Este cardeal
australiano de 79 anos, Prefeito Emérito da Secretaria da Economia (2014-2019), que deixou o Vaticano em julho de 2017 para
enfrentar um processo por abuso de menores, pois Francisco concedera-lhe um
período de licença para se defender, retornou a Roma há alguns dias, depois de,
em abril deste ano, ter sido absolvido por unanimidade das acusações de abuso
contra menores pelo Supremo Tribunal Australiano, mas ficou preso durante 405
dias. E, no dia 12 de outubro, o Papa recebeu-o em audiência e agradeceu-lhe
pelo seu testemunho.
O “Vatican News”, neste dia 12 de outubro, recorda
as fases processuais. Pell foi formalmente acusado em 2017 por abuso contra
menores em duas ocasiões em 1996 e em 1997, quando era Arcebispo de Melbourne.
A primeira audiência do julgamento foi realizada em julho daquele ano; em
dezembro de 2018, foi considerado culpado na 1.ª instância pelo Tribunal de
Melbourne e, condenado a seis anos de prisão. E, confirmada a condenação pelo Tribunal
de Recurso, foi enviado para a prisão em fevereiro de 2019, onde ficou em
isolamento.
O purpurado
declara-se inocente do crime de que é acusado e que define como crime hediondo
e intolerável e contra o qual ele sempre lutou. Os seus advogados sustentam a
irracionalidade da sentença baseada em provas improváveis. E a Santa Sé, em comunicado
da Sala de Imprensa, afirma o máximo respeito pelas autoridades judiciais
australianas, respeito em nome do qual aguarda o resultado do processo de
recurso, lembrando que o Cardeal proclama sua inocência e tem o direito de se
defender até a última instância. Porém, reafirma o forte compromisso da Igreja
na luta contra os abusos. E, para garantir o curso da justiça, o Papa confirma
as medidas cautelares ordenadas pelo Ordinário local contra Pell aquando do seu
retorno à Austrália, ou seja, enquanto se aguarda o apuramento dos factos ao
Cardeal é proibido, como medida cautelar, o exercício público do ministério e o
contacto em qualquer forma e modo com menores de idade. Os bispos australianos
apelam aos católicos, abalados pelo caso, que não tirem conclusões antes de o
processo ser concluído.
Em junho de
2019, no Tribunal de Recursos do Estado de Victoria, começa a segunda fase do
julgamento: a defesa fala duma sentença pouco razoável e de vícios processuais
na 1.ª instância. Em agosto de 2019, com uma maioria de dois juízes contra um,
a condenação é confirmada. O juiz discordante, Mark Weinberg, opõe-se firmemente
à sentença baseado no princípio de que uma pessoa não pode ser condenada se as
provas não demonstrarem a sua culpa além de qualquer dúvida razoável, caso
contrário, corre-se o risco de condenar uma pessoa inocente.
Também
agora, a Santa Sé, em comunicado, reafirma o respeito pelo Judiciário
australiano, mas aguarda novos desenvolvimentos no processo, lembrando que Pell
proclama sua inocência.
Em março de
2020, o caso chega ao Supremo Tribunal Australiano, a última instância. Os
juízes admitem o pedido baseado nas motivações apresentadas pelo juiz Mark
Weinberg. Em 7 de abril de 2020, o Supremo Tribunal, composto por sete juízes,
criticando as inconsistências da decisão do Tribunal de Recursos, absolveu
unanimemente o Cardeal Pell porque há uma possibilidade razoável de o crime não
ter acontecido e, portanto, uma possibilidade significativa de uma pessoa
inocente ser condenada. O cardeal deixa a prisão após de 405 dias de detenção.
