Um pontificado
de apenas 8 meses – contados a partir da coroação pontifical a 20 de setembro
de 1276 – acabou de forma trágica, na cidade de Viterbo (que
era, no século XIII, considerada a cidade papal), a 20 de maio de 1277, para João XXI, o único papa português
em pouco mais de dois milénios de vida da Igreja de Jesus Cristo.
Porém, é oportuno esclarecer dois pontos. Por um lado, não se pode falar de dois milénios para Portugal, cuja nacionalidade remonta apenas ao século XII, tendo surgido, no território que hoje integra o nosso país republicano, um outro papa, São Dâmaso, o 37.º Papa da Igreja Católica, nascido na Civitas Igaeditanorum (depois Egitânia, atual Idanha-a-Velha). Por outro lado, como o pontificado se conta a partir da eleição no caso de esta haver recaído num clérigo ornado com o caráter episcopal, João XXI (Iohannes Vicentesimus ou Iohannes Vicesimus Primus), o 187.º Papa da Igreja Católica, teve mais alguns dias de pontificado além dos 8 meses. Não sabemos quantos dias, dadas as divergências da data da eleição entre os cronistas coevos. O anuário pontifício, na Serie dei “Sommi Pontefici Romani” secondo la cronotassi del Liber Pontificalis e delle sue fonti, regista duas datas: 16 de setembro, eleição (a atermo-nos aos cronistas, a data da eleição situa-se ente 8 e 16 de setembro); e 20, coroação. Além disso, refere que o seu nome secular é Pietro di Giuliano ou Pietro Ispano e que o local do seu nascimento é Lisboa.
O Sumo
Pontífice sucumbira vitimado pela derrocada do teto, a 16 de maio, numa zona em
obras no Palácio Pontifício. E a notícia terá corrido veloz pelas ruas de
Viterbo, cidade que naquele tempo era refúgio dos Papas, que fugiam de uma Roma
insegura e insalubre. Revelando várias fraturas, incluindo uma fratura craniana,
morreu passados 4 dias (20 de maio).
***
Dos primeiros
anos da vida de Pedro Julião, mais tarde conhecido como Pedro Hispano antes de
se tornar João XXI, pouco se sabe. Apenas se pode tomar como certeza que nasceu
em Lisboa, algures entre 1205 e 1220, e que era filho de famílias abastadas, o
que lhe permitiu, depois do ensino na escola episcopal da Sé, prosseguir estudos
na Universidade de Paris. A este respeito, Mário Farelo, investigador de
História Medieval, explica:
“Foi certamente devido ao facto de ser oriundo de uma família importante
na sociedade de Lisboa que ele acaba por ter posses para ir para Paris, mas guarda
sempre a âncora em Lisboa. (…) Percebe-se
que ele vai seguir depois uma carreira eclesiástica em Portugal. Faz o seu trajeto
cultural e depois volta. Quando o faz, vem já com conhecimentos importantes, o
que se revela pelo facto de ser designado como ‘mestre’ nos documentos da época.”.
***
Esta importante
figura histórica nasceu em Lisboa,
desconhecida, mas seguramente antes de 1226, filho do médico Julião
Pais Rebolo (Luís Ribeiro Soares defende que possa ter sido filho do
Mestre Julião Pais, chanceler de Dom Sancho I, que foi
identificado como sendo a mesma pessoa) e de sua mulher Mor Mendes. E era irmão de Gil
Julião Rebolo. Usou as Armas dos Rebolo, que são de vermelho, três rebolos de
ouro vazios do campo postos em roquete. A moderna representação da heráldica de
João XXI apresenta escudo esquartelado, que tem o 1.º e 4.º quartéis de
vermelho, carregado com três crescentes de prata, postos em roquete (interpretação errada
das armas dos Rebolo).
Iniciou os estudos
na escola episcopal da catedral lisboeta, tendo passado a estudar na Universidade
de Paris (alguns afirmam
que foi na de Montpellier) com mestres
notáveis, como Santo Alberto Magno, e tendo por condiscípulos Santo
Tomás de Aquino e São Boaventura. Lá estudou medicina e teologia, com especial atenção
a palestras de dialética, lógica e, sobretudo, física e metafísica
aristotélicas. Entre 1246 e 1252 ensinou medicina na Universidade
de Siena, onde escreveu algumas obras, de que ressalta o tratado “Summulæ
Logicales”, manual de
referência de lógica aristotélica durante mais de 300 anos, nas
universidades europeias, com 260 edições na Europa, traduzido para grego
e hebraico.
