémen, contra os Hutis, sempre com o financiamento dos EAU.

A capital do Sudão tornou-se, pois, o principal teatro de guerra entre as RSF e as SAF. Durante a revolução, o povo sudanês saiu às ruas e arriscou a vida para exigir um governo civil. Ficou muito entusiasmado quando Abdallah Hamdok iniciou o seu percurso como primeiro-ministro do novo governo de transição. Porém os comités de resistência de bairro continuaram a sair às ruas, a exigir justiça pelos crimes perpetrados pelas SAF e pelas RSF contra os manifestantes na revolução popular de 2019. E, quando, em outubro de 2021, Burhan e Hameidti assumiram o controlo do país, os comités continuaram a protestar, exigindo que ambos renunciassem e abrissem caminho a um governo completamente civil. O seu ponto fraco terá sido a falta de proposta alternativa bem articulada, mas o tempo demonstrou que a sua desconfiança em relação aos dois grupos estava muito bem fundamentada.

Após testemunharem de perto como, em poucos dias, as RSF destruíram estações de abastecimento de água e eletricidade, saquearam casas, universidades, ministérios, escolas, bancos, lojas, violaram centenas de mulheres, raptaram e não hesitaram em liquidar os cidadãos que se lhes opusessem, e mesmo odiando os militares, os jovens dos comités optaram por estes últimos, em vez de pensarem num país governado pelos primeiros. E a guerra do Sudão, oculta por cúmplice véu de silêncio, espalhou-se por várias regiões do país, causou mais de seis milhões de deslocados e destrói infraestruturas, vidas, sonhos e projetos.

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Entretanto, a Amnistia Internacional (AI), já a 3 de agosto, no relatório A Morte Chegou à Nossa Casa: Crimes de Guerra e Sofrimento dos Civis no Sudão”, denunciou “crimes de guerra generalizados” no Sudão, desde o início dos combates entre as RSF e as SAF.

O relatório documenta a morte de civis em ataques deliberados e indiscriminados, assim como casos de violência sexual contra raparigas de apenas 12 anos, ataques a hospitais e igrejas e pilhagens generalizadas. Algumas das violações dos direitos humanos ali documentados, como os ataques a civis, constituem crimes de guerra, sustenta Agnès Callamard, secretária-geral da prestigiada organização não-governamental de defesa e promoção dos direitos humanos, vincando que “os civis, em todo o Sudão, sofrem um horror inimaginável a cada dia que passa”, enquanto as duas forças militares “competem imprudentemente pelo controlo do território”.

A espiral de violência no Darfur lembra “a campanha de terra queimada das décadas anteriores, por vezes envolvendo os mesmos atores”, diz o relatório. E a tática da terra queimada consiste em destruir tudo o que for útil ao inimigo, no avanço ou na retirada.

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Há quem diga que o número de mortos, feridos e deslocados será maior do que na Ucrânia. O certo é que a Ucrânia e o Sudão são os grandes desafios para a ONU, em 2024.

2023.10.06 – Louro de Carvalho

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