segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O universo da ética, moral, lei, normas e valores

Em tempo de medo, egoísmos e confusão, virá ao caso esta reflexão que pode ser oportuna.

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O termo “ética” (grego: êthos e éthos) vem de vocábulos gregos ([~,Ηθος – morada, modo de ser, caráter; e [,´Εθος] – uso, costume, hábito) – e corresponde ao latino “mos(no plural “mores”, costumes, de que derivou o termo “moral”), donde provém o termo “Moralis(moral, atinente aos costumes). O primeiro vocábulo, grafado com êta (ê longo), tem a ver com a ordem das causas – eficiente, conseguindo construção sólida que permita morar bem; e final, obtendo a felicidade, o que todos os seres humanos desejam, almejando e cultivando valores imprescindíveis, como a defesa da vida, como princípios fundadores de ação (vg: “dar de comer a quem tem fome” ou “socorrer os feridos”). O segundo, grafado com épsilon (é breve) abarca os meios ordenados para o predito fim – bem, felicidade ou autorrealização – significando os costumes ou conjunto de valores e de hábitos consagrados pela tradição cultural de um povo. Assim, o vocábulo aproxima-se de “,´Εθνος”, povo, raça, nação; e a ética vem sendo entendida como “moral” (os costumes e valores fundadores duma cultura) ou como alguma das várias morais, já que há vários tipos de povos e culturas.

Se, em Sócrates, a ética tem de responder à questão como deve agir e proceder o homem, em Aristóteles, o centro da ética é a felicidade, enquanto autonomia e autorrealização do cidadão na dimensão pessoal e social, para cuja concretização se requerem as virtudes (hábitos positivos) e os estatutos jurídicos. E é sob a égide do [,Ηθοποιοóς – ethopoiós] (educador dos costumes) que se ligam à ética as palavras personalidade e caráter, passíveis de educação em termos de construção e progressão, pelo que se fala da ética como “arte de formar” ou como conformidade com a oratória ou a doutrina.

Em Filosofia, “ética” significa o que é bom para a pessoa (ética individual) e para a sociedade (ética social), estabelecendo o seu estudo a natureza de deveres no relacionamento indivíduo/sociedade. Como ciência ou arte descritiva e normativa referida à conduta humana, contrapõe-se-lhe a “moral” ou seja o complexo de princípios, normas, costumes, valores que norteiam o comportamento do indivíduo no grupo social. E, embora, às vezes, se haja assumido a ética como filosofia moral, reservando-se, por apropriação, a moral para o campo da teologia, Moral e Ética não devem confundir-se, pois a moral é normativa, enquanto a ética é teórica, já que fundamenta e ilumina a prática, provoca a reflexão sobre ela e tenta explicar e justificar os costumes duma sociedade, bem como fornecer subsídios para a solução dos seus dilemas. Dito de outro modo, a Ética configura a ciência normativa cujo objetivo é estabelecer os princípios, regras e valores que norteiem e regulem a ação humana com vista à sua harmonia (sabedoria da ação humana). Em muitas filosofias, tais princípios, regras e valores afirmam-se como imperativos de consciência com valor universal. A Ética preocupa-se não como os Homens são, mas como devem ser. Porém, o homem é a autoridade última das suas decisões. Na Moral, temos os valores que uma sociedade ao longo dos tempos foi criando e que os indivíduos sentem como obrigação que lhes é exterior, isto é, a explicitação e formulação de regras e padrões de conduta, em conformidade com os princípios éticos.   

Também não se deve confundir a ética com a lei, embora a lei, reta e justa, se baseie em princípios éticos. Ao invés do que sucede na lei, ninguém pode ser compelido pelo Estado ou outras entidades a cumprir as normas éticas, nem a sofrer sanção pela desobediência a estas; por outro lado, a lei pode ser omissa quanto a questões abrangidas no escopo ético. Assim, o legislador altera a lei, mas não a ética.

