terça-feira, 24 de outubro de 2023

A firmeza do granito da Beira Serra temperada pela maresia do Porto

 

Serve o enunciado em epígrafe para caraterizar sinteticamente, do meu singelo ponto de vista, a personalidade de Manuel António Pina, acerca de quem nunca tive a ousadia de escrever, embora o devesse, pois era, para mim e para muitos jovens, uma das maiores referências do Jornal de Notícias (JN), um dos diários nortenhos mais bem conseguidos e que nós líamos, quando estudantes ou quando laborávamos nos recantos perdidos do interior do país.

É, pois, natural que o 19 de outubro de 2012 fosse dia de desapontamento, por causa do seu falecimento, ainda novo, apesar de a antropologia cristã nos levar a acreditar que os homens não morrem, apenas passam a fronteira, ficando a acenar-nos com a lonjura da eternidade. Não obstante, o desaparecimento, do mundo dos que se consideram “os vivos”, da figura polifacetada do jornalista, escritor, poeta e tradutor – lembrando o granito que sorri ou o vento forte que afaga os desamparados – cavava uma lacuna humana no património cultural e humanístico que Manuel António Pina vinha enriquecendo.

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Manuel António Pina, filho de Manuel Pina e de Ester Mota, nasceu a 18 de novembro de 1943, no Sabugal, distrito de guarda [“Nasci no Sabugal, mas costumo dizer que me nasci a mim mesmo no Porto” – dizia], e faleceu a 19 de outubro de 2012, no Hospital de Santo António do Porto, de doença prolongada. Aos 17 anos de idade, passou a viver no Porto. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, em 1971, exerceu a advocacia e foi técnico de publicidade.

Entretanto, abraçou a carreira de jornalista profissional, exercendo no JN, no Porto, entre 1971 e 2001, onde veio a desempenhar funções de editor e de chefe de redação. Além do JN, tem colaboração dispersa por outros órgãos de comunicação, entre imprensa escrita, rádio e televisão – República, Diário de LisboaO Jornal, Expresso, Jornal de Letras, Artes e IdeiasMarie Claire, a Visão (de que foi colunista), a Península (Barcelona), Rádio Porto, RTP, etc.

Foi também professor da Escola Superior de Jornalismo do Porto e membro do Conselho de Imprensa. E, depois de deixar o trabalho de permanência no JN, continuou a sua colaboração nele como cronista, bem como na revista Notícias Magazine.

A sua obra consegue forte coesão estrutural, mantendo em ambos os registos – poesia e literatura para a infância – o que foi classificado como “um discurso de invulgar criatividade e de constante desafio à inteligência do leitor”, independentemente da sua idade. E reflete grande criatividade, exigindo do leitor profundo sentido crítico e descodificador. Por vezes, o jogo vocabular e conceptual, aliado ao permanente jogo de imaginação, parece criar um labirinto que obriga a um verdadeiro trabalho de desconstrução para se encontrar a saída.

Na obra poética, revela um cariz sentido e reflexivo, de tom irónico e de pendor filosofante, revelando uma tendência nietzschiana, para conseguir, segundo alguns críticos, “uma segunda e mais perigosa inocência”. Já a sua obra de literatura para a infância, que tem lugar privilegiado no panorama nacional, graças a um nonsense de tradição anglo-saxónica (onde se deteta a influência de Lewis Carroll), brinca, inteligente e seriamente, com as palavras e com os conceitos, em jogo de persistente imaginação. Por isso, grande parte desta literatura infantojuvenil está presente em manuais escolares e em antologias de Portugal e de Espanha.

Manuel Frias Martins considera que o poeta se afirmou como uma das mais originais vozes na expressão pós-pessoana da fragmentação do eu, manifestando, sobretudo a partir de Nenhum Sítio, tendência para a exploração das possibilidades filosóficas do poema, transportando a palavra poética, “quer para a investigação do processo de conhecimento, quer para a investigação do processo de existência literária”.

