É o positivo toque que Paulo
Teixeira, capelão do Centro
Hospitalar Universitário de São João, no Porto, uma das unidades de saúde mais pressionadas pela
covid-19 em Portugal, releva em entrevista à Renascença e à Ecclesia,
publicada a 29 de novembro.
O sacerdote, que diz
assistir todos os dias ao chamamento de familiares para que se possam despedir
dos doentes, faz duas pertinentes asserções: ninguém morre sozinho no hospital e “ninguém foi posto à porta de casa ou
na rua” por falta de camas na sequência da pandemia, porquanto o hospital “sempre foi
encontrando uma solução para aquelas pessoas que estão abandonadas pela própria
família”.
Questionado se a pandemia o
obrigou a repartição de atenções mais equilibrada entre doentes e profissionais
de saúde, assegurou que, embora o ritmo seja “o de sempre”, a pandemia levou a “uma
atenção redobrada”, pela condição de todos estarmos sujeitos à contração de
covid-19 e de, consequentemente, sermos seus transmissores. Não obstante, ainda
que com redobrados cuidados, a preocupação
no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa no Hospital acaba por ser a
mesma, sem diferença significativa no número de acompanhamentos e pedidos,
todos os dias, da parte de doentes e profissionais.
É verdade que, pela grande pressão da pandemia, “algumas pessoas não têm o
à-vontade para pedir a nossa intervenção”, até por estarem assoberbadas com os
problemas. Com efeito, a covid-19 cria-nos preocupação, visto que ecoa na comunicação
social ficando todos a saber o que pode provocar. Assim, o ambiente de receio
leva a que profissionais e doentes internados nem sequer equacionem a
possibilidade de pedir o Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa.
O entrevistado confessa não
saber dar resposta completa à pergunta que lhe fizeram quanto à perceção da
importância da dimensão espiritual e religiosa neste contexto de calamidade,
por não sabermos “em que
momento da pandemia estamos”. Porém, revela que o seu trabalho tem agora “um
maior número de horas”, não por haver descoordenação, que não há, mas por haver
“uma maior carga de trabalhos”, já que “a procura que as pessoas fazem deste
Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa não é, muitas vezes, nos horários
habituais, como eram anteriores à pandemia”, mas num horário “mais de acordo
com as necessidades que surgem naquele momento”. Efetivamente, tendo os
profissionais “uma carga de trabalho maior”, “não podem pedir ajuda e achar que
precisam de ser acompanhados”, bem como os doentes ao estarem envolvidos por cuidados
necessariamente mais assíduos.
Sobre um eventual prejuízo da proximidade e afeto com os doentes, mercê do
risco de infeção, o Padre Teixeira frisa que agora os afetos, no ambiente
hospitalar, “são muito provocados pelo olhar”, sendo que, “a certa altura, já
não nos lembramos da parte de baixo do rosto dos profissionais e dos doentes”.
E explicita:
“Confesso em público que, de vez em quando,
já me custa recordar a parte de baixo do rosto das pessoas. O que eu fixo,
trabalho e me dá alento para fazer o trabalho todos os dias são os olhos das
pessoas. Pelo olhar e a forma como as pessoas nos olham e nos cumprimentam com
os olhos…”.
Confrontado com a asserção de
que “os olhos não mentem”, confirma e reconhece que, embora haja “mentirosos compulsivos”, não há ninguém que consiga
entrar por esse caminho na questão do olhar e da alma, pelo que “o olhar é
o que mais nos prende no contacto e na relação direta”. De facto, não há
máscaras para os olhos e “temos esse canal sempre aberto”. Por isso, há que olhar e ver – digo eu.
O sacerdote não se furtou a
responder a um tema delicado, a limitação (vulgo “proibição”) das visitas aos doentes por
via da covid-19 e, consequentemente, ao tema da limitação do acompanhamento aos
outros doentes e aos familiares no momento da perda.
