A
perícopa evangélica de Mateus assumida como Boa Nova de Jesus Cristo para o
XXVII domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 21,33-43) situa-nos em Jerusalém, após a
entrada triunfal de Jesus na cidade (cf Mt 21,1-11), num crescendo da tensão entre
Jesus e os adversários, em que os líderes judaicos O pressionam, num esquema
que denota um processo organizado, deixando antever a prisão, julgamento e
condenação à morte. E Jesus, plenamente consciente do seu destino, enfrenta os
líderes e condena-lhes implacavelmente a recusa em acolher o Reino.
Esta perícopa integra, em segundo lugar, um complexo de três
parábolas (cf Mt
21,28-32. 33-43; 22,1-14),
que ilustram a recusa de Israel em acolher Jesus enquanto portador eficaz do
plano de salvação que Deus oferece aos homens. Por elas, o Messias insta os opositores
(os líderes religiosos e
civis dos judeus) a
reconhecerem o seu encastelamento num mecanismo de autossuficiência, arrogância
e preconceito, que os impede de abrir o coração aos desafios de Deus. Por outro
lado, é a terceira das parábolas mateanas que têm por tema a vinha.
Trata-se de uma história que se compreende à luz da situação
socioeconómica da Galileia do tempo de Jesus, com a terra nas mãos de
latifundiários que viviam nas cidades. Entre os vários sistemas de exploração
das terras utilizados pelos latifundiários, destaca-se o que não acarretava
muito trabalho para eles, pois consistia em arrendar as várias parcelas em
troca de substancial parte dos produtos recolhidos, geralmente, a camponeses
que tinham perdido as terras devido a pressão fiscal ou a má colheita. Ora, num
quadro em que, descontados os custos de exploração, os impostos pagos e a parte
pertencente ao latifundiário, mal ficavam os arrendatários com o indispensável
para o sustento a próprio e da família, facilmente surgiam, sobretudo em maus anos
agrícolas, conflitos sociais e movimentos campesinos contra os latifundiários
ou contra a excessiva carga fiscal, ditados pela situação de periclitância e
até de miséria.
A parábola coloca-nos no ponto de partida do apólogo da
“vinha” de Is 5,1-7, que Dom António Couto, Bispo de Lamego (vd Jornal da Madeira deste dia 4 de outubro), chama de “soberbo cântico” a dar “o
tom e o aroma da vinha e do amor” a esta dominga. O amigo plantou uma “vinha”,
cercou-a com uma sebe, cavou nela um lagar, levantou uma torre e esperou que
lhe desse uvas. Porém, ela só lhe deu agraços. É um apólogo parecido com o caso
da figueira estéril que Jesus viu à beira do caminho e, tendo fome, avançou
para dela colher figos. Desencantado com a esterilidade da árvore, que só
produzira folhas, amaldiçoou-a (vd Mt 21,18-22),
tal como o senhor da vinha fizera à vinha que não deu uvas.
Jesus
começa por descrever os gestos de
amor embevecido de Deus pela sua vinha, seguindo o apólogo da vinha (Is 5,1-7) e continua introduzindo
novas personagens: os
vinhateiros violentos e assassinos, que são os chefes religiosos e civis (chefes dos
sacerdotes e anciãos do povo, ou chefes dos sacerdotes e fariseus), dado que estas parábolas são dirigidas a eles (Mt 21,23), e são eles que, no final, reagem (Mt
21,45-46). Os servos sucessivamente enviados
por Deus e maltratados pelos homens são os profetas, todos assassinados,
segundo o módulo narrativo mais breve de toda a Escritura (Lc
11,50-51; cf Mt 23,34-35). O Filho,
que é o último enviado e que é igualmente morto pelos vinhateiros, salta à
vista que é Jesus, prolepse do que está para acontecer.
Assim, neste passo evangélico, não se trata de censurar a
falta de correspondência da pessoa ao destino traçado por Deus, que é fundamental,
mas de condenar os que recusam a mensagem de salvação e se rebelam contra os
mensageiros, sobretudo contra o mensageiro maior.
Aqui, o proprietário não explorou diretamente a vinha, mas
confiou-a a uns vinhateiros que deviam dar-lhe, cada ano, determinada percentagem
dos frutos produzidos. Todavia, quando os servos do “senhor” apareceram para
recolher a parte que lhe pertencia, foram maltratados e assassinados pelos
vinhateiros. E, quando o dono da vinha enviou o próprio filho a chamar os
vinhateiros à responsabilidade pelos compromissos, eles assassinaram-no.
Ora, como se disse, a vinha é Israel, o Povo de Deus; o dono
é Deus; os vinhateiros são os líderes judaicos, encarregados de fazer com que o
Povo fosse fiel à Aliança e produzisse as esperadas boas obras, mas que se
estiveram nas tintas para a missão; os servos enviados pelo senhor são os
profetas que os líderes da nação, tantas vezes, perseguiram, apedrejaram e
mataram; e o filho morto “fora da vinha” é Jesus, assassinado fora dos muros de
Jerusalém. E os vinhateiros não só não entregaram ao senhor os frutos que lhe
deviam, como fecharam todas as vias de diálogo e recusaram todas as
possibilidades de entendimento com o senhor: maltrataram e apedrejaram os
servos enviados pelo “senhor” e assassinaram-lhe o filho.