Tem estreita relação com o teatro, tendo sido, em 1982, bolseiro do Centro Internacional de Teatro de Berlim junto do Grips Theater (Berlim). Foram feitas mais de duas dezenas de produções teatrais baseadas em textos seus, por várias companhias teatrais do país. Apresenta vários programas de ficção e de entretenimento para a televisão, entre os quais uma série infantil de doze episódios “Histórias com Pés e Cabeça” (1979/80). Aliás, foi desde 1994, autor de vários guiões para séries de ficção para TV. E tem obra adaptada ao cinema: José Carvalho realizou, em 1980 “Uma História de Letras”, a partir de um conto de O Têpluquê. João Botelho realizou, em 1999 “Se a Memória Existe”, filme sobre texto integral de O Tesouro. Está editada em vídeo “Pequena Antologia Poética de Manuel António Pina” (1998). Foram editados vários discos com textos seus musicados, nomeadamente “O Inventão”, “O Bando dos Gambozinos”, “O Beco” e “A Casa do Silêncio”. E o poema “Farewell Happy Fields” foi objeto da exposição com o mesmo nome de 50 desenhos de Alberto Péssimo, apresentada na Galeria Labirinto, no Porto, em 1992.

Organizou, prefaciou e traduziu O Homem Invisível (antologia poética de Pablo Neruda), Porto: Afrontamento, 1965; e subscreveu, dispersas por jornais e revistas, traduções de Frei Luis de Léon, de Jules Laforgue, de T. S. Eliot, de Paul Éluard e de outros poetas.

Colaborou ou está representado nas seguintes publicações coletivas e antologias: Antologia da Poesia Portuguesa, Lisboa: Moraes ed., 1979; De que São Feitos os Sonhos, Porto: Areal ed., 1985; Sião, Lisboa: Frenesi, 1987; Poesia Portuguesa Hoje, Rio de Janeiro: Fundação da Biblioteca Nacional do Ministério da Cultura do Brasil, 1993; O Poeta e a Cidade, 2.ª ed. Porto: Campo das Letras, 1996; Cadernos de Serrúbia, n.º 2, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, Dez. 1997; Retratos e Poemas, Lisboa: Casa Fernando Pessoa, 1998; Poemas de Amor, Lisboa: Publicações D. Quixote, 2001; Rosa do Mundo / 2001 Poemas para o Futuro, Porto 2001 e Lisboa: Assírio & Alvim, 2001; Ao Porto, Lisboa: Publ. D. Quixote, 2001; Século de Ouro / Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX, Coimbra: Capital Nacional da Cultura e Lisboa: Cotovia, 2003. Integrou as representações oficiais da Literatura Portuguesa na Feira do Livro de Frankfurt (1997), no Salão do Livro de Paris (2000) e no Salão do Livro de Genève (2001). Em 1997, foi poeta residente convidado da cidade de Villeneuve-sur-Lot (França) e, em 2001, foi agraciado com a Medalha de Ouro de Mérito da Câmara Municipal do Porto.

Em 2005, a 9 de maio, foi feito Comendador da Ordem do Infante D. Henrique.

Integrou a carteira de itinerâncias da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas DGLB – antecessora da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) –, como líder de comunidades de leitores em Bibliotecas Municipais. Está traduzido e publicado em Espanha, na França, na Dinamarca, na Croácia, na Bulgária, na Rússia, nos Países Baixos e nos Estados Unidos (EUA), com o apoio da DGLB, e recebeu vários prémios.

É autor de vários títulos de poesia, novelas, textos dramáticos e ensaios.

Em poesia, temos, por exemplo: Nenhum Sítio (1984), O Caminho de Casa (1988), Um Sítio Onde pousar a Cabeça (1991), Algo Parecido Com Isto da Mesma Substância (1992); Farewell Happy Fields (1993), Cuidados Intensivos (1994), Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança (1999), Le Noir (2000), Os Livros (2003).

Em novela, destaca-se O Escuro (1997). Em texto dramático:  História com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas (1984), A Guerra Do Tabuleiro de Xadrez (1985). No ensaio: Anikki – Bóbó (1997). Na crónica, O Anacronista (1994). E, na literatura infantil: O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973), Gigões e Anantes (1978), O Têpluquê (1976), O Pássaro da Cabeça (1983), Os Dois Ladrões (1986), Os Piratas (1986), O Inventão (1987), O Tesouro (1993), O Meu Rio é de Ouro (1995), Uma Viagem Fantástica (1996), Morket (1999), Histórias que me contaste tu (1999), O Livro de Desmatemática e A Noite, obra posta em palco pela Companhia de Teatro Pé de Vento, com encenação de João Luís.

