quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Um pontificado de pouco mais de 8 meses para o único papa português

 

Um pontificado de apenas 8 meses – contados a partir da coroação pontifical a 20 de setembro de 1276 – acabou de forma trágica, na cidade de Viterbo (que era, no século XIII, considerada a cidade papal), a 20 de maio de 1277, para João XXI, o único papa português em pouco mais de dois milénios de vida da Igreja de Jesus Cristo.

Porém, é oportuno esclarecer dois pontos. Por um lado, não se pode falar de dois milénios para Portugal, cuja nacionalidade remonta apenas ao século XII, tendo surgido, no território que hoje integra o nosso país republicano, um outro papa, São Dâmaso, o 37.º Papa da Igreja Católica, nascido na Civitas Igaeditanorum (depois Egitânia, atual Idanha-a-Velha). Por outro lado, como o pontificado se conta a partir da eleição no caso de esta haver recaído num clérigo ornado com o caráter episcopal, João XXI (Iohannes Vicentesimus ou Iohannes Vicesimus Primus), o 187.º Papa da Igreja Católica, teve mais alguns dias de pontificado além dos 8 meses. Não sabemos quantos dias, dadas as divergências da data da eleição entre os cronistas coevos. O anuário pontifício, na Serie dei Sommi Pontefici Romani secondo la cronotassi del Liber Pontificalis e delle sue fonti, regista duas datas: 16 de setembro, eleição (a atermo-nos aos cronistas, a data da eleição situa-se ente 8 e 16 de setembro); e 20, coroação. Além disso, refere que o seu nome secular é Pietro di Giuliano ou Pietro Ispano e que o local do seu nascimento é Lisboa.    

O Sumo Pontífice sucumbira vitimado pela derrocada do teto, a 16 de maio, numa zona em obras no Palácio Pontifício. E a notícia terá corrido veloz pelas ruas de Viterbo, cidade que naquele tempo era refúgio dos Papas, que fugiam de uma Roma insegura e insalubre. Revelando várias fraturas, incluindo uma fratura craniana, morreu passados 4 dias (20 de maio).

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Dos primeiros anos da vida de Pedro Julião, mais tarde conhecido como Pedro Hispano antes de se tornar João XXI, pouco se sabe. Apenas se pode tomar como certeza que nasceu em Lisboa, algures entre 1205 e 1220, e que era filho de famílias abastadas, o que lhe permitiu, depois do ensino na escola episcopal da Sé, prosseguir estudos na Universidade de Paris. A este respeito, Mário Farelo, investigador de História Medieval, explica:

Foi certamente devido ao facto de ser oriundo de uma família importante na sociedade de Lisboa que ele acaba por ter posses para ir para Paris, mas guarda sempre a âncora em Lisboa. (…) Percebe-se que ele vai seguir depois uma carreira eclesiástica em Portugal. Faz o seu trajeto cultural e depois volta. Quando o faz, vem já com conhecimentos importantes, o que se revela pelo facto de ser designado como ‘mestre’ nos documentos da época.”.

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Esta importante figura histórica nasceu em Lisboa, desconhecida, mas seguramente antes de 1226, filho do médico Julião Pais Rebolo (Luís Ribeiro Soares defende que possa ter sido filho do Mestre Julião Pais, chanceler de Dom Sancho I, que foi identificado como sendo a mesma pessoa) e de sua mulher Mor Mendes. E era irmão de Gil Julião Rebolo. Usou as Armas dos Rebolo, que são de vermelho, três rebolos de ouro vazios do campo postos em roquete. A moderna representação da heráldica de João XXI apresenta escudo esquartelado, que tem o 1.º e 4.º quartéis de vermelho, carregado com três crescentes de prata, postos em roquete (interpretação errada das armas dos Rebolo).

Iniciou os estudos na escola episcopal da catedral lisboeta, tendo passado a estudar na Universidade de Paris (alguns afirmam que foi na de Montpellier) com mestres notáveis, como Santo Alberto Magno, e tendo por condiscípulos Santo Tomás de Aquino e São Boaventura. Lá estudou medicina e teologia, com especial atenção a palestras de dialética, lógica e, sobretudo, física e metafísica aristotélicas. Entre 1246 e 1252 ensinou medicina na Universidade de Siena, onde escreveu algumas obras, de que ressalta o tratado “Summulæ Logicales”, manual de referência de lógica aristotélica durante mais de 300 anos, nas universidades europeias, com 260 edições na Europa, traduzido para grego e hebraico.

