Refere o
JN deste dia 17 de novembro que “o
Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) considerou ilegais as ordens de isolamento ou de quarentena
emanadas pela Autoridade de Saúde (AS), no âmbito da pandemia de
covid-19, durante o estado de alerta”.
Na verdade,
a 1 de agosto, 4 turistas alemães chegaram aos Açores com testes negativos
feitos no seu país 72 duas horas antes, tendo os cidadãos
entregado cópias à Autoridade Regional de Saúde no aeroporto de Ponta Delgada. Porém, 7 dias depois, fizeram
novo teste porque uma das mulheres adoeceu e testou positiva. E a AS açoriana
proibiu-as de saírem do quarto, ficando assim privadas da liberdade sucessivamente em unidades hoteleiras da ilha de São
Miguel.
Face a
tal proibição, interpuseram um ‘habeas corpus’, que o tribunal de 1.ª instância aceitou,
tendo o juiz declarado que, entre o início da quarentena e a data da submissão
do ‘habeas corpus’, a privação da liberdade não fora sujeita a escrutínio
judicial.
Para o tribunal, a decisão de “privação de liberdade promanada da
Autoridade Regional de Saúde (ARS) assentou
apenas em circulares normativas emitidas pela mesma e pela Direção-Geral da
Saúde” (DGS) que “consubstanciam orientações administrativas não
vinculativas para os requerentes, mas apenas para as mencionadas autoridades e
respetiva cadeia hierárquica”.
O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores aponta que aos cidadãos
requerentes “nunca foi transmitida qualquer informação, comunicação,
notificação, como é devido nos termos da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, na sua língua materna”.
Mais a instância judicial adianta que “uma das cidadãs internadas padeceu,
durante este tempo, de doença e, por isso, todavia sem sucesso, pediu auxílio
através do número disponibilizado pela Autoridade Regional de Saúde”.
Entretanto, a AS recorreu para o TRL.
Aduzindo que só uma autoridade judicial ou regras decorrentes
do estado de emergência ou de sítio decididas pelo Parlamento, podem conferir poder
à AS para restringir a liberdade de qualquer cidadão, o TRL entende que a
decisão da AS açoriana cometeu uma ilegalidade, alargando o ilícito a todas as
ARS do país.
Afirmam as desembargadoras que apreciaram o recurso (Margarida Ramos d Almeida e Ana Parmés) que pessoa ou entidade que
dê ordem de privação de liberdade física, ambulatória, seja qual for a designação,
que não se enquadre nas previsões legais, nomeadamente o estabelecido no n.º 3
do art.º 27.º da Constituição, e sem que lhe tenha sido conferido poder
decisório, por força de lei, provinda do Parlamento, no quadro do estado de
emergência ou do estado de sítio, procede a detenção ilegal por se tratar de entidade
incompetente e por se tratar de facto que a lei não permite. E dão como exemplo
que nunca a tuberculose nem a infeção por HIV levaram ninguém à privação da
liberdade. Por outro lado, as magistradas colocam em causa a fiabilidade dos testes
PCR, que se mostram incapazes de, só por si, determinarem que a positividade corresponde
à infeção por vírus SARS-CoV-2, pois, segundo estudos da Universidade de
Oxford, a probabilidade de falsos resultados positivos é de 97% ou superior.
***
Este não é caso isolado nos Açores, já que em 14 de agosto o Tribunal
Judicial da Comarca dos Açores ordenou a libertação de duas cidadãs que
interpuserem um ‘habeas corpus’ após lhes ter sido decretada quarentena por
terem viajado em lugares próximos dum infetado com covid-19. Também em 27 de
julho, o tribunal decidiu declarar procedente o ‘habeas corpus’ interposto por
três cidadãos “privados da liberdade” desde 24 de julho numa unidade hoteleira
da ilha Graciosa, no âmbito da covid-19. Já em 16 de maio, o Tribunal de Ponta
Delgada deferiu um pedido de libertação imediata (‘habeas corpus’) feito por um queixoso contra a imposição de
quarentena em hotéis por parte do Governo dos Açores.
