quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A ambiguidade do Pacto Social proposto pela CIP

 

A Confederação Empresarial de Portugal (CIP), no âmbito do que chama “pacto social”, acenou ao governo com 30 propostas de cariz social e económico, acolhidas com maior ou menor simpatia, para reflexão em sede da concertação social e para debate do Orçamento do Estado para 2024 (OE2024). No entanto, a do pagamento de um 15.º mês de salário, isento de tributação, dominou a agenda mediática e irritou os restantes patrões e os sindicatos.

Os outros patrões sentiram-se ultrapassados, porque o tema não foi debatido na Comissão Permanente de Concertação Social (CPCS); e os sindicatos aduzem que não é, na prática, um incremento salarial, mas uma moeda de troca, para garantir redução da carga fiscal, há muito exigida pelo patronato, mas em que o governo não está disposto a ceder.

Porém, neste “pacto social”, há propostas novas e outras antigas, mas com novos contornos, cujo alcance não se vislumbra, por falta de concretização.

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Um 15.º mês com neutralidade fiscal é a medida-chapéu do “pacto social” que a CIP apresentou. A lei vigente obriga os empregadores a pagarem, por ano, aos trabalhadores 11 meses, o mês de férias, o subsídio de férias e o subsídio de Natal. Ao todo, são 14 meses, a que podem acrescer prémios de desempenho, prémios de produtividade ou distribuição de lucros das empresas (em alguns departamentos da administração pública, os trabalhadores participam nas receitas do respetivo serviço). As regras gerais preveem que as remunerações sejam sujeitas ao imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), consoante o valor do salário, e à contribuição para a Segurança Social (11% os trabalhadores, 24,75% os empregadores).

Há, todavia, inúmeras exceções que muitas empresas exploram, por lacunas na lei, assumidas ou involuntárias, ou pela inércia da fiscalização da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), da Segurança Social (SS) e da Autoridade Tributária (AT). Assim, para lá do salário base, as empresas recorrem a formas de remuneração sem descontos para a SS e/ou para pagamento do IRS, como a atribuição de viaturas aos funcionários, sem a existência de acordo escrito, os tickets infância, os planos poupança reforma e os fundos de pensões, entre outros.

Ora o que a CIP propõe, com o dito 15.º mês, é que a lei permita aos empregadores pagarem mais um mês, isento de descontos para a SS e de pagamento do IRS. A proposta, não pormenorizada, parece aplicar-se aos salários adicionais, independentemente do seu valor.

A medida, vertida em lei, comportaria riscos. Nos contratos existentes, poderia levar as empresas a substituírem aumentos salariais regulares pelo 15.º mês. Nas novas contratações, levaria à redução do salário base para transferir rendimento para o 15.º mês, sem tributação. E, ao desvincular os salários dos descontos para a SS, delapidaria as futuras pensões de reforma.

O problema de sustentabilidade financeira da SS originou mudanças nas regras e as gerações futuras já têm taxas de substituição menores do que a atual geração de reformados. Terão, pois, uma pensão proporcionalmente menor em relação aos descontos salariais que fizeram, em comparação com os seus pais e avós. Medidas como a sugerida forçariam o Estado a pagar mais pensões mínimas e sociais, financiadas com os impostos de todos.

A pressão sobre as famílias pela perda de poder de compra, devido à escalada da inflação e ao aumento dos juros impõe medidas que se traduzam garantia de liquidez para as famílias. A proposta da CIP configura o incremento salarial direto de 4,75%, mas a título extraordinário, em 2024 e 2025, pela redução da taxa social única (TSU), para trabalhadores e para empregadores.

Já no Acordo de Competitividade e Rendimentos, em vigor, que a CIP subscreveu, os patrões se comprometem com a atualização salarial de 4,8%, em 2024, e de 4,7%, em 2025. A proposta, agora, passa por testar, ao longo dos próximos dois anos, uma medida extraordinária de liquidez para as famílias, pelo incremento salarial (total) de 14,75% nos salários e da redução temporária da TSU, o que se traduziria no aumento da liquidez em 4,75%, sendo os restantes 10% incluídos no plano individual de reforma. Porém, no atinente à garantia da liquidez imediata (o aumento de 4,75% no salário já está plasmado no acordo de rendimentos), a CIP não detalha se se trata de um incremento cumulativo ao já previsto, ou não, como não especifica o âmbito de execução da medida que está interligada com a da criação de instrumentos complementares de reforma nas empresas, através de Planos de Reforma, com pagamentos isentos de TSU e de IRS. E paira a dúvida sobre se tais instrumentos são obrigatórios ou facultativos.

