domingo, 22 de outubro de 2023

O cristão cumpre os deveres comunitários, mas entrega-se só a Deus

 

O ditame evangélico “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (“Apódote oûn tà Kaísaros Kaísari kaì tà toû Theoû tôi Theôi”) presta-se a interpretações que nem sempre estão em linha com a intenção evangélica.

Tendo em conta que a conjunção “kaí” entre o primeiro tramo da frase e o segundo é copulativa, e não disjuntiva, não é lícito aos cristãos voltar as costas às realidades terrenas (questões políticas, sociais, económicas, culturais, humanitárias, etc.) e muito menos desprezá-las ou hostilizá-las. Porém, não é lícito ao cristão deixar-se ofuscar por elas e esquecer Deus ou dar-Lhe os restos que as realidades temporais lhe deixem à disposição. A relação é de adição, mas com a primazia de Deus, de modo que o cumprimento dos deveres para com a sociedade humana, nomeadamente na vertente política e na vertente económica nos encaminhem para Deus e que esse cumprimento leve o Mundo a ser cada vez mais próximo de Deus, o que a realidade diacrónica e a realidade sincrónica do Mundo parecem rejeitar.  

Assim, a liturgia do 29.º domingo do Tempo Comum no Ano A convida-nos a refletir sobre o modo como equacionar o nexo entre as realidades de Deus e as realidades do Mundo. Deus é a nossa prioridade (primeiro, o Reino de Deus: Mt 6,33) e que a Ele devemos subordinar toda a nossa vida. Todavia, Deus convoca-nos ao compromisso efetivo com a construção do Mundo e da sociedade a que pertencemos, pelo pagamento de contribuições e impostos – para que todos tenham acesso à alimentação, ao vestuário, à saúde, à educação, à habitação, à segurança física, à proteção social, à cultura, e à intervenção na vida da comunidade – incluindo o exercício de uma profissão, a participação política e cidadã.   

O Evangelho (Mt 22,15-21) ensina que o homem, sem deixar de cumprir as suas obrigações para com a comunidade em que se insere, pertence a Deus, devendo entregar-lhe toda a sua existência. Tudo o mais deve ser relativizado, inclusive a submissão ao poder político.

O trecho em análise situa-nos em Jerusalém, onde se desenrolará o confronto final entre Jesus e o judaísmo: dum lado, os dirigentes judeus instalados nas suas certezas e preconceitos recusam o acolhimento do Reino; do outro, Jesus procura que os dirigentes do seu Povo tomem consciência de que, ao recusarem o Reino de Deus, recusam a oferta de salvação que Deus lhes faz.

Para tanto, Jesus conta-lhes três parábolas: numa, identifica-os com o filho que disse “sim” ao seu pai, mas não foi trabalhar no campo; na segunda, equipara-os aos vinhateiros que mataram o filho do dono da vinha; e, na terceira, assemelha-os aos convidados para o banquete que rejeitaram o convite. Irritados com a ousadia de Jesus e incomodados pelas suas comparações, os líderes judaicos procuram pretexto para o acusarem. É neste contexto que Mateus nos apresenta três controvérsias entre Jesus e os fariseus, sendo o objetivo destes surpreende-Lo em afirmações controversas e encontrar argumentos a apresentar em tribunal contra Ele.

A primeira questão que os fariseus, mancomunados com os partidários de Herodes Antipas (herodianos), levantam é delicada. Diz respeito à obrigação de pagar o tributo ao imperador de Roma. Com efeito, além dos impostos indiretos (portagens, direitos alfandegários, taxas várias), as províncias pagavam ao Império o tributo, isto é a quantia estipulada por Roma e que todos (exceto crianças e idosos) deviam pagar. Era um sinal infamante da sujeição a Roma. E os fariseus e os herodianos perguntam se Jesus acha lícito pactuar com tal sistema escravizante e injusto.

Os herodianos e os saduceus (a alta aristocracia sacerdotal) estavam de acordo com o tributo, pois aceitavam a sujeição a Roma. No entanto, os movimentos revolucionários estavam frontalmente contra, por considerarem o imperador usurpador do poder que só pertencia a Javé, pelo que interditavam os seus partidários do pagamento do tributo. Os fariseus, embora não aceitando o tributo, não propunham uma solução violenta para o problema. Fosse como fosse, a questão era uma armadilha. Se Jesus se pronunciasse a favor do pagamento do tributo, seria acusado de colaboracionismo e de defender a usurpação pelos Romanos do poder que pertencia a Javé; e, se se pronunciasse contra o pagamento do imposto, seria acusado de inimigo da ordem romana.

Confrontado com a questão, Jesus convidou os interlocutores, hipócritas, a mostrarem a moeda do tributo e a reconhecerem a efígie gravada na moeda (a efígie de César). Depois, concluiu: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Não se trata de uma repartição equitativa das obrigações do homem entre o poder político e o poder religioso, mas de reconhecer a autonomia das realidades terrestres, face às espirituais – um dado bem expresso na Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, Gaudium et Spes, do Vaticano II.