Atualmente, a maioria das profissões tem o código de deontologia ou de ética profissional e várias entidades e serviços têm o código de conduta, que, assumindo uma forma de ética prática, compaginam um conjunto de normas obrigatórias, derivadas da ética, compromisso ético frequentemente assumido pelas leis públicas. Quando tal acontece, os princípios éticos podem vir a ter força de lei; e, mesmo quando esses códigos não são assumidos pela lei, têm alta probabilidade de exercer influência, por exemplo, em julgamentos em que se discutam factos relativos à conduta profissional. E o seu não cumprimento pode fazer incorrer em sanções da parte do universo em que se inserem os interessados, como censura pública e suspensão temporária ou definitiva do direito de exercer a profissão ou o cargo. Enfim, tiram-se consequências da assunção da deontologia como moral profissional enquanto explicitação de regras e padrões de conduta referentes a uma atividade específica.

Para aferir e reformular os instrumentos que favorecem o olhar, o construir e a prática da ética, bem como afinar a postura de cada um no devir atitudinal e comportamental, vem a crítica na modalidade de autocrítica (ou exame de consciência e revisão de vida) e na de heterocrítica (correção, chamada de atenção). Tudo isto visa fazer com que a ação humana se mantenha orientada pelos valores e para eles e fautora de atitudes verdadeiramente humanas. Por isso, A. Cortina observa:

A importância das atitudes exige uma educação moral que visa ajudar os homens a desenvolverem-se como pessoas críticas, capazes de assumirem o próprio juízo moral a ponto de porem em questão a ordem vigente, através de um diálogo franco com os demais, para poderem optar por interesses universalizáveis (in Ética de la empresa, 1996).

Por esta via se pode concretizar em cada pessoa a dimensão da autonomia, que lhe permite afirmar-se como pessoa estabelecendo relação com o outro, e a dimensão da autorrealização, que implica o desenvolvimento de cada um em conformidade com as finalidades que define para si. No diálogo e decisão pessoal encontra-se o topos de conciliação entre a universalidade e as diferenças, a comunidade humana e a irrepetibilidade pessoal, a coerência e a verticalidade de vida. Não se dilui o caráter do homem singular na prática do ato coletivo e a atividade conjunta representa um enriquecimento da atividade humana, contribuindo para a melhor realização do ser humano como “o ser ético” e “o ser social e político”.

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E o olhar ético atende às normas e valores, pois constituem o fulcro da ética como ciência normativa e enquadradora dos valores por que a ação humana se pauta em termos da moral.

Se normas e valores se reportam a quadros nocionais diferentes – as normas abrangem regras, razões, princípios, deveres, direitos, etc., ao passo que os valores hoje em dia remetem para conceitos como bem, mal, virtude, mais-valia… (em certos contextos, os valores são contabilizáveis em termos pecuniários e outros bens materiais), é, contudo, legítimo considerar a aproximação e o entrosamento que permeia os dois universos de noções. Independentemente de ser ou não desejável integrar a temática do bem numa teoria geral de valores e a do dever numa teoria geral de normas, os conceitos de bem e de valor não se restringem ao campo da ética. Os enunciados morais podem ser avaliatórios e prescritivos ou descritivos. Os primeiros contêm predicados específicos (apreciativos ou depreciativos), designados como predicados axiológicos agrupáveis em dois conjuntos: os “espessos”, com um componente descritivo, como corajoso, cobarde, mesquinho; e os finos, aparentemente desprovidos de tal componente, como os enunciados “mentir é um mal” ou “a vida justa é melhor que a vida boa”. Os segundos são reconhecidos pelo seu tom imperativo e pela presença de expressões deônticas do tipo “é preciso”, “é obrigatório”, é “proibido”, “deve ser”… Porém, não é necessário que as ditas expressões deônticas ou o tom imperativo tenham uma presença explícita; basta que a sua formulação remeta para a sanidade ou insanidade da ação, como por exemplo, no enunciado “o chefe alterou as regras de funcionamento sem qualquer explicação”.

