quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A importância e utilidade da saudação e outros gestos de proximidade

 

A pertinência da reflexão em torno da saudação resulta da contraindicação dada pelas autoridades de saúde em praticamente todo o mundo para o não contacto físico, observando o que alguns denominam de distanciamento social, o que, a meu ver, é outra coisa.

Distanciamento social é o que sucede quando pessoas de determinado grupo ou escalão social não podem conviver com os de grupo ou escalão diferente, quando nem todos têm acesso aos mesmos benefícios vitais, culturais e civilizacionais, quando uns têm tudo e outros não têm quase nada ou uns fogem dos outros. Assim, o que recomendam as autoridades de saúde é o distanciamento físico e a não utilização de determinados gestos de proximidade.     

A saudação ou cumprimento é uma forma de proximidade física, quando as pessoas ou grupos estão em presença, ou virtual, quando as pessoas não se encontram presentes. Obviamente nem toda a proximidade, mesmo em presença, implica contacto físico.

Em aldeias recônditas do país profundo, as pessoas saudavam-se vulgarmente perguntando “donde vem”, “donde vens” ou “para onde vai”, “para onde vais”. E a resposta vinha com verdade ou sem ela. Se a pessoa levava um animal ou mais ou um instrumento de trabalho ou de diversão, a pergunta era como segue ou similar: Vai fartá-las? Vai metê-las? Vai botar a água ao lameiro? Vai regar? Vai então animar a festa? E a resposta podia ser: Só as desmentei. Tem que se aproveitar aquele fiozinho de água. É preciso aproveitar os dias em que os louvados nos dão a água. Tem que ser, a malta precisa de se divertir. No início de trabalho coletivo, o chefe tirava o chapéu e bradava: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”. E todos respondiam: “Para sempre seja louvado no Céu e na Terra e sua Mãe, Maria Santíssima!”. Porém, se alguém passava no caminho e avistava uma pessoa ou um grupo a trabalhar, saudava de longe: “Deus o(a) ajude!”. E a resposta era: “Venha(m) com Deus!”.

Não “dar a salvação” era ofensa e só acontecia em pessoas de relações cortadas.

A saudação de “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” em alemão vem em acusativo, a significar que se trata de completo direto. E lembro-me de que os lacónicos “bom dia” ou “bons dias”, “boa tarde” ou “boas tardes” e “boa noite” ou “boas noites” integravam uma frase em que funcionavam como complemento direto do tipo: “Deus Nosso Senhor lhe(s) dê um bom dia!”. Hoje, alguns locutores de rádio e de televisão dizem: “Tenha uma boa noite!”.

No género epistolar, a saudação no início é o vocativo do tipo: caro/a amigo/a; Ilustríssimo/a Senhor/a – outros mais cerimoniosos, dependendo do distanciamento social, e outros mais afetuosos, dependendo do tipo de intimidade entre os correspondentes. No fim, vem a saudação de despedida do tipo: “adeus”, “adeusinho”, “abraço”, “beijinhos”, “até à vista”, até à próxima”, “com os melhores cumprimentos”. Lembro-me do tempo em que certas exposições terminavam com o: “Deus guarde Vossa Excelência”; “A Bem da Nação”; “A Bem da República”.

Os requerimentos, reclamações e pedidos de recurso são iniciados com o vocativo protocolar e terminam com a fórmula PED ou por extenso “Pede e espera deferimento”.

As cartas dos romanos tinham como portada o nome do emitente em nominativo (sujeito), o do destinatário em dativo (complemento indireto) e a sigla S., subentendendo S.P.D. Por exemplo: Cicero Attico S. – ou seja Cicero Attico Salutem Plurimam Dicit: Cícero envia muitas saudações a Ático. E, no fim, a despedida contém, pelo menos, a expressão “cura ut valeas(cuida da tua saúde) ou equivalente. A saúde era a grande preocupação da família.

Os discursos públicos iniciam-se com uma fórmula de saudação as diversas entidades relevantes até ao comum “minhas senhores e meus senhores” e terminam com um lanço de otimismo e o inútil “disse” ou “tenho dito”, sendo que alguns oradores/as preferem dizer “muito obrigado/a”.

