sábado, 31 de outubro de 2020

Que os cristãos sejam a alma da Europa

 

O cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, falou por videoconferência, no passado dia 28 deste mês de outubro, à Assembleia Plenária da Comissão das Conferências Episcopais da Comunidade Europeia (COMECE) – que abrange o papel das Igrejas na União e as áreas prioritárias de colaboração com as instituições para dar um verdadeiro testemunho cristão – assinalando o 40.º aniversário da sua fundação e fazendo-se porta-voz da saudação e bênção do Papa, que expressou, para a ocasião, o seu pensamento em carta dirigida ao purpurado.

O discurso de Pietro Parolin, amplo e articulado, insere-se no quadro atual de “tempos incertos e difíceis, em que muitos países foram e continuam a ser duramente fustigados pela pandemia, não se entrevendo ainda como sair desta crise sanitária, económica e social”. E, nesta situação, a Igreja na Europa sente-se chamada a cumprir a sua missão com maior zelo e a dar a sua contribuição, oferecendo uma mensagem de fé, unidade, solidariedade e esperança.

Evocando a origem do processo de integração europeia em 1950, com a declaração de Robert Schuman, e o início dum projeto de unidade supranacional, como garantia de paz e superação dos nacionalismos que tanto dilaceraram a Europa, Parolin enfatiza “o constante apoio da Igreja ao processo de integração”, desde a época de Pio XII até à proclamação por São Paulo VI e São João Paulo II dos Santos Padroeiros da Europa, às visitas ao Parlamento Europeu de São João Paulo II, a 11 de outubro de 1988, e de Francisco, o 25 de novembro de 2014, com o qual a proximidade da Igreja à Europa se intensificou ainda mais, sendo Francisco “o primeiro Pontífice não europeu em mais de mil anos”.

Segundo o cardeal, instituições como a COMECE, cuja fundação data de 3 de março de 1980, são um sinal do “reconhecimento da necessidade de abertura mútua e colaboração fraterna das Igrejas na Europa entre si e com as instituições europeias”, para “promover e proteger o bem comum, à luz da alegria do Evangelho de Cristo”.

Se a abordagem da Santa Sé às instituições europeias é de natureza diplomática, a perspetiva complexa e preciosa do trabalho da COMECE é, segundo Pietro Parolin, “a de acompanhar o processo político da União Europeia em áreas de interesse para a Igreja e de comunicar as opiniões e visões dos Episcopados a respeito do processo de integração europeia”. Nesta ótica, é igualmente importante o papel – papel mais pastoral – do Conselho das Conferências Episcopais Europeias (CCEE), composto pelos Presidentes de todas as Conferências Episcopais da Europa.

O encontro com a Assembleia Plenária é, portanto, uma ocasião importante para falar a toda a Europa sobre os desafios presentes: é a voz da Igreja em que pontifica a do Papa.

E o cardeal Secretário de Estado, reportando-se ao conteúdo da predita carta, afirmou parecer-lhe que a intenção da missiva papal é sobretudo a de “continuar uma reflexão sobre o futuro da Europa”, um continente que lhe está a peito, mormente devido ao papel central que desempenhou na história da humanidade. Como sempre, a reflexão de Francisco não intenta dar indicações pontuais sobre os passos a serem dados, mas sugerir uma “trajetória ideal” e os elementos fundamentais sobre que refletir a fim de que aja quem o puder fazer.

Na perspetiva do Papa não há conceitos abstratos, mas sempre pessoas, centrais no debate sobre a Europa porque, segundo o cardeal, “uma Europa que perdesse de vista a pessoa e a consciência de que todo ser humano está inserido num tecido social só pode ser reduzida a um conjunto de procedimentos burocráticos e estéreis” e isto é ainda mais necessário agora que estamos ante uma pandemia que não conhece fronteiras e procedimentos. E trata-se da “pessoa, não só como sujeito de direito, mas na sua concretude de sentimentos, esperanças e laços”. Como tem dito o Papa, o risco é o conceito de liberdade ser mal compreendido, “interpretando-o como se fosse o dever de estar sozinho, livre de todos os laços, e consequentemente se construir uma sociedade sem sentido de pertença”. E a pandemia convida-nos a mudar os estilos de vida e redescobrir a “identidade comunitária”, a única sobre a qual se poderá construir o futuro, “capaz de superar as divisões e as contradições”, pois ninguém se salva sozinho. E nisto, como observa Parolin, a COMECE, o CCEE, os episcopados e os bispos individualmente considerados têm um papel fundamental a desempenhar: viver e afirmar a comunhão eclesial, a pertença a uma única comunidade, para assegurar que “as diferenças óbvias dos povos não sejam o pretexto para aumentar as divergências, mas sim para reconhecer a riqueza de nosso continente”.

Neste contexto, o testemunho cristão é o “tecido conectivo” da Europa e o Papa traça, na sua carta, as diretrizes deste testemunho através dos seus quatro sonhos, sintetizáveis assim:

Sonho com uma Europa que seja amiga da pessoa e das pessoas (...), que seja uma família e uma comunidade, (...) solidária e generosa, (...) salutarmente laica.”.

E, segundo Pietro Parolin, “uma Europa que é amiga da pessoa e das pessoas é, acima de tudo, uma Europa que ama a pessoa na sua verdade e na sua integridade e, sobretudo, que respeita sua dignidade transcendente”. Ora, isto ajuda, na ótica do purpurado, a interpretar e avaliar as propostas legislativas que estão a ser elaboradas e a orientar os que têm responsabilidades políticas, sendo que “entre estes princípios e valores, é particularmente importante o reconhecimento da dignidade sagrada e inviolável de toda vida humana, desde a sua conceção até ao seu fim natural, ao qual é fundamental associar a defesa e a promoção da família, verdadeira célula da sociedade, fundada na união estável de um homem e de uma mulher.”

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Já na Conferência Internacional “The milestones of the Integral ecology for a human Economy(“Os marcos da ecologia integral para uma economia humana”), promovida em modalidade online pela Fundação Centesimus Annus pro Pontifice, a videomensagem do Secretário de Estado (23 de outubro), considerando a centralidade da pessoa, retoma os temas centrais da “Laudato si´” e articula-os com a Encíclica “Fratelli tutti”. Neste sentido, o convite é para (re)formular um modelo de desenvolvimento e de crescimento que coloque no centro a dignidade humana, o valor justo do trabalho e o papel fundamental da educação para a solidariedade.

Neste ano que Francisco dedicou à oração, reflexão e boas práticas inspiradas na “Laudato si'”, a Fundação Centesimus Annus pro Pontifice organizou a predita conferência internacional em duas sessões sobre um duplo tema: “Governance and Business models(23 de outubro) e “Education and Training(30 de outubro). Ambos os eventos foram agendados em modalidade online, na plataforma Zoom, dada a prolongada emergência da pandemia de covid-19.

O cardeal Parolin iniciou o seu discurso dizendo que é necessário “aproveitar este momento de provação como um momento de decisão”, fazendo eco do convite do Papa Francisco no extraordinário momento de oração universal feito, na fase aguda da pandemia, na Praça São Pedro, na tarde do dia 27 de março. São palavras de uma citação ampla daquele discurso que permaneceu imediatamente memorável e da Encíclica “Fratelli tutti”, em que o Pontífice nos lembrou que “a pandemia nos expôs às nossas falsas seguranças”, forçando-nos a contar com a fragilidade das criaturas finitas, como somos. O desafio, para o Secretário de Estado, “é restaurar o curso do navio da humanidade em direção ao Senhor e aos outros, num espírito de cooperação, na redescoberta da nossa pertença ao mundo como irmãos e irmãs”. O purpurado explicitou que o conceito de ‘ecologia integral’ vai muito além da dimensão meramente ‘ambientalista’, pondo em questão uma visão integral e multifacetada da vida que inspira as melhores políticas, os indicadores, os processos de pesquisa e desenvolvimento e os critérios de avaliação, evitando interpretações distorcidas do que é desenvolvimento e crescimento. E o ponto focal desta abordagem da vida e da gestão de recursos é “a centralidade da pessoa humana e a necessidade de promover uma cultura do cuidado, em oposição à cultura do desperdício. E, como indicou, o descarte pode manifestar-se de muitos modos, como “na obsessão de reduzir os custos do trabalho, perdendo assim o sentido do valor do direito/dever de trabalhar, que representa um elemento essencial para a realização tanto da personalidade de cada pessoa como do dever de solidariedade na nossa comunidade social, que se estende também às gerações futuras”. É uma mudança de direção que deve ser conduzida “alavancando a dimensão ético-social envolvida no conceito de ecologia integral”, como declarou o purpurado, que salientou a importância decisiva da instrução e da formação para acompanhar soluções políticas e técnicas, pois “é através deste tipo de educação e pedagogia” que se torna possível “direcionar tanto a política como a economia para um desenvolvimento humano genuinamente integral e sustentável, em benefício de todos os povos da Terra e especialmente dos mais pobres”.