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Entretanto, os trabalhadores recusam “falácia” do 15.º mês à custa de horas extra. Na verdade, a Federação dos Sindicatos de Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal (FESAHT) reuniu-se com o secretário de Estado do Turismo, Nuno Fazenda, para lhe dizer que os trabalhadores não querem a falácia do 15.º mês, defendido pela CIP.

Os trabalhadores recusam a falácia de um 15.º mês livre de imposto, à custa de trabalho extraordinário, em feriados ou em dias de descanso, e querem um aumento digno do salário. Este cenário é agravado pela redução da TSU e do Imposto Sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC) para os patrões, ficando os trabalhadores sem “futuras reformas ou prestações sociais de desemprego, parentalidade ou doença, para, de forma encoberta, dizerem que nos estão a dar alguma coisa”. Ao invés, a federação, afeta à Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), reiterou a proposta do aumento mínimo de 150 euros, da valorização da antiguidade, da redução da carga horária, do reforço dos quadros de pessoal, da valorização do trabalho dos feriados e dos fins de semana e da melhoria das condições de trabalho.

O secretário de Estado disse ter um pensamento convergente com a maioria das reivindicações e comprometeu-se a manifestar junto das associações patronais as suas preocupações.

Por outro lado, a FESAHT mostrou-se preocupada pela forma como os trabalhadores imigrantes são tratados, com os patrões a recrutarem com base em salários baixos e horários desregulados. Lamentou andar a caminhar para o Ministério do Trabalho, há 10 anos, sem que se concretize a alteração à lei da hotelaria e dos empreendimentos turísticos. Sustentou que alguma formação profissional não serve o setor, pelo que solicita a realização de um fórum de reflexão, do qual saiam decisões que aumentem a atratividade das profissões junto dos jovens. E, abordando a “inoperância da fiscalização da ACT”, pediu “coragem política” para pôr termo à nova lei do salário mínimo nacional (SMN), “que permite que se pague a jovens estagiários e aprendizes apenas 80% do valor”.

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Quanto ao IRS, é de perguntar o que distingue a proposta da CIP do atual regime de IRS jovem. O regime abrange os jovens entre 18 e 26 anos (ou 30, com doutoramento) com qualificações do ensino secundário, do profissional ou do superior. A isenção do IRS é de 50% (no 1.º ano e trabalho), de 40% (n.º 2.º ano), de 30 % (no 3.º e no 4.º) e de 20% (no último ano), com os limites, respetivamente, de 12,5 x Indexante dos Apoios Sociais (IAS), de 10 x IAS, de 7,5 x IAS e de 5 x IAS. O governo quer alargar o benefício, em 2024, e isentar de IRS os jovens até aos 35 anos de idade (como a CIP sugere), que estão no 1.º ano de trabalho, que pagarão 25% do IRS suposto pela regra geral, no 2.º ano de atividade, 50%, no 3.º e no 4.º ano, e 75%, no 5.º. Manter-se-ão limites, mas os pormenores serão conhecidos com a proposta do OE2024.

Na taxação do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) a 6% para todos os produtos alimentares, estão em causa, sobretudo, os alimentos transformados (pré-cozinhados vendidos congelados), agora taxados a 23%. A medida terá o impacto de 110 milhões de euros nos cofres do Estado. Reduzir a taxa de 23% para 6% em todos os produtos alimentares é reivindicação antiga da área dos congelados a que a CIP se associou, estendendo-a a todos os alimentos. E o governo não descarta o prolongamento do IVA zero, em 2024, do cabaz de 46 produtos alimentares essenciais.

