domingo, 1 de outubro de 2023

A descentralização é processo não fechado e nunca acabado

 

Decorreu, a 30 de setembro, no Pavilhão Cidade de Amora, no concelho do Seixal, do distrito de Setúbal, o XXVI Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), onde os temas debatidos (interligados) foram a descentralização, a autonomia, a coesão territorial e o financiamento local.

Assumindo que a descentralização, há muito reivindicada pelos autarcas, ganhou importância central, a presidente da ANMP, Luísa Salgueiro, frisou que não se trata de um processo para aferir se um município passa a ter mais poder ou de um processo fechado, mas em curso, para garantir melhor serviço às pessoas. “O processo não está concluído. Nós temos de continuar a negociar, mas, à medida que vamos avançando nas várias etapas que vão sendo trabalhadas, vamos neutralizando os impactos e, portanto, a ambição mantém-se”, disse, na abertura do congresso, a líder da ANMP e presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, no distrito do Porto.

A socialista referiu que o processo tornou clara a inevitável conclusão de que muitas das áreas, agora alvo de descentralização, estavam subfinanciadas. Por isso, o trabalho dos últimos dois anos na ANMP foi no sentido de a descentralização não ter impacto negativo nos orçamentos dos municípios, o que tem sido conseguido. Com efeito, é importante garantir que os municípios se mantêm financeiramente saudáveis e capazes de responder às pessoas.

“Nós sabemos que o processo de descentralização não está perfeito, mas também sabemos que […] não está no mesmo ponto em que estava. E isso tem de ser reconhecido”, sustentou Luísa Salgueiro, ressalvando que o trabalho feito até agora teve um “enorme significado na vida dos municípios, mas sobretudo na vida das pessoas”.

Também, na abertura do congresso, o primeiro-ministro (PM) assumiu que este processo tem constituído uma “longa caminhada” e passado por uma negociação “muito difícil, exigente e transparente”, entre governo e os municípios, que “nunca estará acabada”. “Eu não sei se é uma boa notícia ou se é uma má notícia, mas aquilo que vos quero mesmo dizer é que este é um processo que nunca estará acabado”, sublinhou António Costa.

A principal razão, entre outras, por que a descentralização “nunca estará acabada” tem a ver com a confiança de quem transfere e de quem recebe as competências. Assim, no dizer do PM, à medida que vão ganhando confiança, os municípios percebem que podem ir mais além do que foram até então. “Muitos dos presidentes de câmaras que hoje já assumiram as competências na área da educação ou na área da ação social eram muitos do que eu ouvi dizer que nunca iriam assumir essas competências, porque não havia condições”, reforçou.

O PM apontou outra razão para a índole inacabada do processo, esta atinente à sua evolução: conforme se vão conhecendo e analisando, com “mais olhos”, os processos, vai-se percebendo que “muitos dos problemas estavam escondidos”. E verbalizou: “A descentralização só será um sucesso quando os meios acompanharem as competências, de forma que, no final do dia, quer o Estado, quer os municípios, quer as freguesias possam dizer aos cidadãos: ‘hoje estamos em melhores condições para prestar melhores serviços às populações’.”

O chefe do governo recordou que, neste momento, 100% dos municípios já assumiram as competências na área da ação social e da educação e que 85% dos 201 municípios com quem estão a negociar a transferência das competências na área da saúde já as assumiram.

O PM reconheceu que o processo não é fácil, mas “muitíssimo aliciante e motivador” e que “será sempre feito de um lado e de o outro, para bem do país e para bem das portuguesas e dos portugueses”.

E, no atinente à habitação, adiantou que a cada município compete definir a melhor estratégia local, cabendo ao governo criar os instrumentos legais e financeiros para a sua execução.

Também o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, na qualidade de presidente da mesa do congresso, pediu mais descentralização, com mais recursos, nas áreas da educação, da saúde e da ação social, com a dupla convicção de que o país precisa de mais municipalismo, para ser mais forte, e de que os municípios podem fazer mais, “nestes tempos difíceis, tempos de inflação, tempos de aumento do custo de vida, de transformações tão profundas como a digitalização como a inteligência artificial”.

Retomando palavras do presidente da Câmara do Seixal, dirigiu-se o ministro da Educação, João Costa, ali presente, para falar da dificuldade recorrente em conseguir fazer a descentralização sem os recursos necessários, dando como exemplo, “o défice que temos entre aquilo que nós investimos na educação e aquilo que recebemos do governo”.

Terá sido por isso que António Costa, no fim da sessão de abertura, não prestou declarações aos jornalistas, mas chamou o ministro da Educação, com quem falou durante algum tempo?

O autarca lisbonense revelou que as câmaras municipais não querem só gerir e contratar pessoal operacional, construir escolas ou requalificar escolas, mas podem ajudar na afetação de “casas dignas” para professores, por exemplo. É de perguntar de que estão à espera, para o fazerem. 

Na área da saúde, “construímos o centro de saúde, mas, depois, também podemos fazer mais nesses centros de saúde. Podemos contratar os médicos, se for necessário. Podemos fazer com que a saúde seja realmente tratada naquilo que é base local da proximidade e dos cuidados primários”, sublinhou Carlos Moedas, acentuando que só é preciso que o governo confie nos autarcas, lhes delegue competências e lhes atribua “os recursos que são necessários e que são tão precisos para termos uma verdadeira descentralização”. “A verdade é que ainda estamos, de certa forma, nesta descentralização a meio da ponte”, admitiu. “Não podemos ficar a meio da ponte. Temos de atravessar a ponte”, porfiou.

