terça-feira, 17 de novembro de 2020

Autoridade de Saúde não pode impor quarentena, mas juiz pode

 

Refere o JN deste dia 17 de novembro que “o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) considerou ilegais as ordens de isolamento ou de quarentena emanadas pela Autoridade de Saúde (AS), no âmbito da pandemia de covid-19, durante o estado de alerta”.

Na verdade, a 1 de agosto, 4 turistas alemães chegaram aos Açores com testes negativos feitos no seu país 72 duas horas antes, tendo os cidadãos entregado cópias à Autoridade Regional de Saúde no aeroporto de Ponta Delgada. Porém, 7 dias depois, fizeram novo teste porque uma das mulheres adoeceu e testou positiva. E a AS açoriana proibiu-as de saírem do quarto, ficando assim privadas da liberdade sucessivamente em unidades hoteleiras da ilha de São Miguel.

Face a tal proibição, interpuseram um ‘habeas corpus’, que o tribunal de 1.ª instância aceitou, tendo o juiz declarado que, entre o início da quarentena e a data da submissão do ‘habeas corpus’, a privação da liberdade não fora sujeita a escrutínio judicial.

Para o tribunal, a decisão de “privação de liberdade promanada da Autoridade Regional de Saúde (ARS) assentou apenas em circulares normativas emitidas pela mesma e pela Direção-Geral da Saúde” (DGS) que “consubstanciam orientações administrativas não vinculativas para os requerentes, mas apenas para as mencionadas autoridades e respetiva cadeia hierárquica”.

O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores aponta que aos cidadãos requerentes “nunca foi transmitida qualquer informação, comunicação, notificação, como é devido nos termos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na sua língua materna”.

Mais a instância judicial adianta que “uma das cidadãs internadas padeceu, durante este tempo, de doença e, por isso, todavia sem sucesso, pediu auxílio através do número disponibilizado pela Autoridade Regional de Saúde”.

Entretanto, a AS recorreu para o TRL.

Aduzindo que só uma autoridade judicial ou regras decorrentes do estado de emergência ou de sítio decididas pelo Parlamento, podem conferir poder à AS para restringir a liberdade de qualquer cidadão, o TRL entende que a decisão da AS açoriana cometeu uma ilegalidade, alargando o ilícito a todas as ARS do país.

Afirmam as desembargadoras que apreciaram o recurso (Margarida Ramos d Almeida e Ana Parmés) que pessoa ou entidade que dê ordem de privação de liberdade física, ambulatória, seja qual for a designação, que não se enquadre nas previsões legais, nomeadamente o estabelecido no n.º 3 do art.º 27.º da Constituição, e sem que lhe tenha sido conferido poder decisório, por força de lei, provinda do Parlamento, no quadro do estado de emergência ou do estado de sítio, procede a detenção ilegal por se tratar de entidade incompetente e por se tratar de facto que a lei não permite. E dão como exemplo que nunca a tuberculose nem a infeção por HIV levaram ninguém à privação da liberdade. Por outro lado, as magistradas colocam em causa a fiabilidade dos testes PCR, que se mostram incapazes de, só por si, determinarem que a positividade corresponde à infeção por vírus SARS-CoV-2, pois, segundo estudos da Universidade de Oxford, a probabilidade de falsos resultados positivos é de 97% ou superior.

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Este não é caso isolado nos Açores, já que em 14 de agosto o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores ordenou a libertação de duas cidadãs que interpuserem um ‘habeas corpus’ após lhes ter sido decretada quarentena por terem viajado em lugares próximos dum infetado com covid-19. Também em 27 de julho, o tribunal decidiu declarar procedente o ‘habeas corpus’ interposto por três cidadãos “privados da liberdade” desde 24 de julho numa unidade hoteleira da ilha Graciosa, no âmbito da covid-19. Já em 16 de maio, o Tribunal de Ponta Delgada deferiu um pedido de libertação imediata (‘habeas corpus’) feito por um queixoso contra a imposição de quarentena em hotéis por parte do Governo dos Açores.