Na verdade, é preciso garantir a centralidade da pessoa e promover a cultura do cuidado, parâmetros que devem orientar a política e a economia.

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Também o cardeal Peter Turkson, Prefeito do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral, falando no evento do dia 30, da Fundação Centesimus Annus pro Pontifice, recordou a importância da educação, sobretudo nesta época abalada pela pandemia, e disse que, se se quiser mudar o mundo, se deve mudar a instrução e os modelos conexos com a educação.

Desta feita, os trabalhos foram abertos por Anna Maria Tarantola, presidente da Fundação, que citou da encíclica “Laudato si´” que “a humanidade precisa mudar”. E vincou:

Falta a consciência de uma origem comum, de pertencimento mútuo e de um futuro compartilhado por todos. Esta consciência básica permitiria o desenvolvimento de novas convicções, novas atitudes e novos estilos de vida. Emerge assim um grande desafio cultural, espiritual e educacional que envolverá longos processos de regeneração.”.

E, após o pronunciamento de Giovanni Marseguerra, coordenador do comité científico da Fundação, foi dado o uso da palavra ao cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, Prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.

Detendo-se sobre o tema do encontro “Educação e Treinamento”, o prefeito daquele dicastério lembrou um evento ocorrido na República de Gana, seu país natal. Numa aldeia, um professor recebeu um computador e uma impressora, acompanhados por manuais de instruções. O professor explicou aos alunos que um novo dispositivo inclui sempre um livreto explicativo para facilitar seu uso. Os alunos perguntaram ao professor: Se todas as coisas novas requerem um manual, por que é que, quando uma criança nasce não há um livreto com instruções? E o professor replicou: “É por isso que vós estais aqui na escola”.

Assim, o cardeal concluiu que a tarefa da educação é “fornecer um manual de instruções”, fazendo ressaltar que a educação para a ecologia integral é um objetivo fundamental, uma vez que “a educação para a ecologia integral se baseia na necessidade de pensar no bem comum nos seus três componentes essenciais: a vida, a terra e o tríplice relacionamento – com o outro, consigo mesmo e com Deus”.

O debate, moderado por Frei Martijn Cremers, Professor de Finanças na Faculdade de Negócios de Mendoza da Universidade de Notre Dame, contou com a presença de Dom Nunzio Galantino presidente da Administração do Património da Sé Apostólica (APSA), que se deteve em particular sobre duas palavras evocadas na reunião – economia e educação – frisando que “invocar o desenvolvimento humano integral de que fala o Papa Francisco e gastar-se para o promover é muito mais do que um auspício”.

E, considerando que “é um projeto transformador das nossas sociedades que se opõe ao modelo de crescimento linear” e que “envolve a política e a economia”, disse que se trata dum projeto no qual “todos nós devemos investir mais”.

Mais enfatizou que devemos parar de “atribuir uma função educacional ao coronavírus”, pois “não parece que lições particulares tenham sido aprendidas com este drama”. Com efeito, como observou, “o vírus não nos torna melhores.” “O coronavírus trouxe mais falhas nos sistemas educacionais ou acentuou os já existentes, o que torna “muito urgente investir na educação”.

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Esta urgência do investimento na educação e numa educação para a ecologia integral que vise a centralidade da pessoa humana e procure o bem comum em todas as suas vertentes interpela a todos, mas de modo especial os cristãos que, movidos pelo ardor evangélico, têm de se assumir, qual alma do mundo, como força anímica das sociedades em que vivem e trabalham. Não podem refugiar-se supinamente nos contrafortes dos templos, mas devem tentar encontrar Deus onde Ele quer que O encontrem. E o lugar privilegiado desse encontro é o ser humano, sobretudo o mais indefeso, o daqueles por quem Deus ousa tomar partido.

E isto é válido para todo o mundo, mas com especial relevo para a Europa pela sua responsabilidade histórica no concerto das nações e numa certa configuração da Humanidade.

Vamos mesmo investir na educação para um novo mundo, uma nova humanidade, como querem Francisco, Parolin, Tarantola, Marseguerra, Turkson e Galantino?!

2020.10.31 – Louro de Carvalho    

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