Os eclesiásticos costumam dirigir-se ao seu auditório com o “caríssimos irmãos” e, mais recentemente, “irmãos e irmãs”. Sou do tempo do “piedosos cristãos” e de quando um bispo dizia: “Queridos padres e pessoas que me ouvis”. No fim, vem a mensagem de esperança e de recomposição da vida, a que as pessoas respondiam: “Assim seja!”. 

Hoje, em tempo de telegramas, e-mails, SMS, muitos respeitam ainda os termos da mensagem epistolar; outros esquecem-na e usam expressões inconvenientes. Porém, nas mensagens oficiais – políticas, sociais ou religiosas – o cuidado com os destinatários é geralmente bem tratado.  

Não posso deixar de recordar que os digladiadores romanos, depois de entrarem na arena, voltavam-se a par para a tribuna onde pontificava o Imperador e saudavam-no: “Ave (ou “Salve”), Caesar, victor, morituri te salutant(Avé ou Salve, César, vencedor, os que vão morrer saúdam-te). Habitualmente, os lutadores no circo morriam ambos.

Os romanos saudavam, à chegada, com o imperativo “ave” ou “aveto(para uma pessoa) e “avete(para várias) e “salve” ou “salveto(para uma pessoa) e “salvete(para várias), dos verbos “avere(passar bem, estar de saúde, de “aveo”: desejo muito, desejo ardentemente) e “salveo(estou salvo, estou são, estou de boa saúde, passo bem), respetivamente. “Salutare(saudar, salvar) é cognata de “salus, salutis(saúde e salvação). À despedida, diziam “vale” ou “valeto(para uma pessoa) e “valete” (para várias), do verbo “valeo(sou forte, tenho saúde, passo bem). Os gregos, tanto à chegada como à despedida, diziam “khaîre” ou ““khaírete(alegra-te, alegrai-vos), do verbo “khairô (alegro-me, regozijo-me). Os judeus diziam “shalom(A paz).

É de relevar que a Bíblia relata cenários em que relevam as saudações. A título de exemplo:

O anjo Gabriel saudou Zacarias com o “Não temas(Lc 1,13) e saudou Maria como a “Ave, Cheia de Graça(Lc 1,28); Maria saudou Isabel (Lc 1,40); Jesus Ressuscitado saudou as mulheres com o “khaírete”, Alegrai-vos (Mt 28,9), Maria Madalena com o “Mulher, porque choras?” e “Maria(Jo 20,15.16) e os discípulos com “A paz convosco(Lc 24,36; Jo 20,19.21.27). Paulo saudava, no início das cartas, com o binómio “kháris kaì eirênê”, graça e paz (vg: Rm 1,7; 1Cor 1,3; 2Cor 1,2; Gl 1,3…); e, no fim, com “hê kháris”, a graça (vg: Rm 16,20; Rm 16,23.24; Gl 6,18…).

Assim, na liturgia, há saudações como “Dominus vobiscum(O Senhor convosco), “Pax vobis(A vós a paz), “Pax Domini sit sempre vobiscum(A paz do Senhor sempre convosco), a que se respondia com o “Et cum spiritu tuo(E com o teu espírito). E atualmente usa-se também, no início da Missa, a saudação: “Gratia Domini nostri Iesu Christi, et caritas Dei, et communicatio Sancti Spiritus sit cum omnibus vobis”, A Graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o Amor do Pai e a Comunhão do Espírito Santo estejam convosco (parte final de 2Cor), ou “Gratia et pax a Deo patre nostro et Domino Iesu Christo sit cum omnibus vobis”, A graça e paz de Deus Nosso Pai e de Jesus Cristo Nosso Senhor estejam convosco (normal no início da cartas paulinas), sendo que, em latim, se responde na forma habitual e, em português, “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo”. No fim, “Ite, missa est”, Ide em paz e o Senhor vos acompanhe, a que se responde “Deo gratias”, Graças a Deus.

Paulo junta na sua fórmula o elemento grego, graça ou favor, alegria, com o hebraico, paz. Os sacerdotes hoje, além da fórmula ritual, usam as de “bom dia”, boa tarde”, “boa noite”.    