Considerando a delicadeza
da questão, esclarece que “as visitas estão
limitadas”, mas “não estão proibidas”, sendo que “a comunicação social tem dito
o que lhe é pedido para dizer”. Assim, regra geral, “os doentes não devem ser
visitados” por via do risco de contágio. Porém, “quando o doente está internado
há um tempo demasiado longo e isso pode trazer para o próprio doente uma carga
psicológica muito grande que o diminua – e os profissionais estão sempre
atentos a isso – claro que as visitas são permitidas”. Obviamente não pode vir
a família toda, mas uma pessoa de cada vez. E, tendo ouvido dizer, desde o início, que não havia
visitas às pessoas covid-19 e que morriam sozinhas, o capelão garante que “isso
não é verdade” no Hospital de São João. Mais diz que assiste “todos os dias ao
chamamento dos familiares para se apresentarem nas enfermarias onde estão esses
doentes para que as famílias se possam despedir e estabelecer comunicação,
quando há essa possibilidade”. Não podem ser diárias essas visitas nem podem ser
“por um tempo muito alargado”, mas acontecem. Não há um acompanhamento das
famílias aos seus familiares como dantes, mas “existe um acompanhamento e a
visita”.
Advertindo que isso postula especial sensibilidade do profissional de saúde
para saber o momento em que o doente está a precisar da visita e sem que esbarre
na azáfama do seu trabalho diário que é de cuidar da saúde, o Padre Teixeira afirma
que, antes de mais, “junto dos doentes estão os profissionais” e são eles quem melhor
conhece o seu estado de espírito e de saúde. Ora, juntando a sensibilidade de
cada um, consegue-se “entre todos avaliar essa situação”. E, não sendo parco em
elogios ao pessoal que trabalha naquele centro hospitalar, discorre com justeza:
“Temos um corpo de profissionais de
altíssimo calibre! São profissionais inteiros, que não usam apenas a sua arte
da medicina, da enfermagem, do auxílio que é preciso nas artes médicas e
enfermagem, mas procuram pôr a sua sensibilidade pessoal. Nós temos pessoas que
são muito bem formadas, em todas as áreas. A área da humanidade, o que a pessoa
pode fazer em prol do próximo, está presente em quase todos os profissionais da
nossa casa: a sensibilidade para o cuidado generoso e direto do próximo está
presente em quase todos os profissionais da nossa casa.”.
E afirma categoricamente que, nos 8 mil profissionais que ali trabalham, a
que se vão juntando alguns de novo, nomeadamente médicos, a sensibilidade que manifestam
“é o garante para que possam, no momento certo, fazer que aconteça a visita e a
pessoa não se sinta diminuída e a visita possa reabilitá-la”.
Contrapondo o seu ponto de
vista à recente afirmação da Ministra da Saúde de que “a situação é grave nos
cuidados intensivos e que dezembro vai ser difícil”, assegura que todos os profissionais
do Hospital de São João têm, para lá
do cansaço, “a capacidade de renovação, de dar mais um pouco, de estar
inteiramente ao serviço mesmo para lá dos seus interesses e necessidades
pessoais”. E, em jeito de testemunho pessoal, confessa que tem verificado, ao
logo destes anos, que alguns profissionais, mesmo já em estado de cansaço
notório, “conseguem ainda dar mais um turno”, porque um colega teve de assistir
a um familiar, ficou infetado, ficou doente; e conseguem, contra toda a
esperança, “atender mais um pouco”.
Afasta liminarmente a ideia de que, por ser o capelão, esteja a “tentar
meter alguma água na fervura” e assegura que está a dizer aquilo que vê, o que “é
uma dedicação extrema”.
Mais entende que, vindo daqui a pouco a ocorrer mais situações, “o
hospital, até na sua estrutura, na sua administração e gestão humana, vai
conseguir abrir portas e janelas para que se possa atender a todas as pessoas”.
