domingo, 4 de outubro de 2020

Desvelo de Deus pela sua vinha, escolhos e iniquidade dos vinhateiros

 

A perícopa evangélica de Mateus assumida como Boa Nova de Jesus Cristo para o XXVII domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 21,33-43) situa-nos em Jerusalém, após a entrada triunfal de Jesus na cidade (cf Mt 21,1-11), num crescendo da tensão entre Jesus e os adversários, em que os líderes judaicos O pressionam, num esquema que denota um processo organizado, deixando antever a prisão, julgamento e condenação à morte. E Jesus, plenamente consciente do seu destino, enfrenta os líderes e condena-lhes implacavelmente a recusa em acolher o Reino.

Esta perícopa integra, em segundo lugar, um complexo de três parábolas (cf Mt 21,28-32. 33-43; 22,1-14), que ilustram a recusa de Israel em acolher Jesus enquanto portador eficaz do plano de salvação que Deus oferece aos homens. Por elas, o Messias insta os opositores (os líderes religiosos e civis dos judeus) a reconhecerem o seu encastelamento num mecanismo de autossuficiência, arrogância e preconceito, que os impede de abrir o coração aos desafios de Deus. Por outro lado, é a terceira das parábolas mateanas que têm por tema a vinha.

Trata-se de uma história que se compreende à luz da situação socioeconómica da Galileia do tempo de Jesus, com a terra nas mãos de latifundiários que viviam nas cidades. Entre os vários sistemas de exploração das terras utilizados pelos latifundiários, destaca-se o que não acarretava muito trabalho para eles, pois consistia em arrendar as várias parcelas em troca de substancial parte dos produtos recolhidos, geralmente, a camponeses que tinham perdido as terras devido a pressão fiscal ou a má colheita. Ora, num quadro em que, descontados os custos de exploração, os impostos pagos e a parte pertencente ao latifundiário, mal ficavam os arrendatários com o indispensável para o sustento a próprio e da família, facilmente surgiam, sobretudo em maus anos agrícolas, conflitos sociais e movimentos campesinos contra os latifundiários ou contra a excessiva carga fiscal, ditados pela situação de periclitância e até de miséria.  

A parábola coloca-nos no ponto de partida do apólogo da “vinha” de Is 5,1-7, que Dom António Couto, Bispo de Lamego (vd Jornal da Madeira deste dia 4 de outubro), chama de “soberbo cântico” a dar “o tom e o aroma da vinha e do amor” a esta dominga. O amigo plantou uma “vinha”, cercou-a com uma sebe, cavou nela um lagar, levantou uma torre e esperou que lhe desse uvas. Porém, ela só lhe deu agraços. É um apólogo parecido com o caso da figueira estéril que Jesus viu à beira do caminho e, tendo fome, avançou para dela colher figos. Desencantado com a esterilidade da árvore, que só produzira folhas, amaldiçoou-a (vd Mt 21,18-22), tal como o senhor da vinha fizera à vinha que não deu uvas.

Jesus começa por descrever os gestos de amor embevecido de Deus pela sua vinha, seguindo o apólogo da vinha (Is 5,1-7) e continua introduzindo novas personagens: os vinhateiros violentos e assassinos, que são os chefes religiosos e civis (chefes dos sacerdotes e anciãos do povo, ou chefes dos sacerdotes e fariseus), dado que estas parábolas são dirigidas a eles (Mt 21,23), e são eles que, no final, reagem (Mt 21,45-46). Os servos sucessivamente enviados por Deus e maltratados pelos homens são os profetas, todos assassinados, segundo o módulo narrativo mais breve de toda a Escritura (Lc 11,50-51; cf Mt 23,34-35). O Filho, que é o último enviado e que é igualmente morto pelos vinhateiros, salta à vista que é Jesus, prolepse do que está para acontecer.

Assim, neste passo evangélico, não se trata de censurar a falta de correspondência da pessoa ao destino traçado por Deus, que é fundamental, mas de condenar os que recusam a mensagem de salvação e se rebelam contra os mensageiros, sobretudo contra o mensageiro maior. 

Aqui, o proprietário não explorou diretamente a vinha, mas confiou-a a uns vinhateiros que deviam dar-lhe, cada ano, determinada percentagem dos frutos produzidos. Todavia, quando os servos do “senhor” apareceram para recolher a parte que lhe pertencia, foram maltratados e assassinados pelos vinhateiros. E, quando o dono da vinha enviou o próprio filho a chamar os vinhateiros à responsabilidade pelos compromissos, eles assassinaram-no.

Ora, como se disse, a vinha é Israel, o Povo de Deus; o dono é Deus; os vinhateiros são os líderes judaicos, encarregados de fazer com que o Povo fosse fiel à Aliança e produzisse as esperadas boas obras, mas que se estiveram nas tintas para a missão; os servos enviados pelo senhor são os profetas que os líderes da nação, tantas vezes, perseguiram, apedrejaram e mataram; e o filho morto “fora da vinha” é Jesus, assassinado fora dos muros de Jerusalém. E os vinhateiros não só não entregaram ao senhor os frutos que lhe deviam, como fecharam todas as vias de diálogo e recusaram todas as possibilidades de entendimento com o senhor: maltrataram e apedrejaram os servos enviados pelo “senhor” e assassinaram-lhe o filho.