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Quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, respondia, em verso, que queria ser santo, bombeiro, detetive e “Salazar” (tudo profissões). Tinha alguns brinquedos, mas os preferidos eram as palavras: “E outros brinquedos que eu tinha, de facto, eram as palavras. E descobri isso, quando era muito novo. Com as palavras inventava coisas. Sempre gostei muito das palavras…” As palavras viveram uma história de amor com Manuel António Pina. “As palavras, todas as palavras, adoravam-no – e voam, deslumbradas, para ele”, diz Álvaro Magalhães, companheiro de longa data do poeta e seu biógrafo.

Sentava-se à mesa com um livro aberto em frente ao prato da sopa, sendo repreendido por isso. Aos 7 anos de idade, fez uma das leituras mais emocionantes: os dois volumes de A Vida Sexual, de Egas Moniz, que leu às escondidas e que figurou, para sempre, na lista dos favoritos, com Alice no País das Maravilhas, Joanica-puff, a Bíblia e a Ilíada. Lia tudo, incluindo entradas avulsas da Enciclopédia Verbo. Dos poetas, Pessoa ficou-lhe para sempre: “Apanhei então alguma daquela poesia […], como se apanha uma doença.”

Além das tertúlias no café Orfeu, havia um grupo mais restrito que desaguava em casa de Manuel António Pina, aí continuando as conversas sobre literatura. Era um bom conversador e contador de histórias. Esclarece Álvaro Magalhães que, até quando narrava um drama ou uma desgraça, corria o risco de ser engraçado. Foi professor, advogado, guionista, publicitário, ator de teatro, praticante de artes marciais, revolucionário, adepto de futebol e jogador de póquer. E foi poeta inimitável, “um poeta que já nasceu feito”, no dizer de Álvaro Magalhães, relativamente ignorado, desde que começou a publicar, em 1974, até 1999, quando tinha quase 60 anos e viu a sua poesia ser publicada pela Assírio & Alvim.

Também se registam dados meio picarescos. Uma professora da Escola Secundária Maria Lamas, no Porto, que havia sido aconselhada a ensinar a sua poesia nas aulas, recusou, alegando que não a entendia. Tendo conhecimento do facto, o poeta comentou: “É natural, eu também não entendo aquilo que escrevo.” Durante uma visita escolar, um aluno pergunta-lhe por que escolhera ser poeta e escritor: “A literatura é que me escolheu a mim.” 

Em 2011, recebeu “a coisa mais inesperada que podia esperar”: o Prémio Camões.  

Acreditava que não vale a pena fazer planos para a eternidade, porque esta “está-se nas tintas” para os nossos planos. Só pediu: “Fazei com que alguma coisa permaneça. Um verso, um poema.” “A ideia de reforma, que é horrível, aterroriza-me. Quero trabalhar até morrer.”, disse em 2000, quando, então com 57 anos, deixou o jornal onde trabalhara como jornalista durante 30 anos.

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A sua obra tem merecido destaque, tendo sido já homenageado com diversos prémios, como, por exemplo, o Prémio Literário da Casa da Imprensa, em 1978, por Aquele Que Quer Morrer; o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens e a Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio, da Universidade de Pádua, em 1988, por O Inventão; o Prémio do Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude, em 1988, pelo conjunto da obra; o Prémio Nacional de Crónica Press Clube/Clube de Jornalistas, em 1993, pelas suas crónicas; o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, em 2001, por Atropelamento e Fuga; e o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Grande Prémio de Poesia da APE/CTT, ambos pela obra Os Livros, recebidos em 2005. Em 2011, foi-lhe atribuído o Prémio Camões. E, a título póstumo, foi galardoado com o Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes, pelo livro Como se Desenha uma Casa, e com o Prémio Especial da Crítica dos Prémios de Edição Ler/Booktailors 2012, pelo livro Todas as Palavras – Poesia Reunida.

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Como dizem 10 amigos que se reuniam com ele no café Convívio (e por quem esperavam) e que fundaram o Clube dos Amigos à Espera do Pina”, “talvez continuemos todos à espera do Pina”. Entretanto, vamos lendo e refletindo.

2023.10.24 – Louro de Carvalho

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