Testemunho da sua vasta cultura científica é o “De óculo, tratado de oftalmologia, com ampla difusão nas universidades europeias. Quando Miguel Ângelo adoeceu gravemente dos olhos, devido ao árduo labor da decoração da Capela Sistina, valeu-se duma receita de Pedro Julião. De sua autoria é o “Thesaurus Pauperum”, que trata de várias doenças e suas curas, com cerca de cem edições e traduzido para 12 línguas. Já no âmbito da Teologia, escreveu “Comentários ao pseudoDionísio e “Scientia libri de anima” e, ainda, a obra “De tuenda valetudine, manuscrita em Paris, dedicada a Branca de Castela, esposa do rei Luís VIII de França e filha de Afonso IX de Castela.

Quando regressa a Portugal já “mestre”, Pedro Julião teria granjeado fama, entre outras áreas do conhecimento, como médico. O “Thesaurus Pauperum” e a “Summulae Logicales” bastavam para o granjeio da fama. Contudo, Mário Farelo refere que as investigações têm lançado dúvidas sobre a autoria dessas obras e explica:

A partir do século XVI, assim que víamos uma obra escrita por Pedro Hispano, associávamos quase automaticamente ao Papa. A partir de estudos aprofundados, sobretudo do professor José Meirinhos, da Universidade do Porto, hoje sabemos que na verdade é necessário fazer a distinção entre 5 ou 6 ‘Pedros Hispanos’. Bastava estar fora de Portugal para ser apelidado de ‘Hispano’, proveniente da Hispânia, oriundo da Ibéria. Tanto podia ser Castela, Galiza como Portugal. Não temos a certeza se as obras de caráter científico são dele ou de outro Pedro Hispano.”.

Não obstante, as dúvidas não impedem que tenha sido uma das figuras mais relevantes do seu tempo. Ocupou vários cargos eclesiásticos em Portugal (desde deão da Sé de Lisboa a Arcebispo de Braga) até ter sido nomeado para a cúria romana no início dos anos 70 do século XII (era então a antecâmara para chegar ao cargo máximo na Igreja), onde terá sido médico principal do Papa Gregório X.

A sua carreira eclesiástica, a par da académica, é notável. Antes de 1261, quando é eleito deão da Sé de Lisboa, ingressa no sacerdócio. O rei Afonso III confiou-lhe o priorado da igreja de Santo André (Mafra), em 1263, posto donde chega a cónego e deão da Sé de Lisboa, tesoureiro-mor da Sé do Porto e Dom Prior na Colegiada Real de Santa Maia de Guimarães.

Após a morte de Dom Martinho Geraldes, é nomeado Arcebispo de Braga pelo Papa Gregório X, em 1273. No ano seguinte, participa no XIV Concílio ecuménico de Lião e Gregório fá-lo Cardeal-bispo com o título de Tusculum-Frascati, da diocese suburbicária de Frascati, o que permite ao pontífice contar com os serviços médicos do sábio português. Regressa à Arquidiocese de Braga onde permanece até à nomeação do sucessor, Dom Sancho. De volta à corte pontifícia, Gregório X nomeia-o seu médico principal (arquiathros), em 1275.

É eleito para o Sumo Pontificado, adotando o nome de João XXI, em conclave realizado em Viterbo, após a morte de Adriano V (a 18 de agosto de 1276), eleição que decorre num período muito perturbado por tensões políticas e religiosas e com alguns cardeais a sofrer violências físicas. O grupo de responsáveis pela escolha do Pontífice não era muito numeroso. Devido ao falecimento recente de dois cardeais-diáconos, o colégio de eleitores era constituído por apenas 11 membros, número que ficaria mais diminuto pelo facto de um deles ter morrido no local onde conclave se ia realizar e outro ter faltado à chamada por motivos desconhecidos. Restaram, pois, 9 cardeais para a eleição pontifical, sendo dois cardeais-bispos (um deles Pedro Julião), 3 cardeais-presbíteros e 4 cardeais diáconos. E a escolha terá tido a mão do Cardeal Orsini.