Jesus sugere que o homem não pode nem deve alhear-se das obrigações para com a comunidade em que se integra, devendo ser um cidadão exemplar e contribuir para o bem comum. Isso é “dar a César o que é de César”. No entanto, é ainda mais importante que o homem reconheça Deus como o único senhor. As moedas romanas têm a imagem de César: que sejam dadas a César. Porém, o homem não tem inscrita em si a imagem de César, mas a imagem de Deus (cf Gn 1,26-27: “Deus disse: ‘façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança’… Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus”). Portanto, o homem pertence a Deus, deve entregar-se a Deus e reconhecê-Lo como o seu único senhor. Entregue-se o homem a Deus!

Jesus vai muito além da questão que Lhe apresentaram. Não entrando num debate político, situa a questão a um nível mais profundo. Na sua abordagem, a questão deixa de ser discussão acerca do pagamento do imposto, para se tornar apelo a que o homem reconheça Deus como o seu senhor e realize a sua vocação essencial de entrega a Deus (foi criado por Deus, pertence a Deus e transporta consigo a imagem do seu criador e senhor). Jesus não se preocupa em afirmar que o homem deve repartir equitativamente as suas obrigações entre o poder político e o poder religioso, mas preocupa-se em clarificar que o homem só pertence a Deus e deve entregar toda a sua vida nas mãos de Deus. Tudo o mais é de relativizar, inclusive o poder político.

***

A primeira leitura (Is 45,1.4-6) sugere que Deus é o Senhor da História e que é Ele quem orienta a caminhada do Povo rumo à felicidade e à realização plena. Os homens que atuam e intervêm na História são instrumentos de Deus para concretizar o seu desígnio de salvação. O trecho em causa integra o “Livro da Consolação” do Deuteroisaías (cf Is 40-55). “Deuteroisaías” é o nome com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que profetizou na Babilónia, entre os exilados judeus, na fase final do exílio, entre 550 e 539 a.C.

Em 553 a.C., no reinado de Nabónides, da Babilónia, Ciro, rei dos Persas, qual nova estrela da política internacional, conquista Ecbátana, capital da Média e junta, no mesmo império, os Medos e os Persas. Em 547 a.C., marcha contra a Lídia, conquista Sardes e apodera-se da maior parte da Ásia Menor. Nos anos seguintes, uma série de vitórias dá-lhe o domínio do Irão oriental, do Afeganistão e do Turquestão, até à Índia. Fortalecido em ouro e em homens, dirige os seus exércitos contra a Babilónia e, em 539 a.C., entra vitorioso na capital babilónica onde, sem oposição, é recebido como libertador.

A atividade do Deuteroisaías desenvolve-se nos anos que precederam a entrada de Ciro na Babilónia. As notícias das vitórias de Ciro levam os exilados a sonhar com a proximidade da libertação do cativeiro. Porém, à alegria pela libertação iminente junta-se alguma perplexidade. O libertador não provém do Povo de Deus, mas é um rei estrangeiro. E instala-se a dúvida sobre a quem deve ser atribuída a libertação quando ela acontecer: a Javé, o Deus dos exilados judeus, ou a Marduk, o deus de Ciro. É um problema teológico que pode determinar a manutenção ou não da fé do Povo em Javé. O profeta esclarecerá a questão e explicará o papel de Javé.

O profeta não duvida: Javé é o verdadeiro condutor de todo o processo que vai culminar na libertação do Povo de Deus. Ciro, o rei que se apresta a derrubar o poderio babilónico, é “o ungido” de Javé. Com efeito, Ciro recebeu a unção com óleo e, através dela, recebeu o Espírito de Deus e foi investido numa missão. A unção com óleo capacita o ungido para a missão real, para a missão sacerdotal ou para a missão profética. Aqui trata-se da missão real. Deus escolheu Ciro, derramou sobre ele o seu Espírito e concedeu-lhe a insígnia do poder (“cingi-te”) para que ele, desempenhando a sua missão real, se tornasse o instrumento de Deus no Mundo.

Ciro foi designado por Deus para “subjugar as nações”, “fazer cair as armas das cinturas dos reis”, “abrir as portas à sua frente sem que nenhuma lhe seja fechada”. Estas expressões situam a missão confiada por Deus a Ciro no âmbito político-militar. Porém, o preponderante é que a missão se concretiza em benefício do Povo de Deus: se Deus chamou Ciro “pelo nome”, lhe deu “um título glorioso” e lhe confiou o poder sobre as nações foi “por causa de Jacob, meu servo, e de Israel, meu eleito…”. Ciro aparece, pois, como o instrumento pelo qual Deus atua no Mundo e na História, realizando o desígnio de salvação e de libertação do seu Povo. É, normalmente, através dos homens que Deus intervém no Mundo.

De resto, o profeta deixa claro que só Javé é o Senhor da História e que, fora d’Ele, não há Deus. Ciro ainda não conhece Javé, mas, sem o saber, realiza o projeto do Senhor. Portanto, é a Javé, não a Marduk, que os exilados devem agradecer. Embora servindo-se de rei estrangeiro, Deus é quem salva e liberta. É, pois, Nele que o Povo pode e deve confiar.