Em causa estava a iniciativa dum queixoso colocado em quarentena obrigatória numa unidade hoteleira em Ponta Delgada e avançou com um ‘habeas corpus’.

Em 5 de agosto, ficou a saber-se que o Tribunal Constitucional considerou que as autoridades açorianas violaram a Constituição ao impor a quem chegasse à região uma quarentena obrigatória de 14 dias por causa da pandemia da covid-19.

A decisão surgiu na sequência dum recurso interposto pelo MP a uma decisão judicial de libertar um homem que se queixou da quarentena imposta.

Da decisão do tribunal de 1.ª instância o MP recorreu para o TC, mas os juízes do Palácio Raton consideraram, a 31 de julho, que “todas as normas disciplinadoras dum direito liberdade ou garantia carecem duma autorização prévia da Assembleia da República”, exigência que “ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito”.

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O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, instado a comentar o acórdão do TRL, diz que tais decisões da AS são ilegais por determinarem o efeito da privação da liberdade individual fora dos limites constitucionais (CRP, art.º 27.º/3) e sem o escrutínio de juiz, como manda a lógica do Estado de direito democrático. No entanto, o constitucionalista entende que a AS pode impor o confinamento enquanto “medida urgente e provisória”, sujeitando tal imposição a confirmação judicial posterior, pois a AS funciona como polícia sanitária, que defende a ordem pública, a qual “tem como uma das suas três dimensões a saúde pública. Além disso, sugere a alteração da base 34 da Lei de Bases da Saúde, esclarecendo o que a AS pode e deve fazer nestes casos, e/ou elaborar “uma lei sobre o estado de emergência sanitário em que se explicassem esta e outras medidas, dentro deste quadro, porque nem todas as medidas são de confinamento.

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Uma vez que o n.º 2 do art.º 18.º da CRP dispõe que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, penso que o n.º 3 do seu artigo 27.º deveria alargar-se às situações de calamidade pública e de emergência sanitária.

Não percebo como em 44 anos de vigência da Constituição, os representantes do povo, que produziram 7 revisões constitucionais, não previram que poderia vir aí uma calamidade ou uma epidemia que munisse do excecional instrumento necessário e suficiente para o exercício das funções as autoridades de saúde ou outras autoridades competentes em casos destes. Não vejo que “internamento de portador de anomalia psíquica” seja mais relevante que o confinamento de infetado por vírus SARS-CoV-2, como não vejo como viável que um magistrado judicial possa decretar, acompanhar ou confirmar todos os casos de necessidade de isolamento ou internamento em situação de alerta, contingência ou calamidade – nesta ótica o que se passa, por exemplo, nas escolas, é manifestamente ilegal, pois dezenas de pessoas são mandadas para casa por quem não tem competência na matéria. Para quê então os planos de contingência, os regulamentos internos, etc., se é para levar à letra que “é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) Direitos, liberdades e garantias …” (CRP, art.º 165.º/1). E não se pode o país dar ao luxo de brincar ao estado de emergência só para dissipar dúvidas quanto aos poderes do Governo em impor ou não confinamento ou restrições à circulação.

Também – com perdão dos institucionalistas – não percebo como a pena do juiz tem maior bênção que a da autoridade de saúde. Faz-me lembrar o caso do médico militar que propunha ao comandante que o militar A ou B fosse a uma consulta de estomatologia, de oftalmologia, de gastrenterologia… – proposta que só era válida depois da aposição do visto do comandante.

Quer dizer, sob a capa do Estado de direito democrático, estamos a endeusar o poder judicial, que vai continuando a falar do alto da sua incontestável cátedra, imune à crítica, já que “as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (CRP, art.º 205.º/2).

Enfim, se os tribunais não agem sem serem estimulados, como podem querer sobrepor-se a todos e em tudo? A função primordial do juiz não é julgar?    

2020.11.17 – Louro de Carvalho

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