segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A prioridade do cristão é o amor, pois onde há amor está Deus

 

A liturgia do 30.º domingo do Tempo Comum no Ano A sustenta, clara e inquestionavelmente, que o amor está no centro da experiência cristã e é a mola propulsora da vida de união a Cristo e da comunhão fraterna. Como dizia, há tempos, o cardeal Américo Aguiar, se a pedagogia de Jesus tivesse usado a informática e a Internet, a password que identificaria cada um dos crentes para a cibernavegação seria “amor”. Na verdade, a cada passo cantámos “Ubi caritas et amor, Deus ibi est” (onde há caridade e amor, aí está Deus)  

 O que Deus pede e exige a cada crente é que deixe que o coração se submerja no amor.

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A primeira leitura (Ex 22,20-26) certifica-nos de que Deus não quer a perpetuação de situações de injustiça, de arbitrariedade, de opressão, de desrespeito pelos direitos e pela dignidade dos pobres e dos débeis. O trecho veterotestamentário em referência fala do desconforto dos estrangeiros, dos órfãos, das viúvas e dos pobres, vítimas da especulação dos usurários, vincando que toda a injustiça ou arbitrariedade praticada contra o irmão mais pobre ou mais débil é crime grave contra Deus e que, afastando-nos da comunhão com Deus, nos põe fora da órbita da Aliança.

O Decálogo ou dez mandamentos (cf Ex 20,2-17) constitui o coração da Aliança e apresenta os valores fundamentais que devem marcar o comportamento do Povo de Deus em relação a Javé e à vida comunitária. Porém, as leis do Decálogo, que eram gerais, não contemplavam todos os casos e situações. Por isso, a complexidade da vida diária exigiu o esclarecimento e a concretização das leis do Decálogo. Assim, foram-se gizando normas concretas para regular o devir quotidiano do Povo de Deus, sendo que o Livro do Êxodo contém uma ampla recompilação dessas leis que explicitam o Decálogo.

Logo a seguir ao Decálogo, os catequistas de Israel colocaram um bloco heterodoxo de leis, conhecido como o “Código da Aliança” (cf Ex 20,22-23,19), isto é, um conjunto de leis que os autores do Livro do Êxodo apresentam como ditadas por Deus a Moisés, no Sinai, quando, na realidade, são leis de proveniência diversa, cuja antiguidade é discutível, mas que a maioria dos estudiosos situa no tempo dos “juízes” (século XII a.C.).

O “Código da Aliança” regula vários aspetos da vida do Povo de Deus, desde o culto até às relações sociais. São prescrições, soluções, disposições justas, sãs e sólidas, que explicitam os princípios, solucionam as dificuldades e ordenam a conduta dos homens nas situações comuns e variáveis da condição humana. Nele sobressaem a viva consciência de que Israel é chamado à comunhão com Deus e o forte sentido social. Revela um Povo preocupado em concretizar os compromissos da Aliança na vida de cada dia. E sugere que a fé de Israel não é realidade abstrata ou fantasmagórica, mas realidade viva, que regula e anima cada setor da vida prática.

O trecho em apreço, um excerto do “Código da Aliança”, refere algumas exigências sociais que resultam da Aliança; e apresenta indicações sobre como lidar com três realidades de carência, de necessidade, de debilidade: a do estrangeiro, a do órfão e da viúva, e a do pobre que se obrigou a pedir dinheiro emprestado. São pessoas em situação jurídica e socioeconómica difícil, a maior parte das vezes, longe de serem acolhidas e compreendidas.

O estrangeiro é, habitualmente, um desenraizado, obrigado a deixar a sua terra e o seu quadro de relações familiares, atirado para um adverso ambiente cultural e social, onde as leis locais nem sempre protegem os seus direitos e a sua dignidade. Ao invés, é votado ao desprezo e explorado. A debilidade é aproveitada, muitas vezes, por pessoas que os exploram, escravizam e que praticam impunemente contra eles as maiores injustiças.  

O órfão e a viúva integram a categoria das vítimas tradicionais dos abusos dos poderosos. Desprotegidos, ignorados pelos dirigentes e pelos juízes, sem defesa ante as arbitrariedades dos fortes, vítimas de toda a espécie de injustiças, têm em Deus o seu único defensor.