Face a este quadro, Jesus interpela e apanha os ouvintes: “Quando vier o dono da vinha, que fará àqueles vinhateiros?” (Mt 21,40). E eles respondem fácil e direto, à semelhança de David, quando ouve a história da ovelhinha do pobre, roubada e comida à mesa do rico (2 Sm 12,5-6): “Mandará matar, sem piedade, esses malvados e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entreguem os frutos a seu tempo (Mt 21,41).

Na perspetiva dos primeiros catequistas cristãos, a resposta de Deus à recusa de Israel foi dada em dois movimentos. Primeiro, Deus ressuscitou o Filho que os vinhateiros mataram, glorificou-o e constituiu-O “pedra angular” de uma nova construção; depois, Deus retirou a vinha das mãos desses vinhateiros maus e ingratos e confiou-a a outros vinhateiros – a um povo que a fizesse produzir bons frutos e entregasse ao Senhor os frutos que Lhe pertencem.

Ao sublinhar, não Cristo como pedra angular, mas a entrega da vinha a outros vinhateiros, Mateus tem dupla finalidade. Antes de mais, explica como é que, na maioria das comunidades cristãs, os judeus (os primeiros trabalhadores da vinha) estavam em minoria: recusaram oferecer frutos bons ao senhor da vinha, como recusaram as tentativas do Senhor no sentido da aproximação e do compromisso. Então, o senhor escolheu outros vinhateiros, sendo que decisivo, para a escolha de Deus, não é que sejam ou não judeus, mas que estejam dispostos a oferecer ao senhor os frutos que lhe são devidos e a acolher o Filho que o Senhor enviou ao seu encontro. Depois, Mateus exorta a comunidade a produzir frutos que agradem ao senhor da vinha. De facto, no final do séc. I (década de 80) passara o entusiasmo inicial e os crentes da comunidade mateana instalaram-se no cristianismo descafeinado, pelo que o Catequista aproveita o ensejo para exortar os irmãos a despertarem, a saírem do comodismo, a empenharem-se, a darem frutos próprios do Reino, a desenvolverem com radicalidade o projeto do Pai trazido por Jesus.

Segundo Dom António Couto, a parábola faz passar diante de nós a “história da salvação”, mostra “o amor permanente e persistente de Deus”, e faz-nos ver “a qualidade do amor da resposta que somos hoje chamados a dar”, a partir do que “somos seguramente chamados a tornar a vinha de Deus uma maravilha deliciosa e apetitosa, jovem, leve e bela”, “como canta um apócrifo de origem judeo-cristã, de finais do séc. I ou princípios do II d. C., o Apocalipse Siríaco de Baruc:

A terra dará fruto, dez mil por um. Cada videira terá mil ramos, cada ramo mil cachos, cada cacho mil bagos, cada bago centenas de litros de vinho!”.

E Jesus remata a citar do Salmo 118,22: “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular(Mt 21,42 – Líthon hòn apedokímasan hoi oikodomoûntes, hoûtos egenêthê eis kephalên gônías). E diz: “O Reino de Deus ser-vos-á tirado, e confiado a um povo que produza os seus frutos(Mt 21,43). Então, segundo o narrador, “os chefes dos sacerdotes e os fariseus, ouvindo estas parábolas, perceberam que Jesus se referia a eles, e procuravam prendê-lo…” (Mt 21,45-46).

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A canção do profeta/poeta Isaías é bonita e é sugestivo o seu tema. O poeta delicia-nos com as aliterações, assonâncias e ritmo, alterna os sons doces das canções de amor com os ásperos sons das canções de trabalho. Os seus interlocutores – os habitantes de Jerusalém, os homens de Judá –, atentos e fascinados, escutam com prazer a descrição das patéticas tentativas do poeta para conquistar a amada. Ouvem-no falar dos seus trabalhos de construção da vinha, dos cuidados com ela, das ilusões e sonhos; sorriem da alusão ao lagar (onde será feito o vinho do amor) e à torre (donde o amado vigiará, para que ninguém entre e usurpe os frutos do seu amor). São complacentes quando, depois de tantos cuidados, fica à espera dos frutos saborosos que amor cultivou e simpatizam com ele quando, depois de todo o seu empenho, a vinha, tão amada e acariciada, só lhe oferece frutos azedos, em vez de uvas doces e saborosas, pelo que partilha com os interlocutores a sua desilusão. E o cântico tranquilo e sereno transforma-se em treno a reclamar justiça. Por isso, o profeta interpela diretamente os interlocutores exigindo-lhes um veredicto. Todos assentem em que o amante, traído e dorido tem razão e está com o direito de tirar a vedação que protegia a vinha, de não voltar a cuidar dela, de ordenar às nuvens para que não a fecundem com a chuva.