Testemunho
da sua vasta cultura científica é o “De óculo”, tratado de oftalmologia, com
ampla difusão nas universidades europeias. Quando Miguel Ângelo adoeceu
gravemente dos olhos, devido ao árduo labor da decoração da Capela
Sistina, valeu-se duma receita de Pedro Julião. De sua autoria é o “Thesaurus Pauperum”, que trata de várias
doenças e suas curas, com cerca de cem edições e traduzido para 12 línguas. Já
no âmbito da Teologia, escreveu “Comentários ao pseudoDionísio” e “Scientia libri de
anima” e, ainda, a obra “De tuenda valetudine”, manuscrita em Paris, dedicada
a Branca de Castela, esposa do rei Luís VIII de França e filha de
Afonso IX de Castela.
Quando
regressa a Portugal já “mestre”, Pedro Julião teria granjeado fama, entre
outras áreas do conhecimento, como médico. O “Thesaurus Pauperum” e a “Summulae
Logicales” bastavam para o granjeio da fama. Contudo, Mário Farelo refere
que as investigações têm lançado dúvidas sobre a autoria dessas obras e
explica:
“A
partir do século XVI, assim que víamos uma obra escrita por Pedro Hispano,
associávamos quase automaticamente ao Papa. A partir de estudos aprofundados,
sobretudo do professor José Meirinhos, da Universidade do Porto, hoje sabemos
que na verdade é necessário fazer a distinção entre 5 ou 6 ‘Pedros Hispanos’.
Bastava estar fora de Portugal para ser apelidado de ‘Hispano’, proveniente da Hispânia,
oriundo da Ibéria. Tanto podia ser Castela, Galiza como Portugal. Não temos a
certeza se as obras de caráter científico são dele ou de outro Pedro
Hispano.”.
Não obstante,
as dúvidas não impedem que tenha sido uma das figuras mais relevantes do seu
tempo. Ocupou vários cargos eclesiásticos em Portugal (desde deão
da Sé de Lisboa a Arcebispo de Braga) até ter
sido nomeado para a cúria romana no início dos anos 70 do século XII (era então a
antecâmara para chegar ao cargo máximo na Igreja), onde terá sido médico principal do Papa Gregório X.
A sua
carreira eclesiástica, a par da académica, é notável. Antes de 1261,
quando é eleito deão da Sé de Lisboa, ingressa no sacerdócio. O
rei Afonso III confiou-lhe o priorado da igreja de Santo André (Mafra), em 1263, posto donde chega a cónego e
deão da Sé de Lisboa, tesoureiro-mor da Sé do Porto e Dom Prior
na Colegiada Real de Santa Maia de Guimarães.
Após a morte
de Dom Martinho Geraldes, é nomeado Arcebispo de Braga pelo Papa
Gregório X, em 1273. No ano seguinte, participa no XIV Concílio
ecuménico de Lião e Gregório fá-lo Cardeal-bispo com o título de Tusculum-Frascati,
da diocese suburbicária de Frascati, o que permite ao pontífice contar com
os serviços médicos do sábio português. Regressa à Arquidiocese de Braga onde
permanece até à nomeação do sucessor, Dom Sancho. De volta à corte pontifícia,
Gregório X nomeia-o seu médico principal (arquiathros), em 1275.
É eleito
para o Sumo Pontificado, adotando o nome de João XXI, em conclave realizado
em Viterbo, após a morte de Adriano V (a 18 de agosto de 1276), eleição que decorre num período muito perturbado por
tensões políticas e religiosas e com alguns cardeais a sofrer violências
físicas. O grupo de responsáveis pela escolha do Pontífice não era muito
numeroso. Devido ao falecimento recente de dois cardeais-diáconos, o colégio de
eleitores era constituído por apenas 11 membros, número que ficaria mais
diminuto pelo facto de um deles ter morrido no local onde conclave se ia realizar
e outro ter faltado à chamada por motivos desconhecidos. Restaram, pois, 9 cardeais
para a eleição pontifical, sendo dois cardeais-bispos (um deles
Pedro Julião), 3
cardeais-presbíteros e 4 cardeais diáconos. E a escolha terá tido a mão do
Cardeal Orsini.
