segunda-feira, 2 de outubro de 2023

“Um homem do Norte rapidamente se adapta a qualquer instrumento”

 

É uma poderosa asserção de D. Américo Aguiar, criado cardeal-presbítero no passado dia 30 de setembro, baseada na homilia papal da celebração do Consistório de criação dos 21 novos purpurados e como subtil resposta às vãs expectativas alimentadas por alguns observadores.

O curriculum vitae de Américo Aguiar é tudo menos monótono: desde autarca e pároco a bispo auxiliar, passando por vigário geral, líder executivo da Irmandade dos Clérigos, presidente do conselho de administração do grupo Renascença e presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023.

A um mês da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o Papa incluiu-o na lista, que publicitou, de 21 cardeais a criar em 30 de setembro, o que, pelos vistos, foi surpreendente para si próprio.

É, fundamentalmente, a partir daí que algumas vozes, pegando em asserções isoladas do contexto, entram em contestação, levadas por um errado purismo teológico e pela inveja de o cardeal eleito, ainda novo, ter adquirido visibilidade. A tudo o atingido foi respondendo, estribado no são pluralismo, na verdade teológica e na convicção de que só se atiram pedras às árvores de fruto.

Entretanto, algumas entidades, incluindo o Presidente da República, pensaram que Francisco estava a dar um sinal de que o faria patriarca de Lisboa – esquecendo que o Vaticano não convive bem com adivinhações e presságios e que Francisco é surpreendente nas suas decisões – o que não impediu que alguns viessem a dizer que era demasiado novo e que o patriarca de Lisboa, por inerência, magno chanceler da Universidade Católica Portuguesa (UCP), tinha de ser doutor.

Se isso tinha fundamento, não sei; o que sei é que bispos como um bispo de Viseu, com quem trabalhei, um bispo do Porto, que bem conheci, e um arcebispo de Braga, não doutores, presidiam aos atos solenes da UCP nas respetivas dioceses. Também o atual patriarca não tem o título académico de doutor e foi escolhido. No entanto, laconicamente, aponta-se o título da tese que preparou, mas que não obteve o título, devido a ocupações pastorais (aliás, como o Papa). Também a diretora da Faculdade de Teologia é doutora, mas em História. Há, pois, nexos não indispensáveis. Pessoalmente, não me preocupam esses títulos, presentes ou ausentes, pois os bispos são, sobretudo, “Pastores da Igreja” e o seu doutorado é o da fé e da doutrina da fé.

Também se pensou na hipótese de chefiar um serviço na Cúria Romana, mas há sempre um “mas”, para justificar expectativas não realizadas. É óbvio que Américo Aguiar é novo, mas não para ser bispo, cardeal, arcebispo, patriarca, etc. Poderá sê-lo para dirigir um dicastério, mas, sobretudo, tem de esperar que os prefeitos respetivos terminem os seus mandatos ou atinjam a idade para cessarem funções (75 anos). Estas eventuais limitações não impedem a nomeação para membro de alguns dicastérios romanos, nem para aconselhar o Papa.

Quanto a Setúbal, é uma das novas dioceses, sem a “ferrugem” das antigas, e um bom espaço pastoral. Aliás, não há, eclesialmente, dioceses de primeira e de segunda categoria.   

Não sei o que pensa o cardeal, mas, para nós, as suas afirmações são revestidas do melhor sentido eclesial e da “colagem”, pela positiva, ao ideário e as estratégias do Papa Francisco.

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Na sua homilia, Francisco partiu duma passagem dos Atos dos Apóstolos (At 2,1-11), a narração do Pentecostes, um texto fundamental, por significar o batismo da Igreja. Porém, o Pontífice fixou-se na verificação dos Judeus, que então “residiam em Jerusalém”, de que os circunstantes vinham de todas as partes do Mundo, conhecido ao tempo. E essa lista de povos faz pensar nos cardeais, que são “de todas as partes do Mundo, das mais diversas nações”.

Depois, surpreendentemente, anotou que os pastores da Igreja, ao lerem a narração do Pentecostes, se identificam com os apóstolos, quando aqueles povos diversos e de todos os confins, que o Papa associava aos cardeais, não pertenciam ao grupo dos discípulos, estavam fora do Cenáculo, integrando a multidão que se reuniu, quando ouviu o ruído da “forte rajada de vento”. Os Apóstolos eram “todos galileus”, ao passo que o povo que se reunira provinha “de todas as nações que há debaixo do céu”, como o são os bispos e os cardeais de hoje.

