É este, para Isabel
Varanda, professora da Faculdade de Teologia da UCP (Universidade Católica Portuguesa), o novo
paradigma da humanidade que o Papa Francisco propõe na encíclica “Fratelli
Tutti” (FT), como refere
em entrevista escrita à agência Ecclesia com data de 6 de outubro.
Se a “Laudato Si´”, respondeu
com o conceito de ecologia integral aos desafios das alterações climáticas, em
pleno debate que levou ao Acordo de Paris, agora propõem-se ao mundo
marcado pela pandemia conceitos fundamentais como a fraternidade e a amizade
social, numa encíclica social em modo de texto universal, que não nos deixa indiferentes,
antes permite antever que dele não sairemos ilesos – “murro no estômago” a
apertar o coração e envergonhar a razão. E a académica adverte que, apesar da pertinência
do tema em tempo de pandemia, Francisco escreveria esta Carta ao mundo em algum
momento do pontificado, pois como ele diz, “as questões relacionadas com a
fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações” (FT 5). Por isso, a
encíclica é um contributo para a reflexão sobre a crise dramática de
fraternidade, que é crise dramática de humanidade, almejando “um sonho novo de
fraternidade e amizade social” (FT 6) motivador do ser humano para modos benfazejos de habitar
e fazer o mundo e modos benfazejos de ser mundo.
É recorrente a preocupação aguda “com as várias formas
atuais de eliminar ou ignorar os outros” (FT 6) nas inúmeras intervenções deste Papa,
intervenções agora transpostas para um âmbito de reflexão mais alargado, que
resulta num corpus organizado em 8
capítulos, 287 parágrafos e 288 notas de rodapé. Cerca de 55% das notas de
rodapé e referências bibliográficas remetem para as múltiplas intervenções papais,
o que nos leva a pensar ser este “o pensamento de Francisco” ou “a Carta que
Francisco sempre desejou enviar a todos os seres humanos, lembrando-lhes:
Somos Todos Irmãos”.
Em tom pedagógico e estilo redacional polimorfo, dá
nome às coisas e fenómenos, não foge aos pormenores, não nos poupa “ao
traumatismo do encontro com as dores do mundo e com as feridas em carne viva da
fraternidade” e, em linguagem afável, mas “interpeladora e frontal”, diz, num
“lamento de irmão ferido”, que “somos analfabetos no acompanhar, cuidar e
sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades” (FT 65), “sintomas de uma sociedade enferma”, que “procura construir-se de costas
para o sofrimento” (FT 66). É a voz que destoa “no tom e na tónica”, contra a
maré de “desumanidade que avança inclemente e inconsciente” e que denuncia tudo
o que fecha, reduz, exclui, esconde, apouca e descria o mundo e a humanidade.
Em contrapartida, apela a que nos deixemos “envolver no espírito de mudança, de
conversão à tarefa histórica de priorizar o bem comum e a vida boa para todas
as criaturas”, o que só ocorre “se estivermos convictos de que a mudança é para
algo melhor do que o que temos”, convicção que nos moverá para caminhos, mais
fraternos e inclusivos – mais “percursos de esperança”.
***
Lendo a entrevista mais ao detalhe, começamos com a
evocação da ida papal a Lampedusa (2013) censurando a globalização da indiferença e
recolocando a pedra basilar do edifício
ético vinda de Deus: “Onde está o teu irmão? O que é o irmão,
no pensamento católico?”.
A Laudato Si’ (2015) recordou que todas as criaturas “estão intrinsecamente ligadas”, pelo que
tudo o que acontece com a mais ínfima partícula ou com a mais gigantesca forma
de vida se inscreve indelevelmente na biografia da criação, pertence à “carne
do mundo”, o que nos leva a aceitar a interdependência fundamental, a par da
autonomia, liberdade, poder e capacidade de domínio. Esta interdependência –
sublinha a insigne académica é a condição da vida, “é uma condição feliz” e não
uma “opção”. Assim, “nem o planeta terra é solitário, nem o ser humano é
solitário”, antes “somos solidários. E a fragilidade ou ausência da consciência
de pertença “é fator determinante do modo como vemos e nos relacionamos com o
outro” e com “o que nos rodeia”. Depois, há que passar da solidariedade
biológica para a fraternidade universal, ou seja, reconhecer “um outro, que não
sou eu, portanto, importante aos meus olhos, digno de contemplação e de
admiração, digno do meu desejo, merecedor do meu cuidado e do meu amor”. E só o
amor permite reconhecer o outro como “meu próximo” e a mim como próximo dele. A
partir daqui, desencadeia-se o processo de valorização ética: Eis o irmão. Contudo, esta fraternidade
é muitas vezes ferida e ferida de morte. Por isso, ecoa no tempo, no espaço e
no íntimo de cada um a pergunta: “Onde
está o teu irmão?” (Gn 4,9), seja em Lampedusa, seja em “estradas desoladas” do
mundo onde deixamos um ser humano ferido.
Em 2014, no Sacrário Militar de Redipuglia, Francisco
chorou a morte de milhares de seres humanos e apelou a que não mais se
dissesse: “a mim, que me importa?” (Gn 4,9). E convidou a que se passasse para o pranto. Agora, a FT convoca-nos, no
capítulo II, “um estranho no caminho”, para a narrativa de Lc 10,25-37, a parábola do Bom Samaritano. E Francisco conta-a como
se fosse a primeira vez, atraindo o leitor para o centro do drama de
fraternidade: “Com quem te identificas?
É uma pergunta direta e determinante: A qual
deles te assemelhas?” (FT 64). E o Pontífice prossegue:
“Diante de tanta dor, à vista de
tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer
outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo sem
se compadecerem com o sofrimento do ferido na estrada.” (FT 67).