Com os Papas sediados em Viterbo, o ano de 1276 corria agitado. Em pouco mais de meio ano, três Papas tinham passado pela chefia da Igreja. Adriano V morre apenas um mês depois de ser eleito e, em agosto, os cardeais escolhem como sucessor o académico português Pedro Hispano. De acordo com alguns relatos históricos, o novo Papa estaria mais interessado nas suas investigações científicas e teria passado a gestão dos assuntos correntes da Igreja ao cardeal Giovanni Orsani, que tinha ajudado à sua eleição e que viria a ser o Papa Nicolau III. No entanto, os documentos epocais mostram outra realidade, segundo Mário Farelo, que diz:

As crónicas posteriores fazem um relato dele como estando mais interessado nas questões das ciências e das estrelas, que se fecharia no seu gabinete e não queria saber dos assuntos da Cristandade. Mas, quando vamos ver o seu bulário, vemos um Pontífice verdadeiramente preocupado com a sua Igreja, com as relações com a Igreja do Oriente, mas também com as relações entre as soberanias cristãs, que também precisavam muitas vezes de um árbitro, de um mediador.”,

Na fidelidade ao  XIV Concílio ecuménico de Lião, manda castigar, em tribunal criado para o efeito, os que haviam molestado os cardeais presentes no conclave que o elegera. Embora sem grande sucesso, leva por diante a missão encetada por Gregório X de reunir a Igreja Grega à do Ocidente. tenta libertar a Terra Santa, que estava em poder dos turcos, e reconciliar grandes nações europeias, como França, Germânia e Castela, no espírito da unidade cristã, para o que envia (sem êxito) legados a Rodolfo de Habsburgo e a Carlos de Anjou. Acaba com a pressão popular sobre o conclave. E, em Portugal experimenta divergências de Dom Afonso III, mercê de queixas do clero pelo facto de o soberano beliscar os direitos da Igreja e do clero.

Dotado de rara simplicidade, recebe em audiência tanto os ricos como os pobres, o que é motivo de algumas críticas da parte de quem prezava hipocritamente a dignidade papal. Porém, o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), na “Divina Comédia”, coloca no Paraíso a alma de João XXI, entre as que rodeiam a alma de São Boaventura, apelidando-o de “aquele que brilha em doze livros”, menção clara aos supostos 12 tratados escritos pelo erudito Pontífice. O rei Afonso X de Leão e Castela, o Sábio, avô de Dom Dinis de Portugal, elogia-o em forma de canção no canto XII do “Paraíso”. Mecenas de artistas e estudantes, é tido na sua época por ‘egrégio varão de letras’, ‘grande filósofo’, ‘clérigo universal’ e ‘completo cientista físico e naturalista’.

Delega no Cardeal Orsini os assuntos correntes da Sé Apostólica. E, ao sentir-se doente, retira-se para a cidade de Viterbo, onde morre, não de doença, mas de acidente pelo desmoronamento das paredes do seu aposento, estando o palácio apostólico em obras. É sepultado junto do altar-mor da Catedral de São Lourenço, naquela cidade. No século XVI, durante os trabalhos de reconstrução do templo, os seus restos mortais são trasladados para um modesto e ignorado túmulo, mas nem aqui encontram repouso definitivo. Com o contributo da Câmara Municipal de Lisboa, por João Soares, então seu presidente, o mausoléu é colocado, a título definitivo, do lado do Evangelho na Catedral de Viterbo, a 28 de março de 2000.

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Viterbo, também conhecida como “a cidade dos Papas”, ainda hoje guarda várias memórias da presença de muitos dos sucessores de Pedro. Foi aliás aqui que surgiram os conclaves. A história é explicada por Domenico, sacristão da Catedral local:

Durante cerca de três anos, não se decidiam a eleger o Papa. Então, os cidadãos de Viterbo fecharam-nos à chave. Daí provém a palavra ‘conclave’. Fecharam à chave a ala onde estavam reunidos, tiraram-lhes o telhado, reduziram os alimentos e, no final, decidiram-se a eleger um Papa, também porque tiveram pressões francesas nesse sentido. Desse conclave saiu o Papa Gregório X.”.

