segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Não é questionável se Deus convida, mas se nós aceitamos o convite

 

A liturgia do 28.º domingo do Tempo Comum no Ano A utiliza a alegoria do banquete para descrever o espaço e o tempo da alegria sem fim, que Deus oferece a todos os seus filhos. Não está em causa se Deus convida todos ou não para o banquete, mas se nós aceitamos tal convite e em que condições pessoais e comunitárias o satisfazemos.

Na 1.ª leitura (Is 25,6-10a), o profeta Isaías anuncia o banquete que Deus, na sua própria casa, no alto de um monte, oferecerá a todos os Povos. É a afirmação inequívoca da universalidade da salvação querida e oferecida por Deus. Assim, acolher o convite divino e participar nele é aceitar viver em comunhão com Deus e com os todos irmãos – independentemente da cor, da etnia, do sexo e da orientação sexual, do ideário, do país ou do continente a que pertençam e da cultura em que estejam imersos – comunhão de que resultará, para o homem, a vida em abundância.

É difícil situar, no tempo histórico, o fragmento em apreço. Para uns, o oráculo pertence à reta final da vida do profeta (fins do século VIII a.C.) quando, desiludido da política e dos reis de Judá, começou a sonhar com o tempo novo de felicidade sem fim para o Povo de Deus; para outros, não pertence ao primeiro Isaías (autor dos capítulos 1-39 do Livro de Isaías), apesar de estar integrado no seu livro, mas será de época posterior ao profeta, pois a superação da morte, das lágrimas e da vergonha, pode sugerir que a composição do texto se situa em tempo posterior ao Exílio na Babilónia, quando Judá reconquistou a liberdade.

Seja como for, o trecho gravita em torno da alegoria do banquete, que é, no ambiente sociocultural bíblico, o momento da partilha, da comunhão, da constituição da comunidade de mesa, da criação de laços familiares entre os convivas. Além disso, o banquete tem, muitas vezes, dimensão religiosa, potenciando e celebrando a comunhão do crente com Deus, o estabelecimento de laços familiares entre Deus e os fiéis. Assim, na visão dos catequistas que redigiram as tradições sobre a Aliança do Sinai, o compromisso entre Javé e Israel tinha de ser selado com uma refeição entre Deus e os representantes do Povo. São, neste contexto, significativos os sacrifícios de comunhão (“zebâh shelamim”) celebrados no Templo de Jerusalém, em que o crente trazia ao Templo um animal destinado a Deus. Imolado o animal, era queimada a sua gordura sobre o altar e a carne era repartida pelo oferente e pelos sacerdotes. O oferente e a família comiam o seu quinhão no espaço sagrado do santuário. Deste modo, sentavam-se à mesa com Deus, celebravam a sua pertença ao círculo familiar de Deus e renovavam com Deus a harmonia e a comunhão.

Neste ambiente em que se enquadra o trecho em referência, o profeta anuncia que Deus, num futuro, oferecerá um banquete, para o qual vai convidar “todos os povos”. É uma iniciativa de Deus para estabelecer laços de família com a toda a Humanidade. O cenário do banquete, “este monte” é o monte do Templo, em Jerusalém, a “casa de Javé”, o lugar onde Deus mora no meio do seu Povo, onde Israel presta culto a Javé e celebra os sacrifícios de comunhão. Aceitar este convite de Deus significa participar no culto a Javé, ser acolhido na sua casa, entrar na família de Deus e sentar-se com Ele à mesa. No banquete, serão servidos “manjares suculentos”, “comida de boa gordura”, “vinhos deliciosos” e “puríssimos” – tudo expressões conotativas da abundância e da qualidade de vida, com que Deus cumula os convivas.

Para os que aceitam o convite, iniciar-se-á uma nova era, de comunhão com Deus e de vida sem fim. O profeta sugere tal comunhão, com a indicação de que será retirado “o véu que cobria todos os povos, o pano que envolvia todas as nações” e que impedia o contacto total com o Mundo de Deus. Outrossim o profeta sugere o início da nova era de paz e de felicidade, proclamando que Deus destruirá a morte para sempre, enxugará “as lágrimas de todas as faces” e eliminará “o opróbrio que pesa sobre o seu Povo”.

O banquete termina com um cântico de ação de graças que evoca uma fórmula usada na aclamação do novo rei, significando que se iniciará, com o banquete que o Messias oferece, o reinado de Deus sobre toda a terra.