O pobre que pede dinheiro é, quase sempre, o camponês carregado de impostos, arruinado por anos de más colheitas, que tem de pedir dinheiro para pagar as dívidas e para sustentar a família. A sua extrema necessidade é explorada pelos usurários e pelos especuladores, que o obrigam a deixar como penhor os bens mais básicos. Sufocado por juros altíssimos, acaba por perder tudo e ficar na miséria mais absoluta, condenado a morrer de frio ou de fome.

A religiosa sensibilidade israelita dita que Deus não tolera a perpetuação destas situações de injustiça e de opressão. Se Israel quer viver em comunhão com Deus e aproximar-se do Deus santo, tem de banir as injustiças e as arbitrariedades sobre os mais débeis – designadamente estrangeiros, órfãos, viúvas e pobres. Essa é uma das condições para a vigência da Aliança.

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O Evangelho (Mt 22,34-40) preconiza que toda a revelação de Deus se sintetiza no amor – amor a Deus e amor aos irmãos – e que estes dois mandamentos são inseparáveis, de modo que, se alguém ama verdadeiramente a Deus, ama necessariamente o próximo; e, se alguém não ama o próximo, não ama a Deus e, se diz que O ama, é mentiroso, pois estes ditos dois mandamentos são semelhantes, isto é, têm a mesma índole. Amar a Deus é fazer a sua vontade e estabelecer com os irmãos relação de amor, de solidariedade, de partilha, de serviço, até ao dom da vida. O resto é explicação, desenvolvimento, aplicação destas coordenadas da vida cristã à vida prática.

Após as controvérsias com os dirigentes judaicos sobre o tributo a César e sobre a ressurreição dos mortos, vem a controvérsia sobre o maior mandamento da Lei. Os fariseus, ao perguntarem a Jesus qual é o maior mandamento da Lei, procuram demonstrar que Jesus não sabe interpretar a Lei, pelo que não merece crédito.

A questão do maior mandamento da Lei não era pacífica e, no tempo de Jesus, era objeto de intermináveis debates entre os fariseus e os doutores da Lei. A preocupação em atualizar a Lei, de modo que ela respondesse a todas as questões que a vida do quotidiano colocava, levara os doutores da Lei a deduzir um conjunto de 613 preceitos, dos quais 365 eram proibições e 248 ações a praticar. Esta multiplicação preceitual lançava a questão das prioridades: Todos os preceitos têm a mesma importância ou há algum mais importante do que os outros? Todavia, a resposta de Jesus supera o estreito horizonte da pergunta, situando-se ao nível das opções profundas do homem. O importante, na perspetiva de Jesus (responde aos fariseus, que ouviram dizer que reduzira ao silêncio os saduceus), não é definir qual o mandamento mais importante, mas encontrar a raiz de todos eles. E, nesta perspetiva, essa raiz gira à volta de duas coordenadas: o amor a Deus e o amor ao próximo – de que a Lei e os Profetas são apenas comentários.

Os cristãos de Mateus usavam a expressão “a Lei e os Profetas” para se referirem aos livros inspirados do Antigo Testamento, que apresentavam a revelação de Deus. Portanto, dizer que a Lei e os Profetas se resumem nestes dois mandamentos significa que eles encerram toda a revelação de Deus, contendo a totalidade da proposta de Deus aos homens.

A originalidade deste sumário evangélico da Lei não está nas ideias de amor a Deus e ao próximo, que são conhecidas do Antigo Testamento (Jesus limita-Se a citar Dt 6,5, no atinente ao amor a Deus, e Lv 19,18, no respeitante ao amor ao próximo), mas está no facto de Jesus os aproximar um do outro, pondo-os em paralelo, e no facto de Jesus simplificar e concentrar toda a revelação de Deus nestes dois mandamentos. Portanto, o compromisso religioso, proposto aos crentes do Antigo e do Novo Testamento, resume-se no amor a Deus e no amor ao próximo, amor que deve ser entendido na ótica de Jesus.

Segundo os relatos evangélicos, Jesus nunca se preocupou excessivamente com os rituais que a religião judaica estabelecia, nem viveu obcecado com a oferta de dons materiais a Deus. A sua grande preocupação foi discernir a vontade do Pai e cumpri-la com fidelidade e amor. Amar a Deus é, pois, na lógica de Jesus, estar atento ao desígnio do Pai e procurar concretizar, na vida diária, os seus planos. Ora, na vida de Jesus, o cumprimento da vontade do Pai passa por fazer da vida uma entrega de amor aos irmãos, se necessário, até ao dom total de si mesmo.