Admite que “a casa está preenchida e dificilmente nós encontramos uma cama
vazia neste período”, mas contrapõe que “as pessoas que estão a recorrer ao Hospital
de São João nunca são mandadas embora”.
Em abono do que assegura, evoca a experiência do passado:
“Até ao dia de hoje, nunca aconteceu isso e,
portanto, há sempre mais um espaço e eu tenho assistido a que o hospital
procura sempre alargar os espaços de cuidados intensivos e outros cuidados e
com esse alargamento vai conseguindo acolher a todas as pessoas”.
Atreve-se a comparar a situação daquele centro hospitalar com a mesa de
Deus: cabe sempre mais um.
Interpelado sobre a transversalidade do abandono de doentes em contexto
hospitalar e a pressão que aumenta nos hospitais por causa da
necessidade de todas as camas, responde sem que persistam dúvidas sobre os
factos, ainda que não se fique a perceber o modo como se encontram as soluções,
a não o ser o exemplo que deu do recurso ao Centro de Reabilitação do Polo de
Valongo, polo que integra o Centro Hospitalar Universitário de São João. Diz que não faz parte da assistência social do hospital, mas que se apercebe
das soluções que se vão encontrando e concretizando. Assim, tem visto que às
pessoas que dizem que são abandonadas – colocadas no hospital e esquecidas pela
família – o hospital tem dado resposta a todas, de modo que, até agora, “ninguém
foi posto à porta de casa ou na rua, porque sempre foi encontrada uma solução
para aquelas pessoas que estão abandonadas pela própria família”. E crê que “isso será sempre uma prioridade
do hospital”.
Não escamoteia os casos dos
doentes que estão demasiado tempo no hospital abandonados pelas famílias,
referindo que já
acompanhou vários que estiveram nessa situação. E aponta dois tipos de casos:
as pessoas deixadas no hospital, que ficam muito tristes porque o filho, o neto
ou a neta nunca mais quiseram saber delas; e as pessoas – e são-no em maior
número – que, depois de cuidadas da doença, querem ficar no hospital, por lhes
custar “sair daquela enfermaria” ou “sair do convívio com aqueles
profissionais, com quem estiveram durante tanto tempo”.
E anota que os casos de sério abandono já o eram antes de as pessoas virem
para o hospital, ao passo que no hospital se sentem acolhidas, com refeições a
horas certas e banho todos os dias, assim como algum, mimo às vezes…, em ambiente
de cuidado familiar.
Por fim, o sacerdote, porque
a entrevista viria a lume no 1.º domingo do Advento, é questionado sobre a preparação
do Natal face à incerteza do momento. A isto responde que “o Natal existe já há 2000 anos” e que, sendo o nascimento de
Jesus também para hoje, nós somos, no dizer do Cardeal Tolentino Mendonça, “a
manjedoura onde Jesus deve nascer”. Assim, “o Natal não é”, como se diz, “quando
um homem quiser”, mas “quando a manjedoura estiver preparada” – manjedoura que
é a nossa vida, o nosso coração, o centro da nossa existência.
A pandemia leva a muitas restrições, que não devem retirar-nos do sentido
do verdadeiro Natal.
É certo que o convívio será diminuído mercê das regras sanitárias propostas
pela DGS, mas “o verdadeiro Natal nunca nos será retirado”, só dependendo de
cada um saber e quer trilhar o caminho, pelo que tem de “ficar na escuta e à
espera” para que “a manjedoura da sua própria vida possa devidamente ser
habitada”, mas não por bens materiais, por coisas que nos afagam a sede de bens
materiais, mas por bens “que nos preenchem a partir de dentro para conseguirmos
ser verdadeiros filhos de Deus” numa escuta permanente do que “Deus tem para
nos dizer”.
***
Haja quem diga bem dos hospitais! Faça-se e celebre-se o verdadeiro Natal!
2020.11.30 –
Louro de Carvalho
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