Pell afirma
que a grave injustiça que sofreu foi agora reabilitada e que não tem
ressentimento para com a pessoa que o acusou. Sustenta que não se trata dum
referendo sobre a Igreja Católica sem sobre o modo como as autoridades da
Igreja na Austrália lidaram com o crime de pedofilia, mas apenas sobre a
questão de ele ter ou não cometido os crimes terríveis de que era acusado e que
efetivamente não cometeu. Espera que a sua absolvição não acrescente mais dor,
já que “a única base para a cura a longo
prazo é a verdade e a única base para a justiça é a verdade, porque justiça
significa verdade para todos”. E agradece a todos os que rezaram por ele, o
ajudaram e consolaram neste momento difícil. Exprime a sua gratidão aos seus
advogados que trabalharam com firme determinação para fazer prevalecer a
justiça e lançar luz sobre uma escuridão pré-fabricada, demonstrando a verdade.
Poucas horas
após a notícia, Francisco, durante a missa na Casa Santa Marta, ao vivo em streaming por causa da pandemia, sem
mencionar o caso Pell, diz:
“Nestes dias de Quaresma vimos a perseguição que Jesus sofreu e como os
doutores da Lei foram desumanos contra ele: foi julgado sob crueldade, com
crueldade, sendo inocente. Gostaria de rezar hoje por todas as pessoas que
sofrem uma sentença injusta causada pela perseguição.”.
A absolvição
foi recebida com satisfação pela Santa Sé, que – em comunicado – afirma que
sempre confiou na autoridade judicial australiana e que o cardeal Pell, “ao
recorrer a um novo julgamento sempre reiterou sua inocência, esperando que a
verdade fosse apurada”.
***
George Pell, nascido em
Ballarat, a 8 de junho de 1941, é um cardeal australiano da Igreja
Católica, Arcebispo emérito de Sydney e prefeito emérito da Secretaria
para a Economia.
É filho de
George Arthur Pell, administrador da Gordon Gold Mine e membro
nominal da Igreja da Inglaterra, e Margaret Lillian Burke, católica
devota. Fez os primeiros estudos no Convento de Loreto, Ballarat,
onde recebeu a 1.ª Comunhão em 1948. Mais tarde, estudou no Corpus
Christi College, em Werribee. Depois, estudou na Pontifícia
Universidade Urbaniana da Propaganda Fide,
em Roma, onde recebeu o diaconado a 15 de agosto de 1966 e obteve a licenciatura
em Teologia em 1967. A 16 de dezembro de 1966, recebeu a ordenação sacerdotal
na Basílica de São Pedro, das mãos do cardeal Grégoire-Pierre XV
Agagianian, prefeito da então Congregação para a Propagação da Fé, hoje
Congregação para a Evangelização dos Povos. Fez o doutoramento em História
da Igreja em 1971 na Universidade de Oxford (Inglaterra) e obteve o mestrado em educação em 1982 na Universidade
Monash, em Clayton (Austrália).
Trabalhou como
sacerdote na cidade de Ballarat (1976-80), sua terra natal, e na zona rural de Victoria e em
Melbourne, depois; foi Reitor do Corpus Christi College, do
Seminário Provincial de Victoria e Tasmânia, de 1985 a 1987; e presidiu à Caritas
Austrália (parte da Caritas
Internationalis) de 1988 a
1997. Foi nomeado delegado à Convenção Constitucional Australiana em 1998,
recebeu a Medalha do Centenário do Governo australiano em 2003 e foi
nomeado Companheiro da Ordem da Austrália em 2005. Como Arcebispo de
Melbourne, Pell estabeleceu o protocolo “Melbourne
Response” (a Resposta de Melbourne) em 1996
para investigar e tratar queixas de abuso sexual de crianças na Arquidiocese. O
protocolo foi o primeiro do género no mundo, mas alvo de muitas críticas.
Nomeado Bispo
titular de Scala e Auxiliar de Melbourne a 30 de março de 1987, recebeu a ordenação
episcopal a 21 de maio do mesmo ano, na Catedral de São Patrício,
sendo ordenante principal Thomas Francis Little, Arcebispo de Melbourne,
assistido por Ronald Austin Mulkearns, Bispo de Ballarat, e por Joseph Peter
O'Connell, Bispo titular de Sanctus Germanus e Bispo auxiliar de Melbourne. Em
1988, foi eleito Presidente da Caritas Austrália, cargo que exerceu até 1997. Presidiu
à comissão que estabeleceu a nova Universidade Católica Australiana, em
1989, servindo como Pró-Reitor da Fundação da Universidade (1991-1995) e presidente do conselho mantenedor da Universidade,
em 1996. Neste mesmo ano, em 16 de julho, foi promovido a Arcebispo
metropolitano de Melbourne (sendo o seu 7.º Arcebispo). Em 1998, foi lugar-tenente da Ordem
Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém na Austrália. Em 26 de março
de 2001, foi transferido para a Arquidiocese de Sydney (sendo o seu
8.º Arcebispo).