Esta de inversão de papéis revela interessante perspetiva que o Pontifice quis partilhar. Trata-se de aplicar, agora, a experiência daqueles judeus que, por dom de Deus, foram protagonistas do Pentecostes, ou seja, do batismo do Espírito Santo, “que fez nascer a Igreja una, santa, católica e apostólica”. Tal perspetiva sintetiza-se em “redescobrir, maravilhado, o dom de ter recebido o Evangelho na nossa língua”. É, pois, necessário, “repensar, com gratidão, o dom de termos sido evangelizados e tirados de povos que receberam o Kerygma, o anúncio do mistério de salvação, e que, acolhendo-o, foram batizados no Espírito Santo” e passaram a integrar a Igreja: “a Igreja Mãe, que fala em todas as línguas, que é una e é católica”.

Assim, antes de sermos apóstolos (sacerdotes, bispos, cardeais), somos pessoas desses diversos povos do Mundo, o que “deveria despertar em nós a maravilha e a gratidão por termos recebido a graça do Evangelho nos nossos respetivos povos de origem”. Com efeito, na História e “na carne do nosso povo”, “o Espírito Santo operou o prodígio da comunicação do mistério de Jesus Cristo morto e ressuscitado”, que nos chegou “na própria língua”, nos lábios e nos gestos “dos nossos avós e dos nossos pais, dos catequistas, dos sacerdotes, dos religiosos”. A fé, na verdade, “é transmitida, ‘em dialeto’, pelas mães e pelas avós”.

Por isso, “somos evangelizadores”, na medida em que guardamos no coração a maravilha de termos sido evangelizados e sermos evangelizados. É um dom atual, que deve ser continuamente renovado na memória e na fé. Somos “evangelizadores evangelizados, e não funcionários”.

O Pentecostes, tal como o batismo de cada um, não é um facto do passado, mas “um ato criador que Deus renova continuamente”. E Igreja (e cada um dos seus membros) vive deste mistério atual. Não vive de rendimentos ou dum património arqueológico, por mais precioso e nobre que fosse. “A Igreja e cada batizado vivem do hoje de Deus, pela ação do Espírito Santo.”

E, dirigindo-se aos novos cardeais, o Papa disse que, à luz da Palavra, podemos individuar esta realidade: os novos cardeais vieram de diversas partes do Mundo, e o Espírito que fecundou a evangelização dos seus povos, agora renova neles a sua “vocação e missão na Igreja e para a Igreja”.

Desta reflexão, o Papa tirou uma consequência para os cardeais e para o colégio cardinalício, expressa na imagem da orquestra: o colégio cardinalício “é chamado a assemelhar-se a uma orquestra sinfónica, que representa a dimensão sinfónica e a sinodalidade da Igreja”.

E Francisco sublinhou a “sinodalidade”, por estarmos nas vésperas da primeira Assembleia do Sínodo que versa o tema e porque “a metáfora da orquestra pode muito bem iluminar o caráter sinodal da Igreja”. Com efeito, a sinfonia “vive da sábia composição dos timbres dos diversos instrumentos: cada um dá o seu contributo, ora sozinho, ora combinado com outro, ora com todo o conjunto”. Sendo indispensável a diversidade, “cada som deve concorrer para o resultado comum”, para o que “é fundamental a escuta mútua”. Efetivamente, como diz o Papa, “se alguém se ouvisse apenas a si mesmo, por mais sublime que possa ser o seu som, não serviria de proveito à sinfonia”, acontecendo o mesmo, “se uma parte da orquestra não ouvisse as outras”.

Por seu turno, o diretor da orquestra está ao serviço do milagre que “é a execução duma sinfonia”, pelo que “deve ouvir mais do que todos os outros e […] a sua tarefa é ajudar cada um e a orquestra inteira a desenvolver ao máximo a fidelidade criativa”, a fidelidade à obra a executar, mas criativa, capaz de dar alma à partitura, “de fazê-la ressoar, de forma única, aqui e agora”.