***

A segunda leitura (1Ts 1,1-5b) apresenta o exemplo de uma comunidade cristã que pôs Deus no centro do seu caminho e que, apesar das dificuldades, se comprometeu, corajosamente, com os valores de Deus. Eleita por Deus para ser sua testemunha no Mundo, vive ancorada na fé ativa, na caridade esforçada e na esperança inabalável. 

Tessalónica era, no século I, a cidade mais relevante da Macedónia. Como porto marítimo de referência e cidade de intenso comércio, era uma encruzilhada religiosa, em que os cultos locais coexistiam com todas as propostas religiosas vindas de todo o Mediterrâneo.

Durante a sua segunda viagem missionária, no inverno dos anos 49-50, Paulo chegou a Tessalónica com Silvano e Timóteo, depois de ter sido forçado a deixar a cidade de Filipos. O tempo de evangelização foi curto (uns três meses), mas foi o bastante para fazer nascer a comunidade cristã numerosa e entusiasta, constituída maioritariamente por pagãos convertidos. Todavia, a obra foi interrompida pela colónia judaica. Os judeus acusaram Paulo de agir contra os decretos do imperador e levaram alguns cristãos à presença dos magistrados da cidade. Paulo deixou a cidade à pressa, de noite, indo para Bereia e, depois, para Atenas.

Entretanto, Paulo tinha a consciência de que a formação doutrinal de Tessalónica deixava muito a desejar. A comunidade, fundada há pouco tempo e ainda insuficientemente catequizada, estava quase desarmada no contexto adverso de perseguição e de provação. Por isso, o apóstolo enviou Timóteo a Tessalónica, a fim de saber notícias e de encorajar os Tessalonicenses. Quando Timóteo voltou e apresentou o relatório, Paulo estava em Corinto. Confortado pelas informações dadas por Timóteo, decidiu escrever aos cristãos de Tessalónica, felicitando-os pela fidelidade ao Evangelho, esclareceu dúvidas doutrinais que os inquietavam e corrigiu alguns aspetos menos exemplares da vida da comunidade.

Trata-se do primeiro escrito do Novo Testamento. Apareceu na primavera-verão do ano 50 ou 51.

O trecho em apreço apresenta os emitentes da carta (“Paulo, Silvano e Timóteo”), o seu destinatário (a “Igreja dos Tessalonicenses, que está em Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo”) e um extrato da longa oração colocada no início da carta, em que Paulo dá graças a Deus pelo comportamento exemplar dos Tessalonicenses: apesar das provas que tiveram de suportar, permanecem fiéis ao Evangelho e ao ensino de Paulo (cf 1Ts 1,2-3,13).

O verbo principal do texto é “eukharistéô”(“dar graças”). Todos os outros verbos que aparecem são secundários. Assim, vê-se quais os sentimentos e qual a atitude fundamental de Paulo, Silvano e Timóteo, os emitentes da carta: estão agradecidos e reconhecidos a Deus. Com efeito, a ação de Deus nota-se no quotidiano da comunidade. Ante a proposta do Evangelho, os Tessalonicenses responderam generosamente, com fé ativa, caridade esforçada e esperança firme. A fé ativa é uma adesão ao Evangelho que não se manifesta só em palavras, mas também em atitudes concretas de conversão e de transformação; a caridade esforçada dá conta de um amor que não é teórico, mas efetivo, que se traduz em gestos de entrega, de partilha, de doação; e a esperança firme traduz a confiança inabalável em Deus e na vida nova que Ele reserva aos que O amam – confiança que nem a hostilidade do Mundo, nem as dificuldades da vida deitam por terra.

Tudo isto resulta do facto de os Tessalonicenses terem sido eleitos de Deus. No Antigo Testamento, a eleição é privilégio de Israel, escolhido por Deus de entre os outros povos, não em virtude dos seus méritos, mas em resultado da graça e do amor de Deus; agora, as comunidades cristãs de origem pagã são objeto deste privilégio, que tem a fonte no amor gratuito de Deus.

O Evangelho que Paulo, Silvano e Timóteo anunciaram não foi discurso feito de belas palavras, mas a Boa Nova de Deus, poderosa e transformadora, que encontrou eco no coração dos Tessalonicenses que, pela ação do Espírito Santo, deu frutos de fé, de amor e de esperança.

Por tudo isto é que Paulo, Silvano e Timóteo louvam o Senhor.

***

Temos, na palavra litúrgica desta dominga, Dia Mundial das Missões, um grande incentivo ao novo ardor missionário da Igreja que escuta Jesus, ama Jesus e sai a testemunhar Jesus. Igreja (e Igreja somos todos os batizados) que não seja missionária e que não esteja em saída não é Igreja ou, dizendo que o é, não presta para nada. É, pois, imperioso que os discípulos (todos o somos, segundo a condição de cada um) tenham a capacidade de brilhar como estrelas no Mundo, proclamando e testemunhando a palavra da vida.

2023.10.22 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário