domingo, 1 de novembro de 2020

A Solenidade de Todos os Santos ou a mais católica das festas

 

Celebrar a memória dum santo ou duma santa e mesmo de vários santos e santas não é coisa pouca, uma vez que se trata de louvar a Deus através daqueles que O conheceram, amaram, seguiram e serviram de modo eminente. Porém, celebrar numa única solenidade todos os santos e santas, a que naturalmente se acopla a Comemoração de todos os Fiéis Defuntos, é a expressão máxima e intensa da vera catolicidade, pois festejamos toda a Igreja que peregrina na terra militando pela dilatação do Reino de Deus, a Igreja triunfante – a dos santos e santas que gozam da visão beatífica de filhos de Deus – e a Igreja daqueles que ainda precisam de purificação.

Na totalidade ecuménica da Igreja, revemos as virtudes dos anjos e demais espíritos celestes, patriarcas, profetas, apóstolos, evangelistas, mártires, pastores, eremitas, monges, doutores, confessores, abades e abadessas, virgens e viúvas, os santos e santas da porta, as almas discretas de que ninguém registou ação ou virtude, em suma, todos os amigos e amigas de Deus.

A santidade não é monopólio de bispos, padres e freiras ou outros eleitos, nem é apanágio exclusivo dos que passaram pelo seletivo e oneroso processo de beatificação e canonização, mas é o estatuto de todos e todas aqueles e aquelas que, fiéis à vocação batismal, aceitaram lavar as suas túnicas e branqueá-las no sangue do Cordeiro (cf Ap 7,14). Dito de outro modo, santos são aqueles e aquelas que perceberam e aceitaram a vocação à felicidade pelos modos propostos por Jesus Cristo, inversos aos badalados pelo espírito mundanal, que provoca com as suas seduções.

Com efeito, felizes (makárioi / beati) não são os ricos ou os pobres que desejam ser ricos a todo o custo, mas os pobres em espírito (ptôchoì tôi pneúmati), porque deles é o reino dos céus; os aflitos (penthoûntes), porque serão consolados; os mansos, (praeîs), porque herdarão a terra; os que têm fome e sede de justiça (peinôntes kaì dipsôntes tên diakaiosûnên), porque serão saciados; os misericordiosos (eleêmones), porque alcançarão misericórdia (eleêthêsontai); os puros de coração (kátharoì têi kardíai), porque verão a Deus; os fazedores da paz (eirênopoioí), porque serão chamados filhos de Deus (uioì Theoû); os perseguidos por causa da justiça (dediôgménoi), porque deles é o reino dos céus; e, sobretudo, os discípulos, quando os ultrajarem e perseguirem, e, mentindo, disserem contra eles toda a espécie de mal “por causa de mim” (éneken emoû) (cf Mt 5,3-11).

Na mentalidade e língua hebraicas, “felizes” diz-se ’ashrê, derivado do verbo ’ashar, que significa “pôr-se a caminho”. Assim, os bem-aventurados são encarados no Evangelho como pioneiros, isto é, os que, pondo-se a caminho, abrem caminhos novos e bons e de vida nova e boa para o mundo. E foram e continuam a ser os Santos e os Pobres quem verdadeiramente abre caminhos novos neste mundo violento e impante de poder, dormente e anestesiado.

Este é, pois, o caminho das bem-aventuranças, felicidades ou felicitações evangélicas, que revelam a realidade misteriosa da vida em Deus, iniciada no Batismo. Para o mundo, o que os servidores de Deus sofrem são formas de morte: ser pobre, suportar as provas ou privações de justiça, ser perseguido, ser partidário da paz, reconciliação e misericórdia, num ambiente de violência e de lucro. Tudo isso aparece como não rentável, votado ao fracasso, à morte. Porém, Cristo proclama felizes todos os seus amigos, que o mundo despreza e considera como mortos, consola-os, alimenta-os, chama-os filhos de Deus, introdu-los no Reino e na Terra Prometida.

