segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Profissionais sensíveis, que se dedicam aos doentes, bom augúrio de Natal

 

É o positivo toque que Paulo Teixeira, capelão do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, uma das unidades de saúde mais pressionadas pela covid-19 em Portugal, releva em entrevista à Renascença e à Ecclesia, publicada a 29 de novembro.

O sacerdote, que diz assistir todos os dias ao chamamento de familiares para que se possam despedir dos doentes, faz duas pertinentes asserções: ninguém morre sozinho no hospital e “ninguém foi posto à porta de casa ou na rua” por falta de camas na sequência da pandemia, porquanto o hospital “sempre foi encontrando uma solução para aquelas pessoas que estão abandonadas pela própria família”.

Questionado se a pandemia o obrigou a repartição de atenções mais equilibrada entre doentes e profissionais de saúde, assegurou que, embora o ritmo seja “o de sempre”, a pandemia levou a “uma atenção redobrada”, pela condição de todos estarmos sujeitos à contração de covid-19 e de, consequentemente, sermos seus transmissores. Não obstante, ainda que com redobrados cuidados, a preocupação no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa no Hospital acaba por ser a mesma, sem diferença significativa no número de acompanhamentos e pedidos, todos os dias, da parte de doentes e profissionais.

É verdade que, pela grande pressão da pandemia, “algumas pessoas não têm o à-vontade para pedir a nossa intervenção”, até por estarem assoberbadas com os problemas. Com efeito, a covid-19 cria-nos preocupação, visto que ecoa na comunicação social ficando todos a saber o que pode provocar. Assim, o ambiente de receio leva a que profissionais e doentes internados nem sequer equacionem a possibilidade de pedir o Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa.

O entrevistado confessa não saber dar resposta completa à pergunta que lhe fizeram quanto à perceção da importância da dimensão espiritual e religiosa neste contexto de calamidade, por não sabermos “em que momento da pandemia estamos”. Porém, revela que o seu trabalho tem agora “um maior número de horas”, não por haver descoordenação, que não há, mas por haver “uma maior carga de trabalhos”, já que “a procura que as pessoas fazem deste Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa não é, muitas vezes, nos horários habituais, como eram anteriores à pandemia”, mas num horário “mais de acordo com as necessidades que surgem naquele momento”. Efetivamente, tendo os profissionais “uma carga de trabalho maior”, “não podem pedir ajuda e achar que precisam de ser acompanhados”, bem como os doentes ao estarem envolvidos por cuidados necessariamente mais assíduos.

Sobre um eventual prejuízo da proximidade e afeto com os doentes, mercê do risco de infeção, o Padre Teixeira frisa que agora os afetos, no ambiente hospitalar, “são muito provocados pelo olhar”, sendo que, “a certa altura, já não nos lembramos da parte de baixo do rosto dos profissionais e dos doentes”. E explicita:

Confesso em público que, de vez em quando, já me custa recordar a parte de baixo do rosto das pessoas. O que eu fixo, trabalho e me dá alento para fazer o trabalho todos os dias são os olhos das pessoas. Pelo olhar e a forma como as pessoas nos olham e nos cumprimentam com os olhos…”.

Confrontado com a asserção de que “os olhos não mentem”, confirma e reconhece que, embora haja “mentirosos compulsivos”, não há ninguém que consiga entrar por esse caminho na questão do olhar e da alma, pelo que “o olhar é o que mais nos prende no contacto e na relação direta”. De facto, não há máscaras para os olhos e “temos esse canal sempre aberto”. Por isso, há que olhar e ver – digo eu.

O sacerdote não se furtou a responder a um tema delicado, a limitação (vulgo “proibição”) das visitas aos doentes por via da covid-19 e, consequentemente, ao tema da limitação do acompanhamento aos outros doentes e aos familiares no momento da perda.

Considerando a delicadeza da questão, esclarece que “as visitas estão limitadas”, mas “não estão proibidas”, sendo que “a comunicação social tem dito o que lhe é pedido para dizer”. Assim, regra geral, “os doentes não devem ser visitados” por via do risco de contágio. Porém, “quando o doente está internado há um tempo demasiado longo e isso pode trazer para o próprio doente uma carga psicológica muito grande que o diminua – e os profissionais estão sempre atentos a isso – claro que as visitas são permitidas”. Obviamente não pode vir a família toda, mas uma pessoa de cada vez. E, tendo ouvido dizer, desde o início, que não havia visitas às pessoas covid-19 e que morriam sozinhas, o capelão garante que “isso não é verdade” no Hospital de São João. Mais diz que assiste “todos os dias ao chamamento dos familiares para se apresentarem nas enfermarias onde estão esses doentes para que as famílias se possam despedir e estabelecer comunicação, quando há essa possibilidade”. Não podem ser diárias essas visitas nem podem ser “por um tempo muito alargado”, mas acontecem. Não há um acompanhamento das famílias aos seus familiares como dantes, mas “existe um acompanhamento e a visita”.

Advertindo que isso postula especial sensibilidade do profissional de saúde para saber o momento em que o doente está a precisar da visita e sem que esbarre na azáfama do seu trabalho diário que é de cuidar da saúde, o Padre Teixeira afirma que, antes de mais, “junto dos doentes estão os profissionais” e são eles quem melhor conhece o seu estado de espírito e de saúde. Ora, juntando a sensibilidade de cada um, consegue-se “entre todos avaliar essa situação”. E, não sendo parco em elogios ao pessoal que trabalha naquele centro hospitalar, discorre com justeza:

Temos um corpo de profissionais de altíssimo calibre! São profissionais inteiros, que não usam apenas a sua arte da medicina, da enfermagem, do auxílio que é preciso nas artes médicas e enfermagem, mas procuram pôr a sua sensibilidade pessoal. Nós temos pessoas que são muito bem formadas, em todas as áreas. A área da humanidade, o que a pessoa pode fazer em prol do próximo, está presente em quase todos os profissionais da nossa casa: a sensibilidade para o cuidado generoso e direto do próximo está presente em quase todos os profissionais da nossa casa.”.