Face a este quadro, Jesus interpela e apanha os ouvintes: “Quando vier o dono da vinha, que fará
àqueles vinhateiros?” (Mt
21,40). E eles respondem
fácil e direto, à semelhança de David, quando ouve a história da ovelhinha do
pobre, roubada e comida à mesa do rico (2 Sm 12,5-6): “Mandará matar, sem piedade,
esses malvados e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entreguem os
frutos a seu tempo” (Mt
21,41).
Na perspetiva dos primeiros catequistas cristãos, a resposta
de Deus à recusa de Israel foi dada em dois movimentos. Primeiro, Deus
ressuscitou o Filho que os vinhateiros mataram, glorificou-o e constituiu-O
“pedra angular” de uma nova construção; depois, Deus retirou a vinha das mãos
desses vinhateiros maus e ingratos e confiou-a a outros vinhateiros – a um povo
que a fizesse produzir bons frutos e entregasse ao Senhor os frutos que Lhe
pertencem.
Ao sublinhar, não Cristo como pedra angular, mas a entrega da
vinha a outros vinhateiros, Mateus tem dupla finalidade. Antes de mais, explica
como é que, na maioria das comunidades cristãs, os judeus (os primeiros trabalhadores da vinha) estavam em minoria: recusaram
oferecer frutos bons ao senhor da vinha, como recusaram as tentativas do Senhor
no sentido da aproximação e do compromisso. Então, o senhor escolheu outros
vinhateiros, sendo que decisivo, para a escolha de Deus, não é que sejam ou não
judeus, mas que estejam dispostos a oferecer ao senhor os frutos que lhe são
devidos e a acolher o Filho que o Senhor enviou ao seu encontro. Depois, Mateus
exorta a comunidade a produzir frutos que agradem ao senhor da vinha. De facto,
no final do séc. I (década
de 80) passara o
entusiasmo inicial e os crentes da comunidade mateana instalaram-se no
cristianismo descafeinado, pelo que o Catequista aproveita o ensejo para
exortar os irmãos a despertarem, a saírem do comodismo, a empenharem-se, a darem
frutos próprios do Reino, a desenvolverem com radicalidade o projeto do Pai
trazido por Jesus.
Segundo Dom
António Couto, a parábola faz passar diante de nós a “história da salvação”,
mostra “o amor permanente e persistente de Deus”, e faz-nos ver “a qualidade do
amor da resposta que somos hoje chamados a dar”, a partir do que “somos
seguramente chamados a tornar a vinha de Deus uma maravilha deliciosa e
apetitosa, jovem, leve e bela”, “como canta um apócrifo de origem judeo-cristã,
de finais do séc. I ou princípios do II d. C., o Apocalipse Siríaco de
Baruc”:
“A terra dará fruto, dez mil por um. Cada
videira terá mil ramos, cada ramo mil cachos, cada cacho mil bagos, cada bago
centenas de litros de vinho!”.
E Jesus
remata a citar do Salmo 118,22: “A pedra
que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular”(Mt 21,42 – Líthon hòn apedokímasan hoi oikodomoûntes,
hoûtos egenêthê eis kephalên gônías). E diz: “O Reino de Deus ser-vos-á tirado, e confiado
a um povo que produza os seus frutos” (Mt 21,43). Então, segundo o narrador, “os chefes dos sacerdotes
e os fariseus, ouvindo estas parábolas, perceberam que Jesus se referia a eles,
e procuravam prendê-lo…” (Mt 21,45-46).
***
A canção do profeta/poeta Isaías é bonita e é sugestivo o seu
tema. O poeta delicia-nos com as aliterações, assonâncias e ritmo, alterna os
sons doces das canções de amor com os ásperos sons das canções de trabalho. Os seus
interlocutores – os habitantes de Jerusalém, os homens de Judá –, atentos e
fascinados, escutam com prazer a descrição das patéticas tentativas do poeta
para conquistar a amada. Ouvem-no falar dos seus trabalhos de construção da
vinha, dos cuidados com ela, das ilusões e sonhos; sorriem da alusão ao lagar (onde será feito o vinho do amor) e à torre (donde o amado vigiará, para que
ninguém entre e usurpe os frutos do seu amor). São complacentes quando, depois de tantos cuidados,
fica à espera dos frutos saborosos que amor cultivou e simpatizam com ele quando,
depois de todo o seu empenho, a vinha, tão amada e acariciada, só lhe oferece
frutos azedos, em vez de uvas doces e saborosas, pelo que partilha com os
interlocutores a sua desilusão. E o cântico tranquilo e sereno transforma-se em
treno a reclamar justiça. Por isso, o profeta interpela diretamente os interlocutores
exigindo-lhes um veredicto. Todos assentem em que o amante, traído e dorido tem
razão e está com o direito de tirar a vedação que protegia a vinha, de não voltar
a cuidar dela, de ordenar às nuvens para que não a fecundem com a chuva.