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A popularidade de que gozou na medievalidade, prolongada pelo Renascimento, persistindo até aos dias de hoje, remete para a sua dimensão de intelectual e para os contributos que lhe são atribuídos no âmbito da história da ciência e história das ideias, em concreto os estudos que dedicou aos ramos da filosofia e da medicina. O problema é que a vasta produção bibliográfica, a diferente natureza dos assuntos abordados e a própria coerência interna dos textos escritos sob o nome de Pedro Hispano ou que lhe foram creditados, desde o século XIV, pouco depois da sua morte –, tendo como premissa a vasta ciência do Papa, assumida pelo próprio e amiúde asseverada em crónicas, contemporâneas e posteriores –, suscitam várias reservas no que toca à sua atribuição a uma única personagem histórica. Movendo-se por entre tantas dúvidas, a crítica textual mais recente parece pouco inclinada a creditar ao Pontífice todos os tratados que compõem o habitual cânone de manuscritos que lhe são consagrados. Há inclusivamente especialistas que vão mais longe, sustentando que muito poucos desses trabalhos devem ser atribuídos a João XXI, propondo-os como a produção de um ou vários Pedros Hispanos seus contemporâneos. A polémica não sendo estéril, mas inconclusiva, obriga a distinguir, no conjunto das obras imputadas a Pedro Hispano, entre a produção cuja autoria se encontra suficientemente estabilizada e os escritos cuja atribuição suscita maior discussão.

As dificuldades em estabelecer as autorias das obras de João XXI são inúmeras e estão muito longe de ser exclusivo do Papa português. São muito numerosos os autores e escritos da época medieval que subsistem enredados em polémicas afins, enfrentando problemas ensombrados por propostas contraditórias, baseadas em argumentos filológicos, caligráficos, cronológicos, ontológicos, etc. Em todo o caso, considerando o corpo de obras de Pedro Hispano fixado com maior rigor e descontando os muitos textos em relação aos quais há reservas, verifica-se que a sua quantidade, qualidade e impacto foram muito desiguais. Assim, as obras sobreviventes de medicina e de lógica sobrepõem-se às restantes em número, importância e repercussão. Olhando apenas às quantidades produzidas, fica-se com a perceção de que Pedro Hispano se ocupou em especial da redação de tratados médicos. Contam-se, neste capítulo, cerca de 30 escritos, aos quais se seguem, a considerável distância, as obras de filosofia e de alquimia. Só depois vêm as peças de teologia. Quanto aos escritos sobre zoologia que lhe são apontados, afiguram-se residuais no conjunto da sua produção intelectual.

Há ainda a assinalar uma curiosa obra, em tudo extravagante relativamente ao resto da sua produção, um tratado em verso sobre os elementos atmosféricos.

No campo dos saberes médicos e de acordo com o elenco da escola médica de Salerno, fundada no século X e que teve um enorme impacto na evolução da história da medicina, Pedro Hispano comentou praticamente todas as principais autoridades em que assentava a aprendizagem nas escolas medievais de medicina. E, quanto à adesão à alquimia, é de ter em conta que o interesse pela química medieval era inseparável do mundo do ocultismo e das ciências ocultas, o que lhe valeu, em alguns círculos, a pejorativa e controversa reputação de mago.

Por fim, é de referir que foi em contexto de efervescência intelectual, marcado pela recuperação, no Ocidente, de obras de Aristóteles, que redigiu os manuscritos filosóficos, responsáveis por lhe assegurar relevante lugar na História da Filosofia. Entre os trabalhos que lhe são imputados com mais insistência e segurança, os mais famosos e apreciados são o “Thesaurus pauperum”, no âmbito das ciências médicas, e as “Summulae logicales”, no ramo da lógica.

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Grande mestre e líder eclesiástico. Como Papa, teve pouco tempo para se afirmar, mas o que fez já mostra o quanto valia em termos de determinação e de coragem.

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2020.10.01 – Louro de Carvalho

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