Por estes exemplos se infere que o lado avaliatório e o prescritivo-descritivo se entrecruzam, pelo que a diferença entre normas e valores (do lado ético) será mais de grau ou de aplicabilidade que de essência. Com efeito, as normas abordam o que é preciso fazer e aplicam-se preferencialmente às ações humanas, pelo que o enunciado normativo deve especificar o género de ação, o tipo de agente que da sua realização. Já os predicados axiológicos (apreciativos ou depreciativos) não se referem necessariamente a uma ação nem à precisão de seus agentes e circunstâncias. E, embora possam referir-se a qualquer um desses elementos, não os implicam necessariamente a todos e podem, além da ação humana, tratar de sentimentos e objetos naturais ou artificiais, como podem, mesmo configurando formulação deôntica (do dever ser), ultrapassar o âmbito da ação humana. Tal é o caso de enunciados do tipo: “o sofrimento não devia existir” ou “deve existir vida para além da morte”.

Neste contexto, é de estabelecer um complexo da relação entre as normas e os valores, de acordo com Marques de Lima (Diferenças entre princípios e valores. In “Revista Jurídica”, n.º 2).

As normas integram a categoria deôntica (mandar, proibir, determinar, permitir etc.); e os valores compõem a categoria axiológica do bom, otimização das qualidades, potenciação do bem ético. Na verdade, o bem ético deve ser visto sob o ângulo do direito e o do valor. Como direito, realiza-se no limite da normatividade no atinente a todos os que se encontram em idênticas circunstâncias; como valor, é potencializado para a inesgotável busca da sua máxima realização, ao alcance de todos os que ensejam o máximo de perfeição, bem-estar, dedicação, felicidade.

O valor é fundante do grau deontológico da normatividade ou a alma da norma. A noção dos valores leva a tomar decisões justas e seguras. É a valoração que mantém a atualidade da norma. A valoração do legislador, enquanto “formulador” da norma, estaca no tempo, para com a edição da mesma, mas a do seu aplicador é permanente, mantendo-a viva e atual.

Conquanto integrem categorias diferentes, normas e valores interpenetram-se: os valores fundamentam as normas, constituem o conteúdo delas e, por elas, revelam-se e realizam-se. Assim, os principais pontos de contacto entre os valores e normas são: integram conceitos como direito, moral e ética; reportam-se a ação, agente, circunstância; assumem e configuram normas jurídicas, morais e sociais; e possuem caráter teleológico (objetivos a atingir) e estratégico (definem regras organizacionais e funcionais); 

De entre as muitas diferenças, sobressaem as seguintes: Os valores integram a categoria axiológica (do bom, correto, certo); as normas, a deontológica (do dever ser). Na esfera das normas considera-se o “deve ser”, na esfera dos valores tem-se em conta o “deve ser melhor”; o que na esfera das normas é, prima facie, devido, na dos valores é, prima facie, o melhor. Os valores, apreendidos por intuição racional e brotando do sentir, encerram maior conteúdo axiológico (referenciam entre o melhor e o pior); as normas, percebidas pela razão (constatadas ou construídas a partir da lógica inerente aos princípios basilares), encerram maior carga política. A validade deontológica das normas tem o sentido absoluto duma obrigação incondicional e universal (o que se pretende deve ser igualmente bom para todos), ao passo que a atratividade dos valores tem o sentido relativo duma apreciação de bens, segundo formas de vida ou de cultura. As normas válidas obrigam os seus destinatários, sem exceção e em igual medida, a um comportamento que preenche expectativas generalizadas, ao passo que os valores expressam preferências tidas como dignas de serem desejadas em determinadas coletividades, mediante um agir direcionado a um fim. As normas nascem com a pretensão de validade binária (válidas/inválidas), enquanto os valores determinam relações de preferência, qualificando uns bens como mais atrativos que outros. Diferentes normas, mas que formam um sistema, com pretensão de validade aos mesmos destinatários, não podem contradizer-se, ao passo que valores distintos concorrem para obter primazia, porque integrados no reconhecimento intersubjetivo duma cultura (os valores são passíveis de hierarquização).

