domingo, 1 de outubro de 2023

Protestos pela habitação sobem de tom e com razão

 

O dia 30 de setembro fica marcado por manifestações de protesto pela habitação, supostamente pacíficas, mas que acabaram por ser cenário, em Lisboa, de alguns incidentes menos agradáveis. 

Efetivamente, movimentos à margem de partidos políticos juntaram-se, em 24 cidades do país, a exigir ao governo que assuma medidas que evitem subidas de preços das casas.

O objetivo das manifestações que ocorreram, de Norte a Sul, era contestar as políticas públicas de habitação e a inexistência de políticas de ambiente, mas com foco na habitação, que “é uma questão mais fácil de resolver do que a questão do ambiente”, como disse Nuno Ramos de Almeida, do movimento Vida Justa, um dos vários envolvidos.

As plataformas Casa para Viver e Their Time do Pay juntaram esforços, com objetivos diferentes mas complementares, para levarem às ruas de Lisboa a reivindicação por habitação justa. “As medidas que estão a ser tomadas são muito diminutas. Nós temos um baixíssimo índice de construção, do ponto de vista social. Temos menos de 2%, quando a Holanda tem 30%. Obviamente que a construção de habitação social não se resolve num espaço de cinco minutos, mas é preciso começar a construí-la”, defendeu Ramos de Almeida, vincando que “é preciso não deixar o mercado funcionar simplesmente pelo mercado”, pois, com o mercado a funcionar sozinho, os construtores fazem casas para os que têm dois milhões de euros para pagar. Não as constroem para a classe média, para a classe média baixa. E, pelo facto de o número de casas construídas ser escasso, “tem de haver uma intervenção reguladora do Estado em relação ao mercado”, ou nada mudará, como diz o ativista.

Marina Gonçalves, ministra da Habitação, confrontada com as várias manifestações, considerou que, face a “um problema real no nosso país”, é “importante a voz das pessoas ser ouvida”. E, sobre o pacote de medidas para o setor que o governo avançou em fevereiro e cujo diploma fundamental foi vetado pelo Presidente da República (PR), em agosto, afirmou a importância de “ficarmos todos vigilantes com a execução do ‘Mais Habitação’, [pois] construímos este diploma para ele ser eficaz no seu objetivo. Portanto, é importante fazermos este trabalho.

As alterações legislativas a nível do arrendamento, do alojamento local, dos imóveis devolutos e de impostos foram, há uma semana, novamente aprovadas na Assembleia da República (AR), confirmando o diploma vetado, só com o voto favorável da maioria parlamentar do Partido Socialista (PS). E, a governante, complementarmente, declarou que o governo ainda não decidiu se vai impor um travão ao aumento das rendas para 2024, mas que “não há nenhuma demora” nessa decisão, que só terá implicações em janeiro.

Para Ramos de Almeida, o programa ‘Mais Habitação’ “não resolve nada”, é “um programa mais feito para consumo mediático do que para alteração real das coisas”. Com efeito, do ponto de vista das casas devolutas, os decisores políticos nada fizeram; do ponto de vista do crédito à habitação, “empurraram com a barriga”; no atinente às rendas das casas, o governo não pôs “os travões em vigor”; e, neste momento, os preços estão a disparar. O efeito “foi exatamente o contrário”, argumentou, sustentando que, na génese do problema, estão os rendimentos baixos. “O que não pode suceder é os nossos salários estarem abaixo do preço das casas. Um aumento de salários é mais do que necessário. Nós não podemos viver numa situação em que os salários não pagam nem a comida nem a casa”, defendeu.

Por mim, julgo que o problema está nos salários baixos (o trabalho é muito mal pago); no aumento dos juros, mormente do respeitante ao crédito à habitação, graças à tirania do Banco Central Europeu (BCE); na manutenção da chamada Lei Cristas; no aumento oportunista do custo de vida; no descuido das autarquias (algumas só “reacordaram” para a habitação social, acessível a famílias de parcos recursos, e a custo controlado, acessível à classe média, baixa e média); e na especulação imobiliária, favorecida pelos enxames do alojamento local, pelos vistos gold, pela incursão turística e pela má vontade contra a alteração do status quo, em matéria do arrendamento e da valorização da casa como produto financeiro acessível apenas a quem tem dinheiro ou influência sobre os agentes económicos. 

Por conseguinte, muitos sentiram-se expulsos da cidade; e os estudantes e os professores ficaram sem acesso a alojamento (o preço de um simples quarto fica pela hora da morte).

Recordando que, na manifestação de abril, em Lisboa, a polícia interveio junto de alguns manifestantes, dizia, antes da manifestação de 30 de setembro: “Nós não conseguimos controlar numa multidão de dezenas de milhar de pessoas. Mas esperemos que não haja problemas, porque aquilo resultou de uma ação de um pequeno grupo que estava na manifestação, que pintou alguns estabelecimentos bancários e, em função disso, a polícia tentou fazer uma identificação.”

E, a reforçar o caráter pacífico do protesto, à voz dos manifestantes, juntaram-se músicos, como A Garota Não (nome artístico de Cátia Mazari Oliveira), Luís Varatojo e Luca Argel, porque o problema também passou por eles. “A música deve estar ao lado das pessoas e focar as questões que interessam”, realçou Varatojo, convicto de que a habitação é um problema transversal. “Eu, músico, também tenho uma casa e, obviamente, não escapo a esse problema”, disse. “Não é um problema que tenha aparecido neste momento”, assinalou Varatojo, que pesquisou “o que os governos têm dito sobre habitação”, utilizando, na música, um excerto de um discurso do primeiro-ministro, a prometer resolver o problema. “Entretanto, passaram cinco, seis anos, e as coisas continuam na mesma ou, se calhar, pior”, anotou.

***

As plataformas envolvidas nos protestos não incluíam os partidos. Porém, na manifestação de Lisboa, apareceram figuras notoriamente ligadas a partidos.

Assim, em declarações aos jornalistas, no protesto pelo direito à habitação e pela justiça climática, a coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), Mariana Mortágua, criticou a maioria parlamentar do PS, por rejeitar “todas as medidas que podem ter um efeito prático no direito à habitação” e por se “juntar à direita, que defende a especulação”: “Só que, em maioria absoluta, há uma única forma de pressionar o governo a aprovar leis e a resolver um problema: pessoas na rua é a mobilização popular e social que pressiona o governo. É por isso que a manifestação é tão importante.

A líder do BE sentiu-se perante “uma multidão que se junta para dizer o óbvio: que o direito à habitação, que a necessidade de ter uma casa, uma casa que um salário possa pagar é muito mais importante e vale muito mais do que a especulação, do que o negócio, do que o lucro fácil”. “E, até agora, a verdade é que esse negócio tem mandado nos destinos do país”, lamentou.

O secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, presente no protesto, criticou as medidas do governo para o setor da habitação, por “insuficientes, tardias, limitadas”. “Estamos perante um drama social, de uma grande dimensão, um problema que afeta milhares e milhares de pessoas, que todos os dias se vão privando das suas necessidades mais básicas, para fazerem tudo para aguentar aquilo que é o seu maior bem, que é o seu lar, a sua casa, a sua habitação”, alertou, dizendo que “há pessoas que já não aguentam mais as rendas, o brutal aumento das prestações”, e sustentou que este é um problema “que é preciso enfrentar de frente, com medidas concretas”.

O líder comunista criticou, a este respeito, os lucros da banca: “O escândalo que é, quando estamos todos apertados, apertadíssimos, a banca consegue acumular 11 milhões de euros de lucros por dia, nem vale a pena fazer mais comentários.” E, questionado sobre o facto de três deputados do Chega terem sido, no início da manifestação, escoltados pela PSP para fora do local, após protestos dos participantes, não quis alimentar o tema, dizendo apenas: “Se as pessoas vieram cá com um propósito, infelizmente conseguiram-no e está feito”.

Já Mariana Mortágua, interpelada obre este caso, considerou “natural” a reação dos manifestantes presentes, dado tratar-se de “um partido de extrema-direita que defende a especulação imobiliária e o negócio imobiliário”.

Na verdade, três deputados do Chega introduziram-se na manifestação, pelo que foram, notoriamente, contestados; e a polícia, para tranquilidade geral e, para segurança dos mesmos, escoltou-os para fora do contexto da manifestação. Com efeito, do meu ponto de vista, os deputados têm ao dispor a arena da AR, devendo evitar a rua. Já as vozes partidárias que não tenham assento direto na AR poderão integrar as manifestações de rua, devendo ser coerentes.  

Apesar do seu caráter pacífico, a manifestação em Lisboa passou por um incidente: três manifestantes de cara tapada partiram a montra de uma imobiliária na Avenida Almirante Reis.

Jornalistas, presentes no local, presenciaram o momento: os três saíram da multidão e, pegando em martelos, começaram a destruir a montra da empresa. Já antes, tinham sido arremessados contra a imobiliária ovos com tinta vermelha.

***

O Presidente da República (PR) considerou que os protestos pela habitação acontecem “por uma boa causa”, são “importantes” e são sinal de que a democracia está viva”. “É bom querer-se encarar o problema da habitação e tentar acelerar processos para a sua resolução. Gente de todas as idades, é bom. Gente com experiências muito diferentes, é bom”, disse aos jornalistas.

O chefe de Estado deixou um recado ao governo, ao sublinhar que o Executivo tem, agora, duas leis para combater a crise da habitação, uma das quais tinha vetado, por a considerar “demasiado curta”, mas que já promulgou, após ter tido a aprovação da AR. “Eu só espero que corra bem, porque falta pouco tempo para o fim da legislatura e nós sabemos como pôr de pé uma política de habitação e executá-la em várias frentes demora tempo. Mete autarquias, mete a preparação dos projetos, mete contratação administrativa, mete uma série de realidades”, disse, adiantando: “Se correr bem, é uma boa notícia para todos. Nós queremos é que corra bem.”

Podia ter usado uns segmentos linguísticos sem a reiteração do verbo “meter”.

As manifestações pela habitação do dia 30, “pelo menos são uma chamada de atenção”, considerou Marcelo. E insistiu: “Se o governo conseguir fazer, a partir desta lei [Mais Habitação] que ela não seja tão curta assim e haja satisfação do querer de milhares de portugueses, é bom e é uma forma democrática de se resolver os problemas.” “Eu promulguei, porque a Assembleia confirmou e eu tinha oito dias para promulgar, portanto, já promulguei, antes mesmo dos oito dias, a lei chamada Mais Habitação”, revelou o chefe de Estado à entrada para o XXVI Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), que decorreu no Seixal.

***

É verdade que a manifestação é um direito em democracia. Porém, o PR bem poderia ter-se abstido de usar da palavra, porque o ruído que também ele produziu, em consonância com as forças opositoras de feição neoliberal, priorizando a iniciativa e a propriedade privadas (e usando palavras e expressões como “melão” e “lei-cartaz”), nada contribuiu para a melhoria das leis, antes ajudou ao seu bloqueio pelos agentes imobiliários e pelos proprietários e senhorios.

Já o indicado nesta peça escrita indicia um apoio indevido do órgão de soberania Presidente da República à contestação ao governo e à AR. E, embora eu não tenha visto escrito o incentivo direto à participação na manifestação, dizer que é bom, subentende-o. No entanto, eu ouvi uma declaração num canal de televisão em que o PR disse que, se as pessoas concordam, que participem.

Nem o PR se pode esconder numa promulgação arrancada à força!

A habitação é um problema e a solução encontrada é insuficiente. O PR não o diz, mas a solução impõe, antes de mais, uma intervenção do Estado nos preços das casas, em termos de compra e de arrendamento. Obviamente, é preciso contruir mais e reaproveitar mais, mas será sempre insuficiente, se não houver controlo de preços. Espero que não chamem comunista!

2023.10.01 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário