domingo, 29 de outubro de 2023

Trabalhadores na administração de grandes empresas

 

O artigo 89.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), no texto atual, estabelece, no âmbito da “participação dos trabalhadores na gestão”, que “nas unidades de produção do setor público, é assegurada uma participação efetiva dos trabalhadores na respetiva gestão”.

Parece que o governo quer estender essa doutrina a todas as grandes empresas. Com efeito, na sessão de encerramento da Conferência Comemorativa do 45.º Aniversário da União Geral de Trabalhadores (UGT), em Lisboa, Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, preconizou a ideia da criação de “mecanismos de inclusão” dos representantes dos trabalhadores na administração das grandes empresas. “Temos sempre novos reptos pela frente e, neste momento em que celebramos os 50 anos do 25 de Abril, precisamos de dar mais passos nesta democratização nos locais de trabalho”, disse a governante, defendendo “a capacidade de encontrar mecanismos de inclusão dos representantes dos trabalhadores na administração das grandes empresas”.

Ana Mendes Godinho lembrou que, para que isto “aconteça”, deve garantir-se que “há diálogo social”. “E o instrumento deve ser [feito] através dos sindicatos, da negociação e dos IRCT – Instrumento de Regulamentação Coletiva de Trabalho”, sublinhou.

Na sua intervenção, a ministra referiu que o número de IRCT aumentou 54%, em 2023, devido “às medidas criadas pelo governo”, no âmbito do Acordo de Rendimentos para “discriminar positivamente” as empresas que têm “diálogo social ativo”. “Diálogo social ativo é democracia nos locais de trabalho. É isso que cada vez mais precisamos de incentivar, porque esse é também o caminho para o aumento da competitividade das empresas”, adiantou, para clarificar: “Trabalhadores com mais direitos são melhores trabalhadores. São trabalhadores que participam e aumentam a competitividade e o crescimento das empresas.”

Por sua vez, o secretário-geral da UGT, Mário Mourão, afirmou que a UGT é “uma central sindical plural”, defensora dum “sindicalismo reformista”, de “participação”, de “proposição” e de defensora dum modelo de desenvolvimento económico e social assente no “diálogo social e na negociação”. Além disso, frisou que a concertação social “é a base para a coesão”, para um “clima de paz social” e para uma “mais efetiva” implementação de políticas.

Na conferência, foi apresentado o livro que assinala o 45.º aniversário da UGT, “A Concertação Social em Portugal e o Papel da UGT”, de Cristina Rodrigues, investigadora e coordenadora da Comissão de Recursos do Subsídio de Desemprego e de João Freire, investigador, antigo oficial da Armada e agora membro efetivo da Academia da Marinha. Os comentários ao livro estiveram a cargo Luis Filipe Pereira, ex-presidente do CES, João Proença, ex-secretário-geral da UGT.

Na sessão de abertura participaram Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Francisco Assis, presidente do Conselho Económico e Social (CES) e Lucinda Dâmaso, presidente da UGT.

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A esta ideia da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social o constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, reagiu, saudando a defesa governamental da “participação dos trabalhadores no governo das grandes empresas”, que diz vir “defendendo, há muito, “como devendo fazer parte do património doutrinário obrigatório de um partido social-democrata […], como instrumento de democracia económica, de paz social e de eficiência empresarial”. Lembra que a “cogestão” empresarial tinha sido defendida pelo Partido Socialista (PS) nos idos da revolução abrilina e da Assembleia Constituinte, mas que tal compromisso se foi “desvanecendo progressivamente nos programas e na prática política do PS como partido de governo”. Por outro lado, considera que, embora, “retomando a ideia, a ministra remete a sua instituição para a negociação coletiva” e para o “diálogo social”, exclui “a intervenção legislativa” (prevista no projeto de revisão constitucional do PS), o que não leva “a lado nenhum”, mercê da oposição dos acionistas e da “tradição confrontacional da cultura sindical em Portugal”. 

Na verdade, apesar de a CRP estabelecer “a participação dos trabalhadores na gestão das empresas públicas, em geral” como foi referido, isso não se verifica “em quase nenhuma”, pois “a lei não a prevê” (segundo Vital Moreira, inconstitucionalidade por omissão) e os trabalhadores a não exigem. Não obstante, o constitucionalista admite que esta “abertura governamental” venha a ocasionar “o debate político e sindical” que o tema postula.

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É inteiramente verdade que Vital Moreira vem defendendo esta participação dos trabalhadores na gestão das empresas. Com efeito, a 26 de junho de 2014, depois de mencionar a publicação, no “Diário Económico” do dia anterior, das declarações de um administrador e de um representante dos trabalhadores na Volkswagen, ambos pertencentes ao “conselho de supervisão” da empresa-mãe, “no contexto do modelo de cogestão alemão (Mitbestimmung), apontava a cogestão como “um elemento essencial da noção alemã de economia social de mercado, por conferir “aos trabalhadores um direito de representação no ‘parlamento’ das empresas, conjuntamente com os representantes dos acionistas, tornando os trabalhadores em codecisores e corresponsáveis das empresas em que trabalham”. Assim, a “cogestão é um dos principais fatores da relativa ‘paz social’ na Alemanha”, pois contribui para a redução dos conflitos de trabalho e das greves, “para vantagem de ambas as partes na relação laboral”.

Também no mesmo dia 26 de junho de 2014, sublinhava que, “em Portugal nunca vingou a cultura da cogestão empresarial, tendo prevalecido uma cultura de luta de classes”, na empresa. Além disso, revelava que, em 1975, na Assembleia Constituinte (AC), o Partido Popular Democrático (PPD), agora, Partido Social Democrata (PSD), defendia a cogestão. Porém, tal ideia foi derrotada por uma aliança tática entre o Partido Comunista Português (PCP) e o PS (que tinha, na AC, “uma considerável influência trotskista”), vingando a noção de “controlo de gestão”, que ainda consta da CRP (artigo 54.º), mas que foi sendo “esvaziada de sentido prático, à medida que as comissões de trabalhadores foram desaparecendo”.

A Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e a UGT sempre entenderam a cogestão como “colaboracionismo de classe”. E, embora a CRP estabeleça “a participação dos trabalhadores na gestão das empresas do setor público, isso nunca foi levado à prática” – “situação flagrante de inconstitucionalidade por omissão –, o que “nem os sindicatos nem os partidos reivindicaram”.

A 3 de abril de 2017, o constitucionalista denunciava a “falta de cidadania laboral nas empresas”. Comentando o estudo, citado pelo Expresso, de dois professores, “Greves, representação dos funcionários no local de trabalho, sindicalismo e confiança: evidências de dados internacionais”, apontava “a passividade organizativa dos trabalhadores portugueses nas suas empresas”. Com efeito, Portugal surgia no último lugar em percentagem de empresas onde há comissões de trabalhadores, delegados sindicais ou ambos, quando tem, pelos vistos, “a Constituição e o código de trabalho mais avançados, em matéria de reconhecimento de comissões de trabalhadores e dos seus direitos (incluindo direito a instalações e crédito de horas)”.

Para o constitucionalista, essa falta de “cidadania laboral” constitui “enorme debilidade”, pois, “organização é poder”, ao passo que “falta de organização significa ausência de capacidade de intervenção”. E a falta de representação dos trabalhadores nas empresas justifica a participação dos trabalhadores na gestão empresarial (falta de cogestão), apesar de ser “constitucionalmente obrigatória nas empresas públicas”.

Na AC, em 1975, na batalha ideológica entre os partidários da cogestão (PPD) e os do “controlo de gestão” (PCP e PS), venceu este, exceto para as empresas públicas. Porém, não há cogestão nem controlo de gestão. O que existe, regra geral, é “a absoluta autocracia patronal nas empresas, sem nenhum poder dos trabalhadores, que tem como contrapartida “um sindicalismo confrontacional”, que Vital Moreira diz ser “dominado pela CGTP, de inspiração leninista, que se reproduz a si mesmo, baseado no princípio do centralismo democrático”.

