sábado, 7 de outubro de 2023

O caos instalado no SNS mostra que o dinheiro não é tudo

 

Na gestão do quotidiano, os hospitais têm dificuldade em assegurar as escalas dos turnos de urgência, devido à entrega de milhares de minutas a declarar a indisponibilidade dos médicos para trabalharem além das 150 horas extraordinárias legais. Em alguns fins de semana, a falta de profissionais para escalar obriga serviços de urgência a fechar. Assim, o aumento de 2500 milhões gastos com pessoal no Serviço Nacional de Saúde (SNS), desde 2015, pouco valeu.

O Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, que abrange os hospitais de Vila Real, Chaves e Lamego concentra a urgência em Vila Real. Em Aveiro, a cirurgia trabalha com dois elementos, em vez de três. Em Viana do Castelo, a medicina interna funciona com a equipa reduzida: de quatro elementos passa para três, até às 20 horas de 6 de outubro, e para dois, a partir dessa hora, como refere Paulo Passos, cirurgião no hospital e dirigente da comissão executiva da Federação Nacional dos Médicos (FNAM). E foram canceladas consultas e cirurgias programadas para escalar internistas e anestesistas para a urgência. O mesmo sucede com ecografias e com rastreios do cancro do colo do útero, em ginecologia e obstetrícia. Em Viseu, com 100% dos pediatras indisponíveis para mais horas extra, o Conselho de Administração pressiona internos do último ano a serem equiparados a especialistas em turnos de urgência.

O Hospital de Leiria, com 100% dos cirurgiões gerais em protesto, está sem apoio de cirurgia geral ao serviço de urgência desde as 20h de 5 de outubro até às 8h do dia 8, situação que se replica em “todos os fins de semana de outubro”, garante a cirurgiã Sandra Hilário, responsável sindical regional da FNAM. Na especialidade de cardiologia, que, neste hospital, contém a via verde coronária, as urgências encerraram das 8h do dia 7 às 8h do dia 8, prevendo-se igual situação nos fins de semana de 13 a 15 de outubro e no último do mês. E, na especialidade de ginecologia e obstetrícia, as urgências encerram no mesmo período, com uma “situação mais delicada em novembro, porque se espera que fechem de quinta a segunda-feira”.

Na Região Centro, o cenário não é animador. A 45 minutos de Leiria, o Hospital de Santarém tem estado sem apoio de cirurgia geral e espera-se que a especialidade de ortopedia se veja sem médicos para abrir urgência. Na Guarda, a medicina interna, a especialidade basilar das urgências hospitalares, fechou portas a 1 de outubro e continuará a fechar, como admite a Vitória Martins, vice-presidente FNAM. Os constrangimentos são, principalmente, nos hospitais periféricos, por disporem de menos recursos humanos e por os disponíveis fazerem imensas horas extra, por vezes 300 ou 400 num ano. Todavia, o maior hospital da região, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), para onde são encaminhados muitos doentes que não podem ser atendidos nos hospitais de média dimensão, também contou com uma “adesão em peso” dos médicos de medicina interna, que se fará sentir a partir de novembro.

A norte, vários hospitais mostraram a fragilidade da falta de recursos humanos, com Penafiel a encerrar a urgência de cirurgia geral, pelo menos, nos próximos 15 dias, e com Matosinhos a anunciar o encerramento da urgência de cirurgia geral nos fins de semana de outubro. Na Unidade Local de Saúde Alto Minho, que inclui os hospitais de Viana do Castelo e de Ponte de Lima, concentra-se a urgência em Viana do Castelo, mas está encerrada, para cirurgia geral, das 8h de 6 outubro até às 8h do dia 8, depois de todos os cirurgiões terem entregado minutas de recusa a mais horas extraordinárias. Nem os tarefeiros têm sido solução. E Paulo Passos explica: “Muitas vezes os prestadores de serviço são colegas que estão nos quadros de outro hospital. Provavelmente, nesta situação, também eles entregaram minutas e não lhes ficaria bem.”

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Esta situação de protesto – a opção do SNS por tarefeiros e por horas extraordinárias dos médicos dos quadros é antiga: liberta o Estado do aumento da despesa estrutural, anatematizado pela União Europeia (UE) – agudizou-se a partir de 18 de agosto, sábado de festividades em Viana de Castelo. O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, voltara a adiar as negociações com os sindicatos, escudando-se na fé de que a dedicação exclusiva resolveria o problema e alegando que este sistema vem de muito longe. Assim, duas médicas da escala de urgência do hospital, querendo desfazer o nó, decidiram escrever-lhe. O texto, redigido de imediato, garantia que os médicos não fariam horas extra, além das obrigatórias, se não houvesse acordo. A carta, subscrita por 1055 clínicos e enviada a 1 de setembro, não teve resposta, mas o efeito produzido surpreendeu até quem a escreveu e assinou. E o ministro agendou nova reunião.

À ideia, que partiu de Helena Terleira, 60 anos, assistente graduada de medicina interna, e de Alexandra Esteves, internista quase acabada de especializar-se, aderiu Carla Meira, com 47 anos e também internista no hospital de Viana, a Unidade Local de Saúde do Alto Minho. E da carta nasceu o movimento Médicos em Luta, que de três, em Viana do Castelo, já passou para mais de 5 mil, em todo o país.

A reunião fora marcada para 11 de setembro e o ministro antecipou-a para dia 7, mas percebeu-se que não cederia. Acreditaram que olharia o movimento como sendo a sério, mas não cedeu e avançou com a dedicação plena. “Criou uma revolta e de um grupo, no WhatsApp, tivemos de criar três; e, depois, ir para o Telegram, para juntar todos os médicos”, disse Helena Terleira. “Nem sabíamos que a plataforma existia, nem como se fazia”, atirou Carla Meira.

O movimento inorgânico ganhou uma estrutura. Funciona com subgrupos para a dedicação plena, comunicação à população, cuidados primários e formas de luta. “É muito dinâmico. Temos um link que enviamos e os médicos aderem com o número de cédula”, explica a médica sénior que gere a mobilização. Alexandra Esteves, a mais jovem, tem a parte digital a seu cargo e Carla Meira o apoio jurídico, para casos em que as administrações hospitalares tentam desviar médicos da atividade programada para a urgência.

Além da especialidade e do local de trabalho, as três médicas partilham o inconformismo. Fizeram todas as greves do ano e foram a duas manifestações em Lisboa, mas não acontecia nada. Então, juntaram-se e estruturaram a contestação, “que é muita”. Não têm filiação política e recusam ‘aparecer’, por acreditarem ter sido o desinteresse pelo protagonismo que mobilizou os colegas.

Helena Terleira, que só participou na campanha política de Maria de Lourdes Pintasilgo, por se tratar da primeira mulher candidata à Presidência, diz que nada tem a perder: está a seis anos da reforma e quer sair a saber que fez “tudo para que os mais novos fiquem no SNS”. Admitindo que o protesto deixa os serviços sem resposta, afirma: “Fiz um juramento pela vida, acima de tudo, mas não da minha. No meu tempo de trabalho cumpro o juramento. Se um doente morrer durante o protesto, não seremos responsáveis. Será fora do horário de trabalho.” E Carla Meira questiona: “Há o direito à saúde dos doentes e dos médicos, a não errar, por ter sido obrigado a trabalhar demais. Os pilotos, os camionistas não o fazem. Porque fazem os médicos?”

As médicas afirmam que o protesto só terminará quando os sindicatos disserem à porta do Ministério que há acordo. Têm três meses – em janeiro, as horas extra voltam a zero. “Ninguém estava à espera do que está a acontecer, nem nós, nem o ministro. Se não resultar, vai ser a destruição total do SNS”, profetiza Carla Meira.

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Este protesto, que está a asfixiar, sobretudo, as urgências, postula um balão de oxigénio imediato que “não pode ficar em lista de espera”, mas não basta para curar ou regenerar o SNS. Por isso, o governo tem de negociar com dos sindicatos, usando ambas as partes de razoabilidade e de boa-fé. A tutela não pode tomar, unilateralmente, decisões em matéria tão importante. E os médicos, que têm razão na luta, deviam abster-se de produzir asserções como esta: “Se um doente morrer durante o protesto, não seremos responsáveis. Será fora do horário de trabalho.” É desnecessária e chocante. Com efeito, ninguém os questiona assim e qualquer cidadão lamenta a morte de quem quer que seja, independentemente de ocorrer no seu horário de trabalho. Ou teremos a medicina reduzida a função paga a dinheiro. Será por isso que os hospitais privados não têm falta de profissionais, no contexto de medicina ultraliberalizada? 

O ministro deve saber que o tempo mudou: o negócio de saúde privado cresceu a olhos vistos com as receitas que o SNS para ele transfere para pagamento dos serviços que presta, pela abolição dos contratos do SNS com a ADSE e com as seguradoras e pela ambição do negócio.

O Sindicato Independente dos Médicos (SIM), após 16 meses de negociação sem acordo, vai “exigir resposta à possibilidade de os médicos poderem estar, pelo menos três meses em exclusivo nas urgências”, “uma medida concreta para um problema emergente”.

Cerca de metade dos turnos nas urgências é assegurada por prestadores de serviços e a outra pelo recurso a horas extraordinárias, que chega a ser de 90%. “Este é o nosso pecado original. Há muito que devíamos ter avançado para as equipas dedicadas”, afirma Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

Gasta-se nisto muito dinheiro, que poderia ser utilizado no reforço dos quadros (trabalhadores efetivos), nos salários e nas carreiras – o que significaria investimento no capital humano.

Xavier Barreto faz crítica generalizada à inércia dos governantes. Os ministros dizem que sim ao modelo, porém nada muda. A resistência às equipas fixas nos serviços de urgência não é justificável com desconhecimento ou inex­periência. O modelo foi estreado, em 2003, no Hospital de São João, e generalizado nas várias unidades que funcionaram em parceria público-privada (PPP), com Loures, entre os exemplos mais eficientes. “Conseguimos ter uma equipa de residência, de urgência interna, que foi um ganho brutal, que se mantém e que é impensável não ter, quando há 1200 doentes internados”, diz o diretor da Urgência do São João, Nelson Pereira, enfatizando: “A equipa dedicada chegou a ter 45 médicos. Restam menos de 15 e, desde 2009, temos de recorrer a internistas, que só faziam urgência interna.”

O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, e o diretor-executivo do SNS, Fernando Araújo, estiveram no São João e sabem as virtudes da exclusividade nas urgências. Em janeiro, Pizarro prometeu criar equipas dedicadas, pelo menos, nos maiores hospitais. E, recentemente, o gabinete de Fernando Araújo reforçou: “É preciso também, por exemplo, criar a especialidade de medicina de urgência pela Ordem dos Médicos.” Como já dissera Fernando Araújo, essa formação “é um eixo fundamental na estratégia delineada”. Nelson Pereira só lamenta o atraso.      

No final de 2022, um manifesto assinado por 56 antigos e atuais diretores de serviços de urgência foi a votos, mas a Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos (OM), na maioria constituída por especialistas em medicina geral e familiar e medicina interna, disse “não”.

A formação preparada pelo grupo de trabalho terá cinco anos e dará formação que permita prestar assistência qualificada em urgência, em atendimento permanente, em cuidados primários e na emergência pré-hospitalar. Adelina Pereira, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Urgência e Emergência, frisa que o bastonário da OM prometeu criar um novo grupo. Porém, avisa: “Fazer tudo de novo demora e estamos numa corrida contra o tempo.”

A OM confirma a intenção de retomar o projeto, sem pressa, mas Adelina Pereira salienta que a especia­lidade pode ser criada sem o aval da OM, ou seja, o governo pode decidir, sobretudo quando a OM pretende monopolizar as decisões em desfavor do interesse público (digo eu).

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Resta aguardar que o governo, nomeadamente o ministro das Finanças, acolha a pressão do Partido Socialista (PS), nomeadamente de Lacerda Sales, no sentido de que tem de assumir o “aumento da despesa estrutural no SNS”, sob pena de pouco valerem os milhares de milhões de euros que se deitam para cima do sistema. Vem aí o debate do Orçamento do Estado. Não se deve descurar a descida do défice e a redução da dívida, mas não se pode comprar a guerra do caos no SNS, bem como na escola. O dinheiro, por si, “é como manteiga em focinho de cão”. 

2023.10.07 – Louro de Carvalho

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