E afirma categoricamente que, nos 8 mil profissionais que ali trabalham, a que se vão juntando alguns de novo, nomeadamente médicos, a sensibilidade que manifestam “é o garante para que possam, no momento certo, fazer que aconteça a visita e a pessoa não se sinta diminuída e a visita possa reabilitá-la”.

Contrapondo o seu ponto de vista à recente afirmação da Ministra da Saúde de que “a situação é grave nos cuidados intensivos e que dezembro vai ser difícil”, assegura que todos os profissionais do Hospital de São João têm, para lá do cansaço, “a capacidade de renovação, de dar mais um pouco, de estar inteiramente ao serviço mesmo para lá dos seus interesses e necessidades pessoais”. E, em jeito de testemunho pessoal, confessa que tem verificado, ao logo destes anos, que alguns profissionais, mesmo já em estado de cansaço notório, “conseguem ainda dar mais um turno”, porque um colega teve de assistir a um familiar, ficou infetado, ficou doente; e conseguem, contra toda a esperança, “atender mais um pouco”.

Afasta liminarmente a ideia de que, por ser o capelão, esteja a “tentar meter alguma água na fervura” e assegura que está a dizer aquilo que vê, o que “é uma dedicação extrema”.

Mais entende que, vindo daqui a pouco a ocorrer mais situações, “o hospital, até na sua estrutura, na sua administração e gestão humana, vai conseguir abrir portas e janelas para que se possa atender a todas as pessoas”. Admite que “a casa está preenchida e dificilmente nós encontramos uma cama vazia neste período”, mas contrapõe que “as pessoas que estão a recorrer ao Hospital de São João nunca são mandadas embora”.

Em abono do que assegura, evoca a experiência do passado:

Até ao dia de hoje, nunca aconteceu isso e, portanto, há sempre mais um espaço e eu tenho assistido a que o hospital procura sempre alargar os espaços de cuidados intensivos e outros cuidados e com esse alargamento vai conseguindo acolher a todas as pessoas”.

Atreve-se a comparar a situação daquele centro hospitalar com a mesa de Deus: cabe sempre mais um.  

Interpelado sobre a transversalidade do abandono de doentes em contexto hospitalar e a pressão que aumenta nos hospitais por causa da necessidade de todas as camas, responde sem que persistam dúvidas sobre os factos, ainda que não se fique a perceber o modo como se encontram as soluções, a não o ser o exemplo que deu do recurso ao Centro de Reabilitação do Polo de Valongo, polo que integra o Centro Hospitalar Universitário de São João. Diz que não faz parte da assistência social do hospital, mas que se apercebe das soluções que se vão encontrando e concretizando. Assim, tem visto que às pessoas que dizem que são abandonadas – colocadas no hospital e esquecidas pela família – o hospital tem dado resposta a todas, de modo que, até agora, “ninguém foi posto à porta de casa ou na rua, porque sempre foi encontrada uma solução para aquelas pessoas que estão abandonadas pela própria família”. E crê que isso será sempre uma prioridade do hospital”.

Não escamoteia os casos dos doentes que estão demasiado tempo no hospital abandonados pelas famílias, referindo que já acompanhou vários que estiveram nessa situação. E aponta dois tipos de casos: as pessoas deixadas no hospital, que ficam muito tristes porque o filho, o neto ou a neta nunca mais quiseram saber delas; e as pessoas – e são-no em maior número – que, depois de cuidadas da doença, querem ficar no hospital, por lhes custar “sair daquela enfermaria” ou “sair do convívio com aqueles profissionais, com quem estiveram durante tanto tempo”.

E anota que os casos de sério abandono já o eram antes de as pessoas virem para o hospital, ao passo que no hospital se sentem acolhidas, com refeições a horas certas e banho todos os dias, assim como algum, mimo às vezes…, em ambiente de cuidado familiar.

Por fim, o sacerdote, porque a entrevista viria a lume no 1.º domingo do Advento, é questionado sobre a preparação do Natal face à incerteza do momento. A isto responde que “o Natal existe já há 2000 anos” e que, sendo o nascimento de Jesus também para hoje, nós somos, no dizer do Cardeal Tolentino Mendonça, “a manjedoura onde Jesus deve nascer”. Assim, “o Natal não é”, como se diz, “quando um homem quiser”, mas “quando a manjedoura estiver preparada” – manjedoura que é a nossa vida, o nosso coração, o centro da nossa existência.

A pandemia leva a muitas restrições, que não devem retirar-nos do sentido do verdadeiro Natal.

É certo que o convívio será diminuído mercê das regras sanitárias propostas pela DGS, mas “o verdadeiro Natal nunca nos será retirado”, só dependendo de cada um saber e quer trilhar o caminho, pelo que tem de “ficar na escuta e à espera” para que “a manjedoura da sua própria vida possa devidamente ser habitada”, mas não por bens materiais, por coisas que nos afagam a sede de bens materiais, mas por bens “que nos preenchem a partir de dentro para conseguirmos ser verdadeiros filhos de Deus” numa escuta permanente do que “Deus tem para nos dizer”.

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Haja quem diga bem dos hospitais! Faça-se e celebre-se o verdadeiro Natal!

2020.11.30 – Louro de Carvalho

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