domingo, 11 de outubro de 2020

Imagem do Reino no banquete meticulosamente preparado pelo Rei

 O Evangelho deste domingo XXVIII do Tempo Comum no Ano A (Mt 22,1-14) mostra a continuidade do confronto de Jesus com os chefes religiosos e civis dos Judeus, que, ao ouvirem as duas parábolas anteriores (Mt 21,28-32; 21,33-43), sentiram bem que a bazuca das palavras do Mestre se virava para eles, pelo que procuravam forma de O prenderem e só não o fizeram de imediato por “receio das multidões, que o tinham por profeta” (cf Mt 21,45-46).

Porém, na linha dos anteriores, este segmento parabólico de Jesus compagina uma resposta imediata aos pensamentos e planos violentos que aquelas parábolas desencadearam nos chefes.

A parábola afirma categoricamente a similitude do Reino dos Céus (circunlocução mateana para dizer ‘Reino de Deus’) a um banquete nupcial que um Rei fez para o seu filho. Ora, a figura do Rei, muitas vezes usada no Antigo Testamento (AT) e no judaísmo, designa Deus. O verbo “fazer” evoca o relato criação (Gn 1,1-2,4a), em que este verbo surge dez vezes. O filho do Rei, para uma audiência cristã, é Jesus. E o banquete nupcial feito pelo Rei é a imagem forte de festa e de alegria, tantas vezes anunciado pelos profetas (vd, por exemplo, Is 25,6-10a) e impacientemente aguardado pelos judeus piedosos. Na verdade, ser convidado e participar num banquete assim era o sonho de qualquer judeu piedoso.

O Rei organizou um banquete para celebrar o casamento do seu filho. Convidou várias pessoas, mas os convidados recusaram-se a participar no banquete, apresentando as desculpas mais inverosímeis. Mateus diz que assassinaram os emissários do Rei (dado que não surge em Lucas). Trata-se dum quadro gravíssimo: recusar o convite era ofensa inqualificável, mas, como se não bastasse, os convidados indignos manifestaram um desprezo inconcebível pelo rei, matando os seus servos. E o Rei enviou as suas tropas a castigar os assassinos (Mt 22, 7 – referência que não aparece em Lucas e que será uma interpretação da destruição de Jerusalém pelo exército romano de Tito, no ano 70).

O Rei, porém, manteve a festa e mandou que fossem trazidos para o “banquete” todos os que fossem encontrados nas “encruzilhadas dos caminhos”. E “povo da terra”, os desclassificados, que nunca se tinham sentado à mesa duma personagem importante celebraram a festa à mesa do banquete do Rei.

Veem-se no texto as várias surpresas identificadas por Dom António Couto, Bispo de Lamego (vd Jornal da Madeira, deste dia 11 de outubro).

A primeira acontece quando o Rei enviou os seus servos a chamar os convidados e estes não queriam (ouk êthelon: impf. de thélô) vir (Mt 22,3). O uso do imperfeito indica duração, não se tratando dum ato, mas duma atitude. E o uso do verbo “querer mostra que se trata duma ação voluntária, não duma simples predisposição ou sentimento, e que a ação é deliberada, ficando patente que o Rei enviou outros servos para voltar a chamar os convidados, que nem prestaram atenção, indo cada um à sua vida (cf Mt 22,4-5). E os restantes ainda maltrataram e mataram os servos do Rei (cf Mt 22,6). É ainda de assinalar que foi o próprio Rei que preparou (hêtoímaka: perf. de hetoimázô) o banquete, empenhando-se pessoalmente nele (cf Mt 22,4), sendo que o verbo “preparar” está em lugares-chave em Mateus (vd Mt 3,3: “Preparai o caminho do Senhor”; Mt 25,34: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei o Reino preparado para vós…; e Mt 26,17.19: preparar a Páscoa). Mais: o cuidado meticuloso do Rei na preparação do banquete parece esbarrar na brutalidade com que se irou (ôrgísthê: aor. de orgízomai), enviou as suas tropas, matou aqueles homicidas e incendiou a sua cidade (cf Mt 22,7). O sentido vai aqui em duas direções: o uso do aoristo em todos os verbos mostra que “a sua ira dura apenas um instante”, como diz o Salmo 30,6; e o castigo descrito retrata e interpreta os acontecimentos dramáticos bem conhecidos do ano 70, pelo que a parábola parece ter sido reescrita e reinterpretada por Mateus depois desse ano.

A segunda surpresa está em as sucessivas e gradativas recusas dos convidados não desarmarem o Rei, que diz (légei) aos servos (Mt 22,8): “Ide às encruzilhadas dos caminhos e a todos os que encontrardes chamai-os para o banquete(Mt 22,9). Os servos saíram e reuniram todos os que encontraram, maus e bons (Mt 22,10), o que significa a missão universal que brota do amor fontal de Deus Pai (vd Ad Gentes, n.º 2). E foi assim por nova, excessiva e surpreendente iniciativa do Rei que se encheu a sala do banquete. É o novo dizer do Rei, agora posto no presente histórico (“diz então aos seus servos”), que marca um primeiro ponto alto no relato, sendo que o intervalo militar não terá esfriado a comida preparada daquela mesa sempre posta.