Em causa estava a iniciativa dum queixoso colocado em quarentena
obrigatória numa unidade hoteleira em Ponta Delgada e avançou com um ‘habeas
corpus’.
Em 5 de agosto, ficou a saber-se que o Tribunal Constitucional considerou
que as autoridades açorianas violaram a Constituição ao impor a quem chegasse à
região uma quarentena obrigatória de 14 dias por causa da pandemia da covid-19.
A decisão surgiu na sequência dum recurso interposto pelo MP a uma decisão
judicial de libertar um homem que se queixou da quarentena imposta.
Da decisão do tribunal de 1.ª instância o MP recorreu para o TC, mas os
juízes do Palácio Raton consideraram, a 31 de julho, que “todas as normas
disciplinadoras dum direito liberdade ou garantia carecem duma autorização prévia
da Assembleia da República”, exigência que “ganha particular relevância quando
estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito”.
***
O constitucionalista
Jorge Bacelar Gouveia, instado a comentar o acórdão do TRL, diz que tais
decisões da AS são ilegais por determinarem o efeito da privação da liberdade
individual fora dos limites constitucionais (CRP, art.º 27.º/3) e sem o escrutínio de juiz, como
manda a lógica do Estado de direito democrático. No entanto, o constitucionalista
entende que a AS pode impor o confinamento enquanto “medida urgente e
provisória”, sujeitando tal imposição a confirmação judicial posterior, pois a
AS funciona como polícia sanitária, que defende a ordem pública, a qual “tem
como uma das suas três dimensões a saúde pública. Além disso, sugere a
alteração da base 34 da Lei de Bases da Saúde, esclarecendo o que a AS pode e
deve fazer nestes casos, e/ou elaborar “uma lei sobre o estado de emergência
sanitário em que se explicassem esta e outras medidas, dentro deste quadro,
porque nem todas as medidas são de confinamento.
***
Uma vez
que o n.º 2 do art.º 18.º da CRP dispõe que “a lei só pode restringir os
direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição,
devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, penso que o n.º 3 do
seu artigo 27.º deveria alargar-se às situações de calamidade pública e de
emergência sanitária.
Não percebo
como em 44 anos de vigência da Constituição, os representantes do povo, que
produziram 7 revisões constitucionais, não previram que poderia vir aí uma
calamidade ou uma epidemia que munisse do excecional instrumento necessário e suficiente
para o exercício das funções as autoridades de saúde ou outras autoridades competentes
em casos destes. Não vejo que “internamento de portador de anomalia psíquica”
seja mais relevante que o confinamento de
infetado por vírus SARS-CoV-2, como não vejo como viável que um
magistrado judicial possa decretar, acompanhar ou confirmar todos os casos de
necessidade de isolamento ou internamento em situação de alerta, contingência
ou calamidade – nesta ótica o que se passa, por exemplo, nas escolas, é manifestamente
ilegal, pois dezenas de pessoas são mandadas para casa por quem não tem competência
na matéria. Para quê então os planos de contingência, os regulamentos internos,
etc., se é para levar à letra que “é da exclusiva
competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) Direitos,
liberdades e garantias …” (CRP, art.º 165.º/1). E não se pode o país dar ao
luxo de brincar ao estado de emergência só para dissipar dúvidas quanto aos poderes
do Governo em impor ou não confinamento ou restrições à circulação.
Também – com perdão dos institucionalistas – não percebo
como a pena do juiz tem maior bênção que a da autoridade de saúde. Faz-me
lembrar o caso do médico militar que propunha ao comandante que o militar A ou
B fosse a uma consulta de estomatologia, de oftalmologia, de gastrenterologia… –
proposta que só era válida depois da aposição do visto do comandante.
Quer dizer, sob a capa do Estado de direito
democrático, estamos a endeusar o poder judicial, que vai continuando a falar
do alto da sua incontestável cátedra, imune à crítica, já que “as decisões dos tribunais são
obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras
autoridades” (CRP, art.º 205.º/2).
Enfim, se os tribunais não agem sem serem
estimulados, como podem querer sobrepor-se a todos e em tudo? A função primordial
do juiz não é julgar?
2020.11.17 –
Louro de Carvalho
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