Aí, o profeta deixa a poesia e lança-lhes a dramática acusação
que vinha preparando:
“A vinha do Senhor do universo é a casa de
Israel e os homens de Judá são a plantação escolhida. Ele esperava retidão e só
há sangue derramado; esperava justiça e só há gritos de horror.” (Is, 5,
7).
Ora, a imagem da vinha aplicada ao Povo de Deus é recorrente no
AT (cf Is 3,14; 27,2-5;
Jr 2,21; 12,10; Ez 17,6; Os 10,1; Sl 80,9-17). Os profetas e catequistas de Israel viram na vinha
um símbolo privilegiado para exprimir a história de amor que Deus quis escrever
com o seu Povo.
Neste apólogo, Deus é o vinhateiro e Israel é a vinha. Foi
Deus quem trouxe de longe, do Egito, as videiras escolhidas, as plantou na
terra fértil de Canaã, removeu as pedras (os povos que aí habitavam) que podiam estorvar a fecundidade da vinha, cuidou e,
sobretudo, amou a sua vinha. Esperava, pois, que Israel vivesse no direito e na
justiça (“mishpath” e “tsedaqah”) cumprindo fielmente as exigências da
Aliança; esperava uma vida de coerência com a Lei e de respeito pelos direitos
dos mais débeis. Porém, o Povo age em sentido contrário ao que Deus esperava: os poderosos cometem injustiças e
arbitrariedades, os juízes são corruptos e não fazem justiça ao pobre, os
grandes praticam violências e derramam o sangue do inocente, os órfãos e as
viúvas veem espezinhados os seus direitos sem que ninguém os defenda. Ou
seja, só se veem sangue derramado (mispah) e gritos de socorro (tseʽaqah). E o profeta sugere que Deus não
pode pactuar com este sistema preparando-Se para abandonar a vinha ingrata, a
amada infiel.
O mesmo
canto, dorido e belo, perpassa o Salmo 80,9-17, já referido, a cantar a videira
e a história da videira, que simboliza Israel. Contando a história desta
videira, o salmista apresenta uma autobiografia de Israel. Plantada no Egito, donde
Deus a arrancou para a transplantar para outra terra (v. 9), aí lançou raízes, cresceu e atingiu tais dimensões
que a sua folhagem verde cobria todo o mapa de Israel (vv. 11.12). Mas aí conheceu o abandono e foi devastada pelo
javali (símbolo de
impureza pela sua semelhança com o porco). Se, em
Isaías, era Deus que se queixava da vinha que já não respondia ao amor primeiro
de Deus, agora é a vinha que se sente abandonada e chora o estado de desolação
em que se encontra, mas entrecorta o seu lamento com um belo refrão, pedindo a
Deus que se levante e volte atrás, que lhe faça graça e a salve (v.
4.8.15.20).
De Paulo,
entre as palavras de antologia que dirige no trecho da Carta aos Filipenses
4,6-9, assumida como 2.ª Leitura desta Liturgia, destaca-se:
“Tudo o que é verdadeiro e nobre, tudo o que
é justo e puro, tudo o que é amável e de boa reputação, tudo o que é virtude e
digno de louvor é o que deveis ter no pensamento” (Fl 4,8).
E o Apóstolo
apresenta-se como modelo a imitar:
“O que aprendestes, recebestes, ouvistes e
vistes em mim, fazei -o” (Fl 4,9 – hà kaì amáthete kaì parelábete kaì êkoûsate
kaì eídete en emoí, taûta prássete).
Já se sabe
que por trás de Paulo está Cristo, que é a sua vida (cf 1Cor
11,1).
***
Fica patente
que é fácil julgar em abstrato os erros pensando que eles são de outrem, quando
temos dificuldade em os assumir como nossos. Sucedeu com David e com os chefes judaicos,
como sucede connosco: em vez de darmos a Deus o que é de Deus, damo-lo a César
ou arrecadamo-lo para nós, para os parentes e para os amigos de ocasião.
Por outro
lado, tanto é censurável a infidelidade da vinha que não produz os frutos esperados
como a dos vinhateiros que matam os servos que o dono envia e o seu filho, o herdeiro.
E nós, os cristãos, revemo-nos nos dois casos. Como pessoas, somos dádiva de
Deus, pelo que devemos corresponder ao seu amor; e, como discípulos e apóstolos,
somos responsáveis pelos frutos que a vinha produz, devendo entregar a Deus,
dono da vinha, o que Lhe pertence.
Por fim, é
de atentar em que não é só Aquele que Deus enviou por último que é o herdeiro
da vinha. Com Cristo, por Cristo e em Cristo, nós também somos herdeiros,
porque somos irmãos – Filhos no Filho. A vinha é de Deus e nossa. Por isso, o
dono da vinha dizia a cada um dos filhos: “hýpage sêmeron ergázou eis tòn ampelôna” – vai hoje trabalhar para a vinha (Mt 21,28).
Porém, se nós
somos as pedras do edifício espiritual, Cristo é a sua pedra angular a que temos
de nos unir dinamicamente.
2020.10.04 –
Louro de Carvalho
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