A terceira surpresa consiste em o Rei entrar e ver “um homem” sem o traje nupcial e expulsá-lo da casa alumiada para as trevas cegas e as lágrimas vazias – vendo aqui alguns uma segunda parábola. Ora, que o homem não tenha o traje nupcial é surpresa para o Rei, não para nós. Para nós, segundo Dom António Couto, a surpresa é que todos os outros, maus e bons, tenham o traje nupcial, já que que foram como que arrastados à pressa dos caminhos lamacentos do mundo. Como ainda conseguiram vestir o traje nupcial, não deixa de ser surpreendente para nós. Só que para o Rei o surpreendente é aquele homem não ter vestido o traje nupcial. E, neste segundo ponto alto do relato, também marcado pelo verbo dizer no presente histórico, o Rei trata aquele “um homem” cordialmente e diz-lhe (légei autô): “Amigo” (hetaîre), apelativo que só Mateus usa no Novo Testamento (vd Mt 20,13; 22,12; 26,50) e que se usa só quando se aborda alguém de forma especialmente cordial. A este amigo (hetaîros) o Rei dá, por esta abordagem direta e cordial, uma última oportunidade de reconhecer o seu desarranjo interior e de mudar a sua vida.

No entanto, é oportunidade desperdiçada, pois o homem não respondeu. Antes, ficou calado e petrificado (Mt 22,12). É este o tratamento de Jesus a Judas naquela noite escura, mas à beira da Luz: “Amigo (hetaîre), a que vieste?” (Mt 26,50). E Judas também não respondeu. E, para Dom António Couto, é aqui que a parábola nos atinge a todos em cheio. Vistas bem as coisas, só o Rei fala nesta parábola. E, se ouvirmos bem, diz-nos: “Amigo!…”. O Rei que organizou o “banquete” mandou expulsar o conviva da sala onde se realizava a festa. Quanto a Judas, bem sabemos como num ato de desespero quis restituir as moedas da venda de Jesus e se enforcou.

Ora, segundo o Bispo de Lamego – e bem –, a razão de aquele homem não usar o traje nupcial não tem a ver com a técnica do arrasto que o apanhou desprevenido e sem tempo para ir a casa mudar de roupa, nem com motivos moralizantes traduzidos em comportamentos menos dignos. Com efeito, tais motivos e pessoas foram excluídos (cf Mt 22,8: os convidados não eram dignos) e é referido que os servos do Rei levaram para a sala do banquete todos os que encontraram, maus e bons (cf Mt 22,10). O homem não usa o traje nupcial, porque não o quis receber, pois esse traje de festa não se vai buscar a casa, nem traduz a nossa bondade ou qualquer mérito, mas é uma dádiva irrecusável do Rei à entrada da sala do banquete. Com efeito, ao invés do mundo ocidental, em que os convidados levam os presentes, no mundo oriental, quem convida é que oferece presentes, entre os quais se conta o vestido da festa.  

No mundo bíblico, o vestido significa a vida. Assim, em cena está a vida dada e que deve ser recebida com alegria; está Deus de mãos abertas, que reclama as nossas mãos também abertas.

Deus é o rei que convidou Israel para o banquete do encontro, da comunhão, da chegada dos tempos messiânicos (as bodas do “filho”). Os sacerdotes, os escribas, os doutores, recusando o convite, preferiram permanecer nos seus esquemas, preconceitos e sistemas de autossalvação. E Deus convidou para o banquete do Messias os pecadores e desclassificados que, na perspetiva da teologia oficial, estavam arredados, em definitivo, da comunhão com Deus e do Reino.

A parábola explicita o cenário em que Jesus se move. Ele aparece recorrentemente a participar em banquetes ao lado de gente duvidosa e desclassificada, pelo que os inimigos o acusam de “comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e de pecadores” (Mt 11,19; Lc 7,34). E participa nesses banquetes correndo o risco de adquirir fama tão desagradável, porque, no AT (vg: Is 25,6-10a), os tempos messiânicos são descritos com a imagem do banquete que Deus prepara para todos os povos. Como Jesus tem consciência de que esses tempos chegaram com Ele, utiliza o cenário do banquete para exprimir a realidade do Reino (mesa da festa, do amor, da comunhão com Deus), para o qual somos convidados todos, sem exceção. Para Ele, sentar-se à mesa com os pecadores é modo privilegiado de lhes dizer que Deus os acolhe com amor e quer estabelecer com eles relações de comunhão e familiaridade, sem excluir ninguém.