Segundo o Papa, “faz-nos bem espelhar-nos na imagem da orquestra”, para aprendermos a ser “Igreja sinfónica e sinodal”. Assim a propõe, de modo particular, aos membros do colégio dos cardeais, na confiança de que “temos como maestro o Espírito Santo [é Ele o protagonista]: maestro interior de cada um e maestro do caminhar juntos”. Com efeito, Ele “cria a variedade e a unidade, Ele é a própria harmonia”, como referiu São Basílio Magno, ao afirmar: “Ipse harmonia est – Ele próprio é a harmonia.”

Por fim, o Pontífice confiou-se e confiou os cardeais à “doce e forte guia” do Espírito Santo e “à guarda solícita da Virgem Maria”.

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É neste contexto homilético de Igreja sinfónica e sinodal que se situa o papel principal do 47.º cardeal português, enquanto bispo de Setúbal, a quem Francisco, logo a seguir à entrega do barrete e do anel cardinalícios, exortou a ter “Setúbal no seu coração”, o que o purpurado considerou “particularmente bonito e inspirador”

Como lhe foi atribuído o título da Igreja de Santo António de Pádua in Via Merulana, o Papa disse-lhe: “Santo António de Lisboa ou de Pádua, agora entendam-se.” E, sobre a atribuição deste título presbiteral, D. Américo Aguiar referiu: “Para mim, é particularmente significativo que esta Igreja tenha sido a Igreja titular do cardeal António Ribeiro e do cardeal [Cláudio] Hummes, o culpado do nome Francisco.” São sinais, “recados e provocações que coloca no coração”. De facto, D. António Ribeiro foi patriarca de Lisboa e D. Cláudio Hummes foi o cardeal brasileiro que inspirou o Papa Francisco, ao dizer-lhe, após a eleição: “Não te esqueças dos pobres!”

D. Américo Aguiar conta que, ao subir a rampa da Praça de São Pedro, para receber o barrete cardinalício, se lembrou de quando o Papa, no contexto da pandemia, a subia sozinho e pareceu-lhe ter sentido o peso e a partilha dessa caminhada. Na verdade, os cardeais, com a fórmula e com o juramento de fidelidade ao Pontífice, ficam-lhe estreitamente vinculados à sua missão (não sei como alguns se lhe opõem, por vezes, drasticamente). E o novel purpurado vincou: “A partir do momento em que nos entregamos nas mãos de Deus, seja o que Deus quiser.” De facto, hoje o aconselhamento ao Papa e a cooperação com ele não conhecem barreiras geográficas, nem atrapalhações institucionais – digo eu.

Sobre a ida para Setúbal, o cardeal já tinha referido, a 21 de setembro, quando foi conhecida a sua nomeação: “Sou um fazedor e parto para Setúbal de mangas arregaçadas”. E acrescentou, predisposto a descartar a ideia de que “ir para fora é que é bom”: “Quando o soube, fiquei de coração cheio.” E dizia ter encontrado, em D. Manuel da Silva Martins, o primeiro bispo da diocese, inspiração para o trabalho pastoral e ter apreciado, em D. António Francisco dos Santos, e foi bispo do Porto, a marca da disponibilidade e da proximidade.  

E, respondendo ao apelo da metáfora da orquestra sinfónica, a representar bem o caráter sinodal da Igreja, considerou: “Não sou bom a música, mas faço parte de uma orquestra sinfónica e sinodal. Agora vamos dar música. ‘Um homem do Norte rapidamente se adapta a qualquer instrumento’.”

Esta última frase, que serve de epígrafe a esta peça de reflexão, é do melhor que se pode encontrar numa alma verdadeiramente eclesial. Digo-o de um hierarca que não conheço pessoalmente, mas que reconheço pelo trabalho e pela visibilidade globalmente extraordinária. Compreendo a inveja de outros, que não aceito, pois, quem está incumbido de tarefas que, pela sua natureza, conferem visibilidade, não pode nem deve furtar-se aos holofotes da ribalta pública. Seria fugir às suas responsabilidades eclipsar-se ou impelir outrem para responder pelo que é bom e pelo que é menos bom. Por isso, que o bispo de Setúbal, cardeal-presbítero, siga em frente, faça seguir a sua Marinha evangelizadora, litúrgica e sócio-pastoral e tenha êxito pastoral e pessoal.

2023.10.02 – Louro de carvalho

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