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O Evangelho (Mt 22,1-14), dando continuidade ao texto de Isaías, insta a que adiramos ao convite de Deus para o banquete, vincando que os interesses e as conquistas mundanas não podem desviar-nos nem distrair-nos dos desafios de Deus. A opção que fizemos no batismo é um compromisso sério, que deve ser vivido de forma coerente.

Os dirigentes religiosos judeus aumentam a pressão sobre Jesus. Instalados nas suas certezas e seguranças, decidiram que a doutrina de Jesus não vem de Deus, pelo que a rejeitam em absoluto.

O trecho em apreço integra um conjunto de três parábolas (Mt 21,28-32. 33-43; 22,1-14), que ilustram a recusa do desígnio de Deus por Israel. Com elas, Jesus convida os opositores a reconhecerem que se aprisionaram na autossuficiência, no orgulho, no preconceito, que não lhes deixa abrir o coração e a vida ao dom de Deus. O trecho em causa é a última das três parábolas.

Mateus uniu duas parábolas diferentes: a dos convidados para o banquete (comum a Mateus e a Lucas, embora as duas versões tenham consideráveis diferenças – Mt 22,1-10; Lc 14,15-24) e a do convidado que estava sem o traje adequado (exclusiva de Mateus: Mt 22,11-14). Originariamente, as duas teriam ensinamentos diferentes, mas o tema do banquete juntou-as.

Além do que já foi dito sobre o alcance o banquete, o banquete era também a cerimónia pela qual se confirmava o status das pessoas e a sua posição na escala social. Quem organizava um banquete – por exemplo, por ocasião do casamento de um filho – fazia cuidada seleção dos convidados: a presença de gente desclassificada faria descer, aos olhos da comunidade, o status da família; e a presença de pessoas importantes vincava a importância e a honra da família.

A primeira das duas parábolas do texto presente é a parábola dos convidados para o banquete (vv 1-10). Um rei que preparou o banquete nupcial do filho, convidou várias pessoas, mas os convidados recusaram-se a participar no banquete, apresentando as desculpas mais disparatadas. Mateus refere (o que não aparece no relato de Lucas) que teriam assassinado os emissários do rei. É um facto gravíssimo, uma ofensa inqualificável recusar um convite, mas, como se isso não fosse suficiente, os convidados indignos manifestaram um desprezo inconcebível pelo rei, matando os seus servos. Por isso, o rei enviou as suas tropas a castigar os assassinos (o que não consta no relato lucano). Além da evocação do assassinato dos profetas incómodos, será uma interpretação da destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos de Tito, no ano 70, podendo significar que a versão mateana é posterior a esse ano.

O rei, apesar de tudo, manteve a festa e mandou que trouxessem para o banquete todos quantos encontrassem nas “encruzilhadas dos caminhos”. E esses desclassificados, que nunca se tinham sentado à mesa de uma importante personalidade (com tudo o que isso significava de comunhão e de estabelecimento de laços de família e de amizade), celebraram a festa à mesa do rei.

O sentido da parábola é: Deus é o rei que convidou Israel para o banquete do encontro, da comunhão, dos tempos messiânicos (as bodas do filho). Os sacerdotes, os escribas, os doutores da Lei recusaram o convite e continuaram presos aos seus preconceitos e aos seus sistemas de autossalvação. E Deus convidou para o banquete messiânico os pecadores e os desclassificados que, na ótica da teologia vigente, estavam fora da comunhão com Deus e do Reino.

A parábola explicita o cenário em que Jesus se move. Ele aparece, com frequência, a participar em banquetes, ao lado de gente duvidosa e desclassificada, ao ponto de os inimigos o acusarem de “comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e de pecadores”.

Jesus participa nesses banquetes, com o risco de adquirir má fama, porque, no Antigo Testamento, os tempos messiânicos são descritos com a alegoria do banquete que Deus prepara para todos os povos. E Jesus tem consciência de que esses tempos chegaram com Ele. Por isso, o cenário do banquete serve-Lhe para expressar a realidade do Reino: a mesa da festa, do amor, da comunhão com Deus, para a qual todos, sem exceção, são convidados. Para Ele, sentar-se à mesa com os pecadores é a forma privilegiada de lhes dizer que Deus os acolhe com amor e que deseja estabelecer com eles relações de comunhão e de familiaridade, sem excluir ninguém.