***

Nem só de palavras se faz a saudação como tratamento afetuoso ou de reverência e respeito, cortesia e consideração. Acompanha-a um gesto corporal (aperto de mão, beijo, abraço, simples toque, inclinação, pôr-se de pé, ajoelhar), fisionómico (sorriso, olhar…). Andava-se pela esquerda. Gregos e romanos levantam as mãos direitas desarmadas, descobriam a cabeça e davam o aperto de mão.

Porém, os gestos de cumprimento variam conforme a cultura e a situação. No Ocidente e na maior parte do mundo, entre homens, costuma dar-se o aperto de mão (direita). Utiliza-se o abraço entre homens, homens e mulheres e entre mulheres que já são amigos/as e que já se conhecem há algum tempo. Utiliza-se um, dois ou até três beijos no rosto entre homens e mulheres, e entre mulheres, que já são colegas ou amigos/as há algum tempo. Porém, entre homens e mulheres, e entre mulheres que não têm certa intimidade, também se utiliza o aperto de mão. Diz-se adeus, muitas vezes levantando e agitando a mão com ou sem lencinho.

Em alguns países da Ásia, cumprimenta-se unindo as próprias mãos. No Japão as saudações dão-se curvando a coluna e os apertos de mão são comummente feitos em conjunto com a forma tradicional de saudação. No Tibete mostra-se a língua; na Nova Zelândia pressiona-se o nariz e a testa ao mesmo tempo; na Índia e na Tailândia, não se aperta a mão, mas saúda-se juntando as mãos à altura do peito, gesto que significa “eu faço uma vénia perante o divino que há em ti”.

Na Groelândia encosta-se só o nariz; na Holanda dão-se três beijinhos; na Alemanha e na Áustria, nada de beijinhos, só um aperto de mão; para os russos, beijar na boca já foi tradição e, embora alguns o façam, o mais comum é beijar as bochechas e dar aquele abraço apertado, o “abraço de urso”; entre árabes, o cumprimento normal entre dois homens amigos é a troca de beijos nas faces; na Itália, França e na Argentina, é comum o beijo no rosto entre homens familiares e amigos; e militares, fardados e cabeça coberta põem-se em sentido e fazem continência estendendo a mão (palma paralela ao solo) na testa com o antebraço a fazer ângulo agudo com o braço. A saudação romana era de mão aberta e braço estendido à altura do ombro.

Para o dia inteiro é: Bom dia, normalmente pela manhã (mas serve para o dia inteiro); Boa tarde, pela tarde; e Boa noite, pela noite. A língua portuguesa também incorporou durante o século XX o cumprimento em italiano ciao, que ao decorrer do século se tornou palavra para despedida, e foi dicionarizado como tchau. Entre os cristãos evangélicos (e não só), e cumprimenta-se dizendo: A paz do Senhor. Porém, palavras e gestos são importantes. Cristo ouvia, fazia gestos e pregava ou curava. O mesmo faziam os apóstolos. Bispos, sacerdotes e diáconos semiabrem os braços a rezar, impõem as mãos, abençoam fazendo o sinal da cruz sobre as pessoas; os fiéis põem as mãos, fazem o sinal da cruz, benzendo-se e persignando-se, genufletem, ajoelham, inclinam-se… Leiloeiros e juízes batem com o martelo, médicos (e outros profissionais de saúde) fazem palpação, auscultam, põem o termómetro, avaliam a tensão arterial, fazem vários toques (olhos, ouvidos…) e examinam de várias formas com vista ao diagnóstico.

Com a pandemia, tudo foi abolido ou minimizado: beijos, abraços, toques, apertos de mão. Mal se toca nas crianças. Nas missas nem a saudação da paz se faz verbalmente, nem com o olhar ou pondo a mão no nosso coração a exprimir cordialidade (afeto de coração, do latim “cor, cordis”: coração), como sugeriu o Diretor-Geral da OMS. Estupidamente, a meu ver, inventou-se o cumprimento com o cotovelo, para não falar do cumprimento com os pés, que alguns ensaiaram. Mesmo os atos simbólicos perderam o aperto de mão, provavelmente por falta de gel alcoólico!

Importantes são os gestos e alguns podiam ser usados algumas vezes com as devidas cautelas.

2020.11.11 – Louro de Carvalho

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