A 6 de maio de 2022, o mesmo académico constitucionalista assinalava que, em França, a social-democracia representada pelo Partido Socialista “se viu forçada” à “aliança política sob a égide do líder da esquerda radical, [de] Mélenchon, para as eleições parlamentares”, lançando o manifesto pelo “renascimento da social-democracia francesa”, que inclui a cogestão empresarial, com a representação dos trabalhadores no “conselho representativo” das empresas de maior dimensão, junto com os acionistas – modelo de tradição na Alemanha e noutros países nórdicos, para superar a lógica confrontacional nas “relações industriais”, figurando como “um elemento essencial” da noção de “economia social de mercado”. 

Vital Moreira diz ter defendido, desde há anos, esse modelo para Portugal, “junto com a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas resultantes de aumentos da produtividade”, estranhando porque é que o PS o descarta, não o fazendo aplicar, desde logo nas empresas públicas, “onde é constitucionalmente obrigatório”. Apesar do seu excessivo empenho na concertação social, ao nível macro das políticas sociais, “o PS mantém-se fiel ao modelo tradicional das relações entre o capital e o trabalho” nas empresas, que se mantêm como “coutadas dos acionistas de referência”, longe das preocupações sobre o “stakeholders capitalism” (capitalismo das parte interessadas), que não envolve apenas os trabalhadores.

E, a 5 de fevereiro, o professor Vital Moreira esteve presente, em Coimbra, no lançamento do livro “Deveres da Corporate Governance – Representação das Partes Interessadas no Conselho de Administração”, de Rui Moreira e Carvalho.  Considera-o “uma abordagem acessível” da representação dos vários stakeholders, e não só dos stockholders (acionistas), no conselho de administração das grandes sociedades, tendo a ver, sobretudo, com a cogestão, ou seja, “com a participação de representantes dos trabalhadores da empresa, como sucede, há muitas décadas, na Alemanha, solução que “se estendeu a outros países europeus, a começar nos países escandinavos”. Contudo, em Portugal, apesar de a CRP “impor a participação dos trabalhadores no governo das empresas públicas”, o tema não tem estado na agenda política nem na sindical.

O constitucionalista, que vem defendendo “a participação dos trabalhadores no governo das sociedades acima de determinada dimensão”, considera que “essa solução faz todo o sentido”, em termos de “economia social de mercado”, onde as empresas não podem limitar-se a “criar valor” para os acionistas. Porém, tem verificado que o PS, “partido que deveria lutar por essa reforma” não tem agarrado “essa bandeira da social-democracia europeia” – uma das falhas do programa eleitoral para 2022 –, nem a tem incluído nos temas de debate político-doutrinário promovidos pelo partido ou a submeter à consideração do CES.

Entretanto, verificava que o projeto de revisão constitucional do PSpropõe o alargamento do direito à representação dos trabalhadores nos órgãos sociais das empresas privadas, nos termos a definir por lei”, mas não explica “esta pequena revolução político-doutrinária”. E ficava dúvida se tal inovação merecerá o investimento político necessário para concitar o apoio do PSD. Veremos o que dará a revisão constitucional, de que não se rem falado nos últimos tempos.

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Por mim, considero a necessidade e a validade da cogestão e da distribuição de parte dos lucros pelos trabalhadores, mas duvido que sejam acolhidas pela generalidade do patronato, a menos que a lei e a fiscalização as imponham. Além disso, há o risco de os representantes dos trabalhadores funcionarem como homens sanduíche, acomodando-se ao patrão, em vez de zelarem pelos companheiros, sendo imperativo o rigor na eleição e a aposta no escrutínio permanente. Por outro lado, a dialética entre capital e trabalho produz sempre o seu resultado.

2023.10.29 – Louro de Carvalho

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