Para os líderes de Israel, que sempre reprovaram a Jesus o contacto com os pecadores e os desclassificados, era óbvio que os publicanos, as prostitutas e os estrangeiros estavam arredados definitivamente da comunidade da salvação, pelo que sentá-los à mesa do banquete do Reino era inaudito e absolutamente inapropriado. Assim, é provável que, originariamente, a parábola tenha servido a Jesus para responder aos que o censuravam por ter convidado para o “banquete” todo o tipo de desclassificados e de pecadores. Porém, Jesus deixa patente que, na ótica de Deus, a questão essencial não é se temos o direito de nos sentarmos à mesa do Reino, mas se aceitamos ou não o convite de Deus e os seus bens (veja-se o caso da veste nupcial). Na verdade, os líderes de Israel recusaram o desafio de Deus, ao passo que os pecadores e desclassificados o acolheram de braços abertos.

A parábola de que, mais tarde, a comunidade cristã fará uma releitura para explicar porque é que os pagãos acolheram melhor a Boa Nova do Reino do que os judeus, constitui uma advertência aos que aceitaram o convite de Deus para a festa do Reino, aderiram à proposta de Jesus e receberam o Batismo. Mateus escreve no final do século I (anos 80), quando os cristãos já tinham esquecido o entusiasmo inicial e viviam instalados numa fé morna, sem atração, sem obras. Consideravam que, tendo feito a opção definitiva, já tinham assegurado a salvação. Contudo, Mateus alerta-os, pois não chega entrar na sala do “banquete”, mas é preciso adotar um estilo de vida que ponha em prática os ensinamentos de Jesus.

Assim, quem foi batizado e aderiu ao “banquete” do Reino, mas recusou o dom da vida, o traje da misericórdia e do amor, da partilha e do serviço, mas continua revestido de egoísmo, arrogância, orgulho e injustiça não pode participar na festa do encontro e da comunhão com Deus. Deus chamou todos os homens e mulheres à participação no “banquete”, mas só serão admitidos os e as que responderem ao convite e mudarem completamente de vida.

É de salientar que a parábola do banquete é, como foi sugerido acima, antecipada pelo profeta Isaías (25,6-10a), que descreve um banquete preparado (cf Is 25,6-8) “sobre este monte” e oferecido por Deus a todos os povos e um mundo novo aberto aos olhos de todas as nações e de todos os rostos, carinhosamente limpos de lágrimas. Este cenário reclama Is 56,1-8 (manjares suculentos e de boa gordura, vinhos deliciosos e puríssimos) e a extraordinária elevação e inclusão dos estrangeiros no povo de Deus, dignos de subir ao “monte da minha santidade” e de entrar na “casa da minha oração”, transformada em “casa de oração para todos os povos”. Fica patente a oposição entre “os jardins” e lugares altos com árvores frondosas e o monte do Senhor, o “monte da minha santidade”, confirmando a função do monte, purificado de maldade e violência (Is 65,11-12.25), a abrir diante de nós, não só as portas de Sião, mas sobretudo as portas da casa de Deus.

Não esqueceremos que é Deus quem prepara e serve o banquete do Reino, não os servos (que fazem os convites quais emissários ou missionários servidores do Reino), porque o banquete têm a marca de Deus e não dos homens. E nunca podemos esquecer que é sempre de Deus toda a verdadeira iniciativa. Por isso, temos de sentir e desenvolver a consciência de que nos compete sempre começar por receber o dom e gastar o resto do tempo que nos for dado a agradecer e a partilhar.

Assim, Paulo, no trecho da Carta aos Filipenses (Fl 4,12-20), mostra-se-nos empenhado na sua missão dia após dia, sem se preocupar, como pediu Jesus, com o que havia de comer ou de vestir (cf Mt 6,25). Tem uma postura de reconhecimento e gratidão para com a comunidade querida de Filipos, mas toda a sua confiança está em Deus, a quem dirige a bela doxologia: final: “A Deus, nosso Pai, a glória pelos séculos dos séculos, amén”.

Por tudo isto, ecoarão em nós as notas sublimes do Salmo 23 e deixar-nos-emos guiar pela mão poderosa e pela voz maternal do Belo Pastor, que nos conduz pelos seus prados verdejantes, cheios de águas azuis, unge com óleo perfumado a nossa cabeça, estende no chão a toalha de “pele de vaca”, que é a sua mesa, serve-nos manjares suculentos e vinhos generosos.

E será nesta ótica luminosa que participaremos da Eucaristia qual “Sagrado Banquete em que se recebe Cristo e se comemora a sua Paixão, em que a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da futura glória”.

Eis o nosso Deus, de quem esperávamos a salvação; é o Senhor, em quem pusemos a nossa confiança. Alegremo-nos e rejubilemos, porque nos salvou. A mão do Senhor pousará sobre este monte.(Is 25,9-10a).

2020.10.11 – Louro de Carvalho


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