Aí, o profeta deixa a poesia e lança-lhes a dramática acusação que vinha preparando:

A vinha do Senhor do universo é a casa de Israel e os homens de Judá são a plantação escolhida. Ele esperava retidão e só há sangue derramado; esperava justiça e só há gritos de horror.” (Is, 5, 7).

Ora, a imagem da vinha aplicada ao Povo de Deus é recorrente no AT (cf Is 3,14; 27,2-5; Jr 2,21; 12,10; Ez 17,6; Os 10,1; Sl 80,9-17). Os profetas e catequistas de Israel viram na vinha um símbolo privilegiado para exprimir a história de amor que Deus quis escrever com o seu Povo.

Neste apólogo, Deus é o vinhateiro e Israel é a vinha. Foi Deus quem trouxe de longe, do Egito, as videiras escolhidas, as plantou na terra fértil de Canaã, removeu as pedras (os povos que aí habitavam) que podiam estorvar a fecundidade da vinha, cuidou e, sobretudo, amou a sua vinha. Esperava, pois, que Israel vivesse no direito e na justiça (“mishpath” e “tsedaqah”) cumprindo fielmente as exigências da Aliança; esperava uma vida de coerência com a Lei e de respeito pelos direitos dos mais débeis. Porém, o Povo age em sentido contrário ao que Deus esperava: os poderosos cometem injustiças e arbitrariedades, os juízes são corruptos e não fazem justiça ao pobre, os grandes praticam violências e derramam o sangue do inocente, os órfãos e as viúvas veem espezinhados os seus direitos sem que ninguém os defenda. Ou seja, só se veem sangue derramado (mispah) e gritos de socorro (tseʽaqah). E o profeta sugere que Deus não pode pactuar com este sistema preparando-Se para abandonar a vinha ingrata, a amada infiel.

O mesmo canto, dorido e belo, perpassa o Salmo 80,9-17, já referido, a cantar a videira e a história da videira, que simboliza Israel. Contando a história desta videira, o salmista apresenta uma autobiografia de Israel. Plantada no Egito, donde Deus a arrancou para a transplantar para outra terra (v. 9), aí lançou raízes, cresceu e atingiu tais dimensões que a sua folhagem verde cobria todo o mapa de Israel (vv. 11.12). Mas aí conheceu o abandono e foi devastada pelo javali (símbolo de impureza pela sua semelhança com o porco). Se, em Isaías, era Deus que se queixava da vinha que já não respondia ao amor primeiro de Deus, agora é a vinha que se sente abandonada e chora o estado de desolação em que se encontra, mas entrecorta o seu lamento com um belo refrão, pedindo a Deus que se levante e volte atrás, que lhe faça graça e a salve (v. 4.8.15.20).

De Paulo, entre as palavras de antologia que dirige no trecho da Carta aos Filipenses 4,6-9, assumida como 2.ª Leitura desta Liturgia, destaca-se:

Tudo o que é verdadeiro e nobre, tudo o que é justo e puro, tudo o que é amável e de boa reputação, tudo o que é virtude e digno de louvor é o que deveis ter no pensamento” (Fl 4,8).

E o Apóstolo apresenta-se como modelo a imitar:

O que aprendestes, recebestes, ouvistes e vistes em mim, fazei -o” (Fl 4,9 – hà kaì amáthete kaì parelábete kaì êkoûsate kaì eídete en emoí, taûta prássete).

Já se sabe que por trás de Paulo está Cristo, que é a sua vida (cf 1Cor 11,1).

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Fica patente que é fácil julgar em abstrato os erros pensando que eles são de outrem, quando temos dificuldade em os assumir como nossos. Sucedeu com David e com os chefes judaicos, como sucede connosco: em vez de darmos a Deus o que é de Deus, damo-lo a César ou arrecadamo-lo para nós, para os parentes e para os amigos de ocasião.

Por outro lado, tanto é censurável a infidelidade da vinha que não produz os frutos esperados como a dos vinhateiros que matam os servos que o dono envia e o seu filho, o herdeiro. E nós, os cristãos, revemo-nos nos dois casos. Como pessoas, somos dádiva de Deus, pelo que devemos corresponder ao seu amor; e, como discípulos e apóstolos, somos responsáveis pelos frutos que a vinha produz, devendo entregar a Deus, dono da vinha, o que Lhe pertence.

Por fim, é de atentar em que não é só Aquele que Deus enviou por último que é o herdeiro da vinha. Com Cristo, por Cristo e em Cristo, nós também somos herdeiros, porque somos irmãos – Filhos no Filho. A vinha é de Deus e nossa. Por isso, o dono da vinha dizia a cada um dos filhos: hýpage sêmeron ergázou eis tòn ampelôna – vai hoje trabalhar para a vinha (Mt 21,28).

Porém, se nós somos as pedras do edifício espiritual, Cristo é a sua pedra angular a que temos de nos unir dinamicamente.  

2020.10.04 – Louro de Carvalho

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