Por se distinguirem por critérios lógicos, a aplicação das normas e dos valores não reveste igual forma, pelo que podemos orientar o nosso agir concreto por normas ou por valores, mas a orientação da ação não é a mesma. Assim, a questão “o que se deve fazer numa dada situação” não se põe do mesmo modo em ambas as perspetivas, nem obtém a mesma resposta. À luz das normas, decide-se o que deve ser feito, ao passo que, no âmbito dos valores, sabe-se qual o comportamento recomendável. Ora, se o caráter genérico e aberto dos valores relativiza a sua força normativa, a força dos valores permite identificar o conteúdo de determinadas instituições. Nestes termos, o valor define o tipo de decisões como: graduação prática entre pena mínima e máxima; guarda dos filhos do casal em litígio; estabelecimento dos parâmetros para a definição da conveniência administrativa; fornecimento de critérios de fixação do quantum indemnizatório por danos morais; e bases para a dissipação das antinomias reais das normas.

Todo o “dever ser” de ordem ética se funda num valor, mas este não se funda no “dever ser”. O “dever ser” do valor ético é puro e ideal, não um “dever-fazer” nem um “ter-de-ser”. “Dever ser” significa direção para, ou sobre, algo, ao passo que “valor” significa esse algo, para o qual ou sobre o qual se dirige o “dever ser”. É o valioso que deve tornar-se fim e não o fim que deve considerar-se valioso por si. O fim deve estar estribado no valor e não o valor no fim (contrário do maquiavélico “os fins justificam os meios”).

Neste horizonte dos valores, surge o valor como princípio hermenêutico ante a heterogeneidade de culturas ou o ambiente de dispersão pela magnitude de obstáculos, a multiplicidade de solicitações, a progressiva deterioração do pensar e do sentir, a degradação das relações interpessoais ou grupais e a conflitualidade entre interesses díspares ou colisão de direitos. Assim, a força do valor conforma a nossa vida moral, isto é, converte-se em fonte de inspiração necessária para toda a decisão ética. Nestes termos, a solidariedade mobiliza o voluntário para enveredar por um projeto de cooperação, em nome da paz e da justiça, longe do seu ambiente, embora secundado por outros motivos (familiares, profissionais, sociais ou culturais). É o valor que faz pressentir os perigos e as incoerências duma situação insustentável, insta a um trabalho de análise e interpretação e induz a atitude de vigilância para que se evitem determinados factos que atropelam a dignidade da pessoa humana ou prejudicam a vida em sociedade.

Em síntese, a ética, como ciência descritiva e normativa da ação humana, não se confunde com a lei, enquanto formulação coerente de normas que a autoridade do Estado impõe, sob sanção, aos cidadãos, nem com a política, qual ciência e prática de condução da coletividade de acordo com os fins supremos do Estado, nem com a moral, configuradora de um complexo de valores de comportamento humano produzido por uma determinada cultura e/ou religião. Não obstante e embora a ética configure valores próprios nem sempre vertidos na lei ou seguidos pelos poderes, a lei reta e justa é um imperativo ético; e o poder político deve ser respeitado, tal como deve ser promovida a prática da moral assumida pela comunidade cultural, económica, social, política e religiosa. Por outro lado, torna-se imperativo ético desenvolver uma atividade em consonância com o que a reflexão científica determina como certo ou aconselha como recomendável, sobretudo quando os programas de ação e processos de atividade são gizados, acompanhados e monitorizados por um escol de sábios ou especialistas.

(Cf Amerio, F. (1967) História da Filosofia; Baptista, I. (2005) Dar rosto ao futuro: a educação como compromisso éticos; Cortina, A. (2007) Ética aplicada y democracia radical; Pereira, C. (2010) A dimensão ética na avaliação das organizações escolares, UCP).

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Em ambiente onde as normas superabundam, a comunicação nem sempre é verdadeira, os valores espreitam entre comportamento dúbio, egoísta, avaros, discriminatório e opressivo face a situações de desespero, talvez os poderes (político e económico) e as esferas religiosas, culturais e sociais precisem do banho ético à luz dos valores, da esperança, do bom, belo e verdadeiro.

2020.11.23 – Louro de Carvalho

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