Estimular o investimento com a descida do IRC para 17% é ideia velha, ora retomada pelo presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCSP), João Vieira Lopes, na sequência do acordo fechado em 2014, mas sem efeito desde 2015. O OE2023 permite a aplicação da taxa de IRC de 17% até aos 50 mil euros de lucro tributável (eram 25 mil euros) das pequenas e médias empresas (PME) e das empresas em atividade no interior, bem como das de pequena-média capitalização (com menos de 500 trabalhadores). E a CIP propõe que a taxa nominal de 21% desça para os 17%, de forma faseada, até 2025, para a generalidade das empresas. O objetivo é tornar Portugal mais competitivo na atração de investimento direto estrangeiro e tornar mais atrativas as condições do investimento por empresas nacionais.  

Para o crescimento da economia, a CIP propõe a criação do Crédito Fiscal para a Competitividade e o Emprego, dedicado ao investimento, à contratação ou ao acréscimo do pagamento de salários ou rendimentos dos trabalhadores, bem como à agilização da entrada de capital próprio nas empresas, equiparando-o aos efeitos fiscais da entrada de capital alheio. E, em termos fiscais, também aponta a atualização dos escalões do IRS à inflação e em taxas de retenção contínuas, o que existe desde julho, quando entraram em vigor as novas tabelas de retenção na fonte adaptadas aos nove escalões do imposto, à atualização dos mesmos em 5,1%, ao aumento do SMN; e, incorporando a descida da taxa de IRS do segundo escalão de rendimentos, quer a reformulação das regras de cálculo do mínimo de existência e o aumento da dedução de IRS a partir do segundo filho. Além disso, pretende a redução, em 50%, da incidência de IRS e SS sobre o trabalho extraordinário e subsídios de turno. Em causa estão indústrias ou atividades com laboração contínua em que os turnos noturnos são indispensáveis e a cujos trabalhadores se paga um adicional pela penosidade das funções nesse horário.

Adaptar o mercado de trabalho às realidades das populações e às preocupações sociais é outra vertente a que se dirige a CIP, desejando promover a longevidade ativa voluntária, mercê do aumento da esperança média de vida e, com ela, da idade legal da reforma, o que deve manter os mais velhos no mercado de trabalho durante mais tempo. A questão, identificada há anos, motivou a adoção de medidas, como a penalização das reformas antecipadas e o aumento da bonificação de quem trabalhe para lá da idade legal da reforma, mas não se percebe se a CIP quer aumentar as bonificações ou se quer a adoção de outras medidas.

Sobre a simplificação da relação dos empregadores e trabalhadores, o governo apresentou, em 2018, o projeto Balcão Único do Emprego, para aproximar cidadãos e empresas do Serviço Público de emprego. E a CIP propõe o Balcão Único do Trabalhador e da Empresa, a partir da rede de Centros de Emprego, mas não detalha a proposta, nem esclarece a sua abrangência.

Na conciliação entre a família e o trabalho, não se percebe se a CIP vai além das medidas que o que o governo fez aprovar no quadro da Agenda para o Trabalho Digno. A CIP pretende reforçar a coesão social e a igualdade de género e de idade, mas não avança medidas concretas nem do lado do Estado, nem do lado das empresas.

A nível da formação e do ensino, a CIP quer “reformar o ensino profissional, garantindo uma formação que corresponda às necessidades da indústria, e avaliar a permanente adequação da oferta formativa superior às necessidades de competências dos empregadores”, uma bandeira não só da CIP, mas da generalidade das associações e confederações empresariais. E, sem detalhes, vem a generalização do ensino da informática e das competências digitais, um dos pilares do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para a transformação digital das empresas, crítica para a economia nacional, pois, num tecido económico constituído por micro e pequenas empresas, é um desafio a formação e a requalificação dos profissionais e dos líderes.

Criar o Regime Especial do Trabalhador-Estudante é outra proposta da CIP. Todavia, o governo aprovou, em maio, uma medida que possibilita ao estudante trabalhador acumular rendimentos de trabalho com bolsas de estudo e apoios sociais, pelo que a ideia é redundante.

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Enfim, a CIP tem ideias inaceitáveis, inviáveis ou redundantes. E essa do 15.º mês é a forma de ficar bem na foto a dizer que é viável o aumento salarial de 4,8%. Assim, também eu faria!

2023.10.04 – Louro de Carvalho

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