Assim, para Jesus, amor a Deus e amor aos irmãos estão interligados. Não são dois mandamentos diversos, mas duas faces da mesma moeda. Amar a Deus é cumprir o seu desígnio de amor, que se concretiza na solidariedade, na partilha, no serviço, no dom da vida aos irmãos.

O texto ensina que deves amar a Deus totalmente, ou seja, “com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua inteligência” (em vez de “com toda a tua inteligência”, Lucas diz: “com todas as tuas forças”; e Marcos diz: “com toda a tua capacidade”). Exige um empenho total de si próprio. Costumamos dizer “amar a Deus sobre todas as coisas”, não dizemos “sobre todas as pessoas”, porque isso seria negar o dito segundo mandamento.      

O texto, no atinente ao amor ao próximo estatui que é preciso “amar o próximo como a ti mesmo”. A expressão “como a ti mesmo” não significa nenhuma espécie de condicionalismo, mas implica a totalidade do amor, exatamente como no amor a Deus. Por outro lado, supõe que a pessoa gosta de si própria, cuida do seu corpo, da sua saúde, da sua alimentação, do seu vestuário, da sua alma, da sua casa, da sua família. E é bom que assim seja, para, de igual modo, proceder com o semelhante. Mais: não vá suceder que sejamos bons para os outros e desprezemos a família, que também é o nosso próximo.   

Noutros textos mateanos, Jesus explica aos discípulos que é preciso amar os inimigos e orar pelos perseguidores. Isto quer dizer que o amor ao próximo é sem limites, sem medida e não distingue bons e maus, amigos e inimigos. Aliás, Lucas, ao contar este episódio, acrescenta-lhe a parábola do bom samaritano, explicando que o amor aos irmãos, pedido por Jesus, é incondicional e deve atingir todo o irmão que encontrarmos nos caminhos da vida, mesmo que ele seja um estrangeiro ou inimigo.

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A segunda leitura (1Ts 1,5c-10) apresenta-nos o exemplo da comunidade cristã de Tessalónica que, apesar da hostilidade e da perseguição, aprendeu, com Cristo e com Paulo, o caminho do amor e do dom da vida.

Paulo continua, no trecho em referência, a longa ação de graças que havia começado. Com efeito, à ação evangelizadora dos apóstolos (Paulo, Silvano, Timóteo) e do Espírito Santo, responderam os Tessalonicenses com o acolhimento entusiasta do Evangelho. O nascimento para Cristo da jovem comunidade cristã aconteceu em ambiente de alegria e de júbilo, apesar da hostilidade provocada pela oposição dos Judeus e pela tensão entre os cristãos e as autoridades da cidade.

Aliás, a alegria e o sofrimento fazem parte do dinamismo do Evangelho. Cristo ofereceu a sua vida até à cruz, para que a Boa Nova do Reino chegasse a toda a Humanidade; Paulo imitou Cristo e anunciou o Evangelho em dificuldades e perseguições; os Tessalonicenses imitaram Paulo e receberam jubilosamente o Evangelho, apesar da hostilidade dos concidadãos; e os crentes de toda a Grécia (“da Macedónia e da Acaia”, as duas províncias romanas da Grécia) imitaram os Tessalonicenses e sofreram alegremente pelo Evangelho.

Assim, fica manifesto que o Senhor, os apóstolos e toda a Igreja partilham o mesmo destino: todos percorrem o mesmo caminho, iluminados pelo Evangelho, na alegria e no sofrimento.

Esta longa cadeia histórica – de Jesus à Igreja – mostra que o Evangelho se faz dinamismo de vida e de salvação para todos os povos, se acolhido na alegria, apesar do sofrimento.

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É o amor a prioridade e a marca dos cristãos; é o amor que leva a suportar o sofrimento com alegria. É a falta de amor, aliada ao exibicionismo, que gera a hipocrisia, a mentira e as estruturas de pecado que invadem o campo eclesial (desde os batizados até ao topo da hierarquia). Mas é o amor que tem a força regeneradora e a capacidade de instaurar o perdão.

2023.10.29 – Louro de Carvalho

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