A 21 de
setembro de 2003, São João Paulo II anunciou que o criaria cardeal no Consistório
de 21 de outubro, quando recebeu o barrete cardinalício e o título
de cardeal-presbítero de Santa Maria Senhora de Mazzarello. A 3
de fevereiro de 2007, foi nomeado por Bento XVI membro do Conselho de
Cardeais para o Estudo dos Problemas Organizacionais e Económicos da Santa Sé,
onde ficou até 2014. Em 2013, Francisco nomeou-o membro do Conselho
de Cardeais para ajudar o Santo Padre no governo da Igreja Universal e estudar
um projeto de revisão da Constituição Apostólica Pastor Bonus na Cúria Romana, onde permaneceu até 2018 e, em 2014,
prefeito da recém-criada Secretaria para a Economia, cargo que exerceu até
2019. Tornou-se, pois, Arcebispo emérito de Sydney e um dos assessores mais
próximos do Papa.
Ficou
conhecido na internet por ter debatido com Richard Dawkins no
programa “Q&A” sobre ateísmo,
religião e ciência em 2012.
Autor,
colunista e orador público, Pell tem mantido, desde 1996, elevado perfil
público sobre vasta gama de questões, mantendo ao mesmo tempo uma adesão à
ortodoxia católica. Como cardeal eleitor, participou no conclave de 2005, que elegeu Joseph
Ratzinger como Papa Bento XVI, e no de 2013, que elegeu Jorge Mario
Bergoglio como Papa Francisco.
George Pell
já fora investigado por supostamente ter encobrido casos de pedofilia na
Austrália. Em 1974, admitiu que teria ouvido de um aluno que um padre da escola
local estava a ter um comportamento inadequado, mas o aluno não pediu nenhuma atuação
da sua parte.
Acusado, a
29 de junho de 2017, de crimes de abuso sexual de menores na Austrália, foi
intimado a comparecer no tribunal 1.ª instância de Melbourne, a 18 de julho, e
condenado em dezembro de 2018. Tendo contestado a condenação no Tribunal de
Recurso, foi ouvido em junho e, em agosto de 2019, a suas contestações
judiciais rejeitadas e foi condenado a prisão.
A 6 de abril
de 2020, o Supremo Tribunal da Austrália, por decisão unânime, anulou a
condenação de Pell e ordenou a sua libertação imediata, alegando a
possibilidade significativa de uma pessoa inocente ter sido condenada, “porque
a evidência não estabeleceu culpa pelo padrão de prova necessário”. Entretanto,
continua sob investigação separada da Congregação para a Doutrina da Fé da
Santa Sé (CDF) por estas alegações de abuso.
De acordo com Andrew Bolt, repórter investigativo da
rede Sky News Australia, não
se tratou de mera “tecnicalidade”, mas de as acusações contra o prelado simplesmente
não fazerem sentido. A seu ver, o processo estava cheio de falhas e
preconceitos, entre os quais o papel dúbio exercido pela polícia da província
de Victoria, pelos juízes do Tribunal de Recurso e pela rede de televisão
estatal Australian Broadcasting
Corporation (ABC). Na
primeira entrevista após a sua libertação, Pell declarou que se pergunta se a
suposta vítima teria sido usada e que há uma tentativa sistemática de remover
os fundamentos legais judaico-cristãos. Em liberdade, diz que viverá de modo
discreto só comentando assuntos internacionais.