Não obstante, os líderes de Israel sempre reprovaram a Jesus esse contacto com os pecadores e com os desclassificados. Para eles, as prostitutas e os publicanos, por exemplo, estavam arredados, definitivamente, da comunidade da salvação. Sentá-los à mesa do banquete do Reino é inédito e os líderes de Israel acham-no totalmente inapropriado.

É provável que, originariamente, a parábola tivesse servido a Jesus para responder aos que o acusavam de ter convidado para o banquete todo o tipo de desclassificados e de pecadores, deixando claro que, na lógica de Deus, a questão não é se Deus convida ou não, se esta ou aquela pessoa tem o direito de se sentar à mesa do Reino, mas se se aceita ou não se aceita o convite de Deus. Na verdade, os líderes de Israel recusaram o desafio de Deus, enquanto os pecadores e desclassificados o acolheram de braços abertos. Mais tarde, a comunidade cristã fará uma releitura um pouco diferente da parábola, utilizando-a para explicar porque é que os pagãos acolheram melhor do que os judeus a Boa Nova do Reino.

A segunda parábola é a parábola do convidado que se apresentou na festa sem o traje nupcial (vv 11-14). E o rei que preparou o banquete mandou lançá-lo fora da sala onde se realizava a festa.

A parábola, que se mantém no quadro da alegoria do banquete, é uma advertência aos que aceitaram o convite de Deus para a festa do Reino, aderiram a Jesus e receberam o batismo. Mateus escreve nos anos 80, quando os cristãos, esquecido o entusiasmo inicial, viviam instalados numa fé descafeinada. Pensavam que, tendo feito a opção definitiva, asseguraram a salvação. Porém, Mateus adverte que não basta entrar na sala do banquete, mas que é preciso revestir-se de um estilo de vida que ponha em prática o ensinamento de Jesus, testemunhando da graça de Deus, pela humildade, pela gratidão e pela disponibilidade para amar e servir os irmãos.  

Quem aderiu ao banquete do Reino pelo batismo, mas recusou envergar o traje do amor, da misericórdia, do dom da vida, da partilha, do serviço, e continua revestido de egoísmo, de arrogância, de injustiça, não pode participar na festa do encontro e da comunhão com Deus. Deus chamou todos os homens e mulheres para participarem no banquete, mas quer que aqueles e aquelas que responderem ao convite, se convertam, mudem completamente a sua vida.

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Na 2.ª leitura (Fl 4,12-14.19-20), Paulo apresenta-nos um exemplo de comunidade que aceitou o convite do Senhor e vive na dinâmica do Reino: a comunidade cristã de Filipos, uma comunidade generosa e solidária, verdadeiramente empenhada na vivência do amor e em testemunhar o Evangelho diante de todos os homens.

Mais uma vez, a 2.ª leitura nos oferece um excerto da carta de Paulo aos Filipenses, desta vez tirado do seu capítulo final. Em tom emocionado, o apóstolo agradece pelos dons recebidos e pela solidariedade que os cristãos de Filipos lhe manifestaram.

Satisfeito com a ajuda recebida da comunidade cristã de Filipos, a alegria de Paulo resulta, não da resolução das suas próprias necessidades materiais, mas do significado do gesto dos Filipenses. O donativo enviado é sinal da amizade dos cristãos da comunidade para com Paulo e da solidariedade dos Filipenses com o anúncio do Evangelho. Assim, os Filipenses manifestaram o apoio ao ministério de Paulo e ao trabalho que o apóstolo desenvolve no sentido de fazer chegar Jesus a todos os homens. E isso alegra o coração de Paulo. Por si, o apóstolo está acostumado às privações e à frugalidade. A sua vida e a sua missão não dependem de comodidades materiais, pois sabe “viver na pobreza” e sabe “viver na abundância”. Essa liberdade interior, face aos bens, brota de Cristo, que dá forças ao apóstolo para superar as privações e o anima nas dificuldades, que lhe dá a coragem para enfrentar as necessidades que a vida apostólica impõe. E Paulo está certo de que a solidariedade e a solicitude dos membros da comunidade beneficiarão, primeiro, os Filipenses, pois Deus lhes pagará, generosamente, o seu gesto.

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Enfim “Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, ilumine os olhos do nosso coração, para sabermos a esperança a que fomos chamados” (Ef 1,17-18).

2023.10.15 – Louro de Carvalho

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