Assim, esta Solenidade abre-nos o espírito e o coração à força da Ressurreição, pois o que se passou em Jesus realiza-se também nos seus bem-amados, os nossos antepassados na fé, e diz-nos igualmente respeito hoje: sob as folhas mortas, sob a pedra do túmulo, a vida continua, misteriosa, para se revelar no Grande Dia, quando chegar o fim dos tempos. Para Jesus, foi o terceiro dia; para os seus amigos, o terceiro dia será mais tarde, depois de muitos dias destes.

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Dom António Couto, Bispo de Lamego, articula (vd Jornal da Madeira, de 1 de novembro) o Dia de Todos os Santos com Deus, que, sendo Três vezes Santo, é a Santidade ou, como diz a Liturgia, é a fonte de toda a santidade (vd Oração Eucarística II). Ora, como ensina o académico e prelado, Santo, na língua hebraica, diz-se qadôsh, cujo significado mais é “separado”. Não separado, por certo, da criação, “pois o Deus da Bíblia olha para ela e por ela com beleza e bondade”; e não de nós, por certo, pois “o Deus da Bíblia bem vê e vê bem os seus filhos”, ouve-lhes a voz, conhece-lhes as alegrias e tristezas, desce ao seu nível e debruça-se sobre eles com carinho. O Deus Santo é separado, mas de Si mesmo, ou seja, não agarrado ao seu mundo divino e dourado para o defender ciosamente (Fl 2,6). Ao invés, Deus sai de Si por amor, para vir ao nosso encontro, como se vê em toda a Escritura e como Paulo sintetiza, na Carta aos Filipenses e na 2.ª Carta aos Coríntios, ao falar de Jesus Cristo que “se esvaziou (ekénôsen) a Si mesmo, tomando a forma de servo” (morphên doúlou) (Fl 2,7) e que, “sendo rico (ploúsios), Se fez pobre (eptôkheusen) por causa de nós, para nos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9).

Hoje, além de contemplarmos a vida dos Santos canonizados por força do martírio, da heroicidade da virtude ou da entrega/oferta da vida, pensamos na vida de tantos outros irmãos e irmãs, “de extrema dedicação, simplicidade e alegria, não oficialmente canonizados”, e também Santos, pois “dão diariamente a sua vida pelos outros”, desfazendo-se ou separando-se dos seus projetos, gostos, família, amigos, coisas, e entregando-se de alma e coração aos irmãos.

Só o Deus que nos faz seus concidadãos e comensais pode e sabe felicitar os pobres. As suas bem-aventuranças ou votos de felicidade atingem todas as pessoas, chegando às periferias existenciais, onde estão os pobres de verdade. E significativamente o Evangelho das Bem-aventuranças (Mt 5,1-12) abre o discurso conhecido com “o sermão da montanha” e, nesta perícopa do Evangelho, soa por nove vezes o termo “felizes”, sendo de registar a centralidade da misericórdia (5.ª bem-aventurança: Mt 5,7). Além disso, a formulação desta bem-aventurança é diferente das demais: enquanto as outras perspetivam uma recompensa imediata ou futura, a misericórdia roda sobre si mesma, retornando, por obra de Deus sobre os misericordiosos que alcançarão misericórdia ou a quem será feita misericórdia. Depois, repetem-se as inclusões “reino dos céus” (1.ª e 8.ª) e “justiça” (4.ª e 8.ª), o que nos leva a reconhecer duas bases gravitacionais de bem-aventurança: a pobreza evangélica; e a bondade do coração.

Que todos somos chamados à santidade é verdade comummente aceite hoje em dia, sobretudo depois da leitura do capítulo V da Constituição Dogmática Lumen Gentium, sobre a Igreja, com a epígrafe “A VOCAÇÃO DE TODOS À SANTIDADE NA IGREJA” e onde se pode ler:

Todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: ‘esta é a vontade de Deus, a vossa santificação’.” (LG 1).

Por seu turno, o Papa São João Paulo II escreveu na Carta Apostólica “Novo Millennio Ineunte (2001), n.º 31, que perguntar a um catecúmeno se quer receber o batismo é o mesmo que perguntar-lhe se quer ser santo, e fazer-lhe esta última pergunta é pô-lo na rota do Sermão da Montanha. E, no mesmo número da Carta, define a santidade como a “medida alta da vida cristã ordinária”. Isto faz-me lembrar o caso em que um sacerdote passionista, na missa de domingo a que presidia, perguntava quem era batizado, sendo que todos levantaram a mão. Porém, quando perguntava quem era santo, ninguém levantou a mão, o que o fez esclarecer que não estava perguntar quem era canonizado ou beatificado, mas quem era santo por vocação, mesmo que se tenha afastado da rota ou falhado no compromisso com a santidade. Com efeito, até Antioquia, os cristãos (só ali é que se começaram a denominar assim) eram conhecidos como os “santos”. Por isso, como diz o Bispo de Lamego, importa que o cristão “ganhe altura” para “encher de um amor maior” os caminhos lamacentos do quotidiano, não para se separar deles.

É de notar que os “pobres em espírito” não são pobres de Espírito Santo nem de inteligência, mas pessoas humildes, no sentido em que não lhes é dada vez e voz ou estão “sem espaço físico, económico, social ou psicológico”. E, sendo os últimos da sociedade, na sua humildade e pobreza, sem almejarem protagonismo, desafiam lancinantemente a sociedade, pois são pobres ao lado de ricos, acomodados e até opressores e repressores; apontam o dedo ao nosso egoísmo, afirmação, instalação e comodidade; e, por ironia, concitam a nossa indiferença, que facilmente se torna supina. Ora, esta situação não nos pode deixar de boa consciência, pois, como ensina a Lumen gentium, n.º 9, “aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo”. E este povo ou Igreja de Deus não são alguns instalados, num círculo restrito, mas a imensa comunhão de irmãos sem quaisquer paredes ou barreiras.

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O trecho do Apocalipse (Ap 7,2-4.9-14), de que acima se fez uma breve referência, tem como lastro o ambiente das primeiras perseguições, que tinham feito destruições cruéis nas comunidades cristãs, ainda jovens. E, para que estas comunidades não corressem o risco de desaparecer por desalento, o profeta cristão traz uma mensagem de esperança na provação. Vem numa linguagem codificada, que evoca Roma (sem a nomear diretamente), a perseguidora dos cristãos, aplicando-lhe o qualificativo de Babilónia, trazendo para a atualidade coeva a malícia da antiga opressora do Povo de Deus.

A revelação proclamada é a da vitória do Cordeiro, o Cordeiro que foi imolado, mas o Cordeiro da Páscoa definitiva, o Ressuscitado, que transformou o caminho de morte em caminho de vida para todos aqueles que O seguem, em particular pelo martírio – que foram e são numerosos – e que, por isso, participam doravante no seu triunfo, numa festa eterna.

A majestosa multidão dos 144.000 – número perfeito e incontável (12 vezes 12 vezes 1000) traduz todos os redimidos, de todas as raças, nações, povos e línguas, a inumerável família dos filhos de Deus, todos com vestes brancas, porque lavadas no sangue do Cordeiro, e que jubilosamente aclamam o Deus Três vezes Santo.

Por fim, a 1.ª Carta de São João (1 Jo 3,1-3) traz-nos a mensagem de esperança, que responde às nossas interrogações sobre o destino dos defuntos (não finados, porque a morte não é o fim, mas defuntos – do verbo latino defungor, cumpro –, porque já desempenharam a sua missão neste mundo).

Que é feito dos nossos antepassados? A resposta é uma dedução lógica: se Deus, no seu imenso amor, faz de nós seus filhos, não nos pode abandonar. Ora, em Jesus, vemos já o futuro a que nos conduz a pertença à família divina: seremos semelhantes a Ele. Na verdade, “somos filhos de Deus e seremos semelhantes a Ele”. E, se ainda não O vemos tal como Ele é na sua totalidade e perfeição, é porque ainda estamos toldados pela imperfeição com que este mundo nos envolve. Porém, o futuro da novidade marcará a diferença: vê-Lo-emos tal como Ele é. E esta esperança purifica-nos, santifica-nos! É a funda catolicidade no seu melhor.

2020.11.01 – Louro de Carvalho

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