Desde já, quero alertar para o perigo de uma descentralização desviante, sem duvidar da boa-fé de muitos autarcas. Algumas autarquias podem fazer da gestão de proximidade, com dinheiro e com poder decisório, algo que não pode acontecer, por exemplo, dar ordens desgarradas às escolas (ou seja, sem articulação com os dirigentes escolares) sobre gestão (nomeadamente horários e distribuição de serviço), progressão e promoção do pessoal; e, se alguma vez, as autarquias tiverem uma palavra a dizer na colocação dos docentes, terão de afastar a permeabilidade da eventual intenção do voto em eleições e não passarem a consignar a gestão da escola pública a entidades privadas. Isto evita-se com acurada avaliação do exercício das competências.

E é de esclarecer que a transferência de competências da administração central para a local não é um simples delegação de competências: esta pode cessar por vontade unilateral do delegante, ao passo que aquela só cessa, mediante denúncia do acordo, por motivos objetivos devidamente comprovados e, eventualmente, por decisão dos competentes tribunais.  

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Por seu turno, a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, garantiu que, em 2024, o fundo de financiamento para a descentralização voltará a aumentar, sem, contudo, adiantar números, pois a negociação continuará até ao encerramento do Orçamento do Estado.

Contudo, a governante ressalvou que as transferências financeiras para as autarquias não aumentaram só no item da descentralização ou só por causa dele. Desde 2015, acrescentou, as transferências sofreram um aumento de 36%. E, assumindo que a descentralização é “uma das maiores reformas administrativas das últimas décadas”, vincou: “Temos a certeza de que irá ajudar as freguesias, os municípios, as comunidades intermunicipais e as regiões a terem um papel mais interventivo na definição das políticas públicas, nas metas de desenvolvimento a que se propõe e no serviço que prestam às populações.”

O objetivo da reforma é criar “maior autonomia, participação, poder de decisão e poder para resolver o problema das pessoas”. Portugal está a mudar profundamente a relação entre a administração central e as autarquias. Contudo, a reforma administrativa em curso é “um caminho longo que ainda está a ser percorrido”, com avanços significativos, por vezes, em contrarrelógio, às vezes não à velocidade que desejamos, mas fazendo caminho, tirando pedras do caminho”.

Ana Abrunhosa revelou que a descentralização “pôs a descoberto injustiças e problemas” que, agora, serão corrigidas. Mas, vincou, não há, efetivamente, descentralização sem o financiamento adequado para às novas competências.

E, no respeitante à transferência de competências, lembrou que não é função do governo andar a fiscalizar as competências que transfere: “Não é função do governo andar a pedir mapas e mapas e mapas, não é função do governo andar a fazer essa fiscalização. Que se crie, então, uma entidade que tenha esse papel, que hoje está na Inspeção-Geral de Finanças (IGF), mas que todos sentimos, de algum modo, que tem que ser reforçado.”

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O congresso terminou com a estrela do evento, o Presidente da República (PR), que pediu aos autarcas que tentem criar, nos próximos dois anos, acordos de regime em áreas como as finanças locais, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e o Portugal 2030, destacando que nem sempre os acordos de regime são possíveis, e realçando que foi o caso da regionalização do país, que continua por cumprir.

Resta perguntar-lhe pelo seu contributo, como líder da oposição para a armadilhar com a via referendária obrigatória, através da revisão constitucional de 1997.

No entanto, destacou que o novo regime das finanças locais, o (PRR) e o programa comunitário Portugal 2030 são áreas para novos acordos entre autarcas de várias forças políticas. “Aproveitem estes dois últimos anos para aprofundar as pontes possíveis”, recomendou.

O PR preconiza que essas pontes deverão ser criadas também na relação dos municípios com o Estado, com as freguesias e com as regiões autónomas, mas que os autarcas têm razões para estarem orgulhosos dos primeiros dois anos deste mandato, que foram “muito difíceis”, tendo enfrentado uma pandemia e, agora, uma guerra.

Marcelo Rebelo de Sousa, que defendeu a necessidade de uma reforma do Estado, pois o Estado não pode continuar a ser o que era antes do processo de descentralização para os municípios, afirmou que a “descentralização tem duas faces da moeda”: transferir competências e recursos equivalentes ou correspondentes para o poder local; e reformar-se o Estado, porque não pode o poder local ser chamado a reformar-se, ficando o Estado para trás, na reforma.

O PR avisou que o Estado não “se pode habituar à ideia do álibi fácil” de que as competências descentralizadas já não são nada com ele. São com o país e, por isso, também com o Estado, ao qual compete “a visão nacional das políticas públicas”, ficando as autarquias com “uma quota-parte da intervenção nessas políticas públicas”, o que “pode não resultar, se o enquadramento nacional falhar”.

O PR exemplificou que “vem a caminho – e bem, finalmente – aquilo que é, a partir de janeiro, a definição dos termos de gestão do Serviço Nacional de Saúde, antecedido por alguns diplomas” que espera para promulgação: “Todos sabem que vai ser alargada a competência das autarquias. Mas a responsabilidade pela gestão nacional dessa nova realidade, que vai dar um novo sopro ao Serviço Nacional de Saúde, é da instituição pública nacional, criada no quadro do Estado.”

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O quadro da transferência de competências está desenhado e, em parte, está em execução. Seria bom que as autarquias gerissem melhor do que a administração central. Todavia, a gestão de proximidade é, às vezes, mais permeável do que a estatal a influências particulares e a objetivos de política doméstica, sobrepondo-se ao escrutínio a dependência política, económica e social.

2023.09-30 – Louro de Carvalho

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