A 7 de maio
de 2020, surgiu um relatório da Royal
Commissio (por extenso: Royal
Commission into Institutional Responses to Child Sexual Abuse) australiana, já entregue em 2017, mas não
divulgado para não influenciar o julgamento, que conclui que o cardeal tinha
conhecimento de abusos sexuais a crianças por clérigos católicos na Austrália
já nos anos 1970 e nada fez para afastar os acusados. Segundo o inquérito,
havia mais de 4.000 supostas vítimas de pedofilia em instituições religiosas e,
em algumas dioceses católicas, mais de 15% dos padres eram perpetradores.
A In Good Faith Foundation, um
grupo de recuperação de vítimas de abusos, disse que o relatório mostrou que
houve “inúmeras oportunidades” para Pell agir, mas que ele parecia preferir manter
o manto de ignorância a proteger os mais vulneráveis.
Os
relatórios da Royal Commission
envolvem outros membros da hierarquia da Igreja, como o Bispo Ronald
Mulkearns e a organização Christian Brothers (Congregação dos Irmãos Cristãos).
No caso do
Padre Geral Ridsdale, quando Pell exercia em Ballarat, a comissão concluiu
que “em 1973 o Padre Pell fechou os olhos ao facto de Ridsdale levar rapazes
para acampamentos noturnos”. E, no caso do Padre Peter Searson, exercendo
na ocasião Pell em Melbourne, a comissão concluiu que, dada a informação que este
detinha em 1989, “deveria ter aconselhado o Arcebispo a retirar o Padre Searson
e não o fez”. Pell tinha dito à comissão que recebera, em 1989, uma lista de
queixas sobre Searson, que incluía declarações de que assediara crianças, pais
e funcionários da escola, utilizara as casas de banho das crianças sem motivo e
mostrara um cadáver às crianças. A comissão concluiu que “deveria ter sido
óbvio” para Pell que Searson devia ser afastado e rejeitava a declaração de Pell
de que tinha sido enganado em relação ao caso pelos educadores. Pell só agiu
para afastar Searson em 1997.
Ainda no
caso do Padre Wilfred James Baker, exercia nessa altura Pell em Melbourne,
a comissão concluiu que Pell tinha poderes para o afastar em agosto de 1996,
quando soube que ele estava prestes a ser acusado, mas Baker continuou numa
paróquia junto duma escola primária até maio de 1997, mas foi preso em 1999 por
abuso sexual de crianças.
As
conclusões da Royal Commission sobre os casos em Ballarat e
Melbourne são semelhantes. A Comissão pensa que foi exposto “um fracasso
catastrófico” da liderança na Diocese de Ballarat, e, “em última análise, na
estrutura e cultura da Igreja ao longo de décadas para responder eficazmente ao
abuso sexual de crianças pelos seus padres”. Esse fracasso levou ao sofrimento
e, frequentemente, a danos irreparáveis para as crianças, as suas famílias e a
comunidade em geral, danos evitáveis se a Igreja tivesse agido no interesse das
crianças.
Para a
Comissão, o evitar de escândalos, a manutenção da reputação da Igreja e a
lealdade apenas aos padres determinaram a resposta. Invariavelmente, essa ação
consistia em colocar o padre visado por acusações noutra paróquia, a qual
desconhecia as alegações. Muitos registos não foram deliberadamente feitos ou
foram destruídos. Nunca foram feitas denúncias à polícia e as vítimas foram
desprezadas. Existia uma cultura predominante de sigilo. A prioridade era
dada aos interesses da Igreja e não das vítimas.
***
Enfim, o purpurado,
que tem uma notável folha de serviço em prol da Igreja e da cultura, foi
ilibado da perpretação de crimes. Não se livra, no entanto, do labéu do
encobrimento. Não obstante, é claro que, na década de 70 do passado século, nem
havia a perceção da gravidade do encobrimento que há hoje em relação a tais
matérias, nem se pensava na “irrecuperabilidade” deste tipo de prevaricadores,
pelo que a solução mais óbvia era a sua transferência, que hoje se reconhece
consistir na mudança de eventuais vítimas.
Seja como
for, para alguma justiça é saboroso pôr em exposição uma alta figura da Igreja.
2020.10.12 –
Louro de Carvalho
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