Isto é dignidade humana, a fraternidade, a
fraternidade universal, – pois “o ferido não tem nome” – aberta a qualquer ser
humano e alargada a todas as criaturas nossas irmãs. E, para os cristãos, “esta
fraternidade humana e cósmica é fraternidade cristã porque intimamente ligada a
Jesus Cristo, o Filho de Deus, por quem, com quem, em quem, todas as criaturas,
à sua maneira própria, são convidadas a reconhecer e a aceitar a filiação
divina”. Aliás, no Filho, todos os filhos dizem “Pai-nosso”, o que nos obriga “a olhar para o lado e dizer: Irmão-meu”.
Questionada se a proposta
papal será uma alternativa ao globalismo sem rumo, Isabel Varanda considera que
“tudo o que for sem rumo”
é “arriscar-se na deriva, no vaguear”. Lembra que “fomos fortalecendo a
consciência prática de que passávamos bem sem memória do que nos precede”, sem
Deus e sem os outros, tendo “os mitos de autossuficiência, de individualismo,
de milagre tecnológico, do poder de saber e de ter, de prosperidade e de
abundância” um efeito anestésico “que mergulha as sociedades e os indivíduos
num reconfortante torpor” ou “uma indiferença acomodada, fria e globalizada” (FT 30), como escreve o Papa.
No século XXI somos avisados de que “temos ido longe
de mais”, de que precisamos de “sair do torpor” e de que “o sobressalto é
terrivelmente angustiante e desconcertante”. As crises globais que devastam o
ano 2020 – a ecológica e a pandémica – “desfazem todas as ilusões” e agitam o
mundo em busca de sinais de que vamos voltar ao que éramos, tínhamos e
fazíamos.
Porém, Edgar Morin, aos 99 anos, escreveu um livrinho
em tempos de Covid 19, a que deu o título “Mudemos
de caminho”. Na verdade, temos de mudar de rumo neste tempo de luto – pelos
milhões de pessoas que a pandemia está a levar e pela vida e mundo de antes – e
de tomada de decisões cruciais, traçando, juntos, “um rumo verdadeiramente
humano” (FT 29), enfrentando juntos, numa frente universal fraterna, os caminhos que escolhermos
e que podermos abrir. Resta saber se estamos preparados “para escolher
individualmente um modo fraterno de vida comum” e para “pensar e gerar um mundo
aberto”. Ora, podemos começar por fazer que “a educação formal e informal seja
também educação para a relação com o outro, para a consciência de pertença,
para o bem comum, para o cuidado e amizade social, para uma ‘sobriedade feliz’,
para uma visão aberta do mundo e das suas circunstâncias, para o valor da vida,
para a atenção privilegiada à fragilidade e à vulnerabilidade”.
Sobre a importância das
mensagens do Papa sobre populismos e discursos racistas e xenófobos, a
entrevistada, interrogando-se “como foi possível tornar os mais necessitados e vulneráveis reféns dos
nossos esquemas desumanos, dos nossos discursos racistas e xenófobos,
transformá-los em objeto de ódio, de desdém e de violência”, acentua que, mais
perigoso que este vírus pandémico, é o “que se propaga nas nossas sociedades,
entre os nossos amigos e nas nossas famílias como fogo em palha”, o do autoconvencimento
e autojustificação para o desvio dos valores humanos e do Evangelho, o da
não-aceitação da diferença do outro, da sua necessidade, da sua cor, do seu
respeitar e da sua vida. É de perguntar “quem
é o meu próximo”.
Na Encíclica, Francisco aborda desassombradamente o
facto de o poder dos “líderes populares” degenerar num “populismo insano”, ao
consistir na habilidade de alguém atrair consensos a fim de “instrumentalizar
politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do
seu projeto pessoal e da sua permanência no poder” (FT 159). Também neste campo, temos de “descobrir a força purificadora do pranto
pelo outro”, “resistir à voragem destruidora e resgatar o que faz de nós pessoas
– o amor fraterno universal e a amizade social” – que se deve estender pelos
espaços mais e menos longínquos, dentro do mesmo país e entre países, e se
fortalecer no reconhecimento e desejo cordial de estar aí para o próximo, o
mais próximo, sobretudo “o doente, o pobre, o desempregado, o analfabeto, o
ignorante, o falante de outra língua, o velho, o homem e a mulher, o emigrante,
o refugiado”. Assim, há que encontrar “algum resto de humanidade” que possa
resgatar o mundo do medo e da frustração alienantes, de que muitos de nós
estamos reféns. E o Papa exorta em nome da dignidade humana:
“Deixemos de ocultar a dor das perdas
e assumamos os nossos delitos, desmazelos e mentiras” (FT 78).
Temos de perceber que vale a pena repropor, com a
própria vida, uma cultura de “amizade social”, um espírito de delicadeza e de
justiça, uma linguagem aberta e luminosa, que não deixe que as sombras se apoderem
do mundo e nos ocultem o rosto do irmão.
Quanto ao ideal da Amizade
Social, que inspira Bergoglio nesta encíclica, sobretudo em relação aos jovens,
a entrevistada observa que “tudo se resume ao modelo de sociedade que gostaríamos de ser, com a qual
gostaríamos de viver e que decidiremos construir”, já que “as opções educativas
derivam das nossas decisões e opções de sociedade e de vida comum”. Assim, na Educação,
devem constar explicitamente áreas de desenvolvimento e
aprendizagens essenciais atinentes à vida e seu valor, ao valor intrínseco das
criaturas, à dignidade da vida humana, ao Bem comum, à