Com os Papas
sediados em Viterbo, o ano de 1276 corria agitado. Em pouco mais de meio ano,
três Papas tinham passado pela chefia da Igreja. Adriano V morre apenas um mês
depois de ser eleito e, em agosto, os cardeais escolhem como sucessor o
académico português Pedro Hispano. De acordo com alguns relatos históricos, o
novo Papa estaria mais interessado nas suas investigações científicas e teria
passado a gestão dos assuntos correntes da Igreja ao cardeal Giovanni Orsani, que
tinha ajudado à sua eleição e que viria a ser o Papa Nicolau III. No entanto,
os documentos epocais mostram outra realidade, segundo Mário Farelo, que diz:
“As crónicas posteriores fazem um relato
dele como estando mais interessado nas questões das ciências e das estrelas,
que se fecharia no seu gabinete e não queria saber dos assuntos da Cristandade.
Mas, quando vamos ver o seu bulário, vemos um Pontífice verdadeiramente
preocupado com a sua Igreja, com as relações com a Igreja do Oriente, mas também
com as relações entre as soberanias cristãs, que também precisavam muitas vezes
de um árbitro, de um mediador.”,
Na fidelidade
ao XIV Concílio ecuménico de Lião, manda castigar, em tribunal criado
para o efeito, os que haviam molestado os cardeais presentes no conclave que o
elegera. Embora sem grande sucesso, leva por diante a missão encetada por
Gregório X de reunir a Igreja Grega à do Ocidente. tenta libertar a Terra
Santa, que estava em poder dos turcos, e reconciliar grandes nações europeias,
como França, Germânia e Castela, no espírito da unidade cristã, para o que
envia (sem êxito) legados a Rodolfo de Habsburgo e a Carlos
de Anjou. Acaba com a pressão popular sobre o conclave. E, em Portugal experimenta
divergências de Dom Afonso III, mercê de queixas do clero pelo facto de o
soberano beliscar os direitos da Igreja e do clero.
Dotado de rara
simplicidade, recebe em audiência tanto os ricos como os pobres, o que é motivo
de algumas críticas da parte de quem prezava hipocritamente a dignidade papal. Porém,
o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), na “Divina Comédia”,
coloca no Paraíso a alma de João XXI, entre as que rodeiam a alma de São
Boaventura, apelidando-o de “aquele que brilha em doze livros”, menção clara aos
supostos 12 tratados escritos pelo erudito Pontífice. O rei Afonso X
de Leão e Castela, o Sábio, avô de Dom Dinis de Portugal, elogia-o em
forma de canção no canto XII do “Paraíso”. Mecenas de
artistas e estudantes, é tido na sua época por ‘egrégio varão de letras’, ‘grande
filósofo’, ‘clérigo universal’ e ‘completo cientista físico e naturalista’.
Delega no
Cardeal Orsini os assuntos correntes da Sé Apostólica. E, ao sentir-se
doente, retira-se para a cidade de Viterbo, onde morre, não de doença, mas
de acidente pelo desmoronamento das paredes do seu aposento, estando o palácio
apostólico em obras. É sepultado junto do altar-mor da Catedral de São Lourenço,
naquela cidade. No século XVI, durante os trabalhos de reconstrução do templo,
os seus restos mortais são trasladados para um modesto e ignorado túmulo, mas
nem aqui encontram repouso definitivo. Com o contributo da Câmara Municipal
de Lisboa, por João Soares, então seu presidente, o mausoléu é
colocado, a título definitivo, do lado do Evangelho na Catedral de Viterbo,
a 28 de março de 2000.
***
Viterbo,
também conhecida como “a cidade dos Papas”, ainda hoje guarda várias memórias
da presença de muitos dos sucessores de Pedro. Foi aliás aqui que surgiram os
conclaves. A história é explicada por Domenico, sacristão da Catedral local:
“Durante cerca de três anos, não se decidiam
a eleger o Papa. Então, os cidadãos de Viterbo fecharam-nos à chave. Daí provém
a palavra ‘conclave’. Fecharam à chave a ala onde estavam reunidos,
tiraram-lhes o telhado, reduziram os alimentos e, no final, decidiram-se a
eleger um Papa, também porque tiveram pressões francesas nesse sentido. Desse
conclave saiu o Papa Gregório X.”.
***
A popularidade
de que gozou na medievalidade, prolongada pelo Renascimento, persistindo até
aos dias de hoje, remete para a sua dimensão de intelectual e para os
contributos que lhe são atribuídos no âmbito da história da ciência e história
das ideias, em concreto os estudos que dedicou aos ramos da filosofia e da
medicina. O problema é que a vasta produção bibliográfica, a diferente
natureza dos assuntos abordados e a própria coerência interna dos textos
escritos sob o nome de Pedro Hispano ou que lhe foram creditados, desde o
século XIV, pouco depois da sua morte –, tendo como premissa a vasta ciência do
Papa, assumida pelo próprio e amiúde asseverada em crónicas, contemporâneas e
posteriores –, suscitam várias reservas no que toca à sua atribuição
a uma única personagem histórica. Movendo-se por entre tantas dúvidas, a
crítica textual mais recente parece pouco inclinada a creditar ao Pontífice
todos os tratados que compõem o habitual cânone de manuscritos que lhe são
consagrados. Há inclusivamente especialistas que vão mais longe, sustentando
que muito poucos desses trabalhos devem ser atribuídos a João
XXI, propondo-os como a produção de um ou vários Pedros Hispanos seus
contemporâneos. A polémica não sendo estéril, mas inconclusiva, obriga a
distinguir, no conjunto das obras imputadas a Pedro Hispano, entre a produção
cuja autoria se encontra suficientemente estabilizada e os escritos cuja
atribuição suscita maior discussão.
As
dificuldades em estabelecer as autorias das obras de João XXI são inúmeras e
estão muito longe de ser exclusivo do Papa português. São muito numerosos os
autores e escritos da época medieval que subsistem enredados em polémicas
afins, enfrentando problemas ensombrados por propostas contraditórias, baseadas
em argumentos filológicos, caligráficos, cronológicos, ontológicos, etc. Em
todo o caso, considerando o corpo de obras de Pedro Hispano fixado com maior
rigor e descontando os muitos textos em relação aos quais há reservas, verifica-se
que a sua quantidade, qualidade e impacto foram muito desiguais. Assim, as
obras sobreviventes de medicina e de lógica sobrepõem-se às restantes em número,
importância e repercussão. Olhando apenas às quantidades produzidas,
fica-se com a perceção de que Pedro Hispano se ocupou em especial da redação de
tratados médicos. Contam-se, neste capítulo, cerca de 30 escritos, aos quais se
seguem, a considerável distância, as obras de filosofia e de alquimia. Só depois
vêm as peças de teologia. Quanto aos escritos sobre zoologia que lhe são
apontados, afiguram-se residuais no conjunto da sua produção intelectual.
Há ainda a
assinalar uma curiosa obra, em tudo extravagante relativamente ao resto da sua produção,
um tratado em verso sobre os elementos atmosféricos.
No campo dos
saberes médicos e de acordo com o elenco da escola médica de Salerno, fundada
no século X e que teve um enorme impacto na evolução da história da medicina,
Pedro Hispano comentou praticamente todas as principais autoridades em que
assentava a aprendizagem nas escolas medievais de medicina. E, quanto à
adesão à alquimia, é de ter em conta que o interesse pela química medieval era
inseparável do mundo do ocultismo e das ciências ocultas, o que lhe valeu, em
alguns círculos, a pejorativa e controversa reputação de mago.
Por fim, é
de referir que foi em contexto de efervescência intelectual, marcado pela
recuperação, no Ocidente, de obras de Aristóteles, que redigiu os manuscritos
filosóficos, responsáveis por lhe assegurar relevante lugar na História da
Filosofia. Entre os trabalhos que lhe são imputados com mais insistência e
segurança, os mais famosos e apreciados são o “Thesaurus pauperum”, no âmbito das ciências médicas, e as “Summulae logicales”, no ramo da lógica.
***
Grande mestre
e líder eclesiástico. Como Papa, teve pouco tempo para se afirmar, mas o que
fez já mostra o quanto valia em termos de determinação e de coragem.
***
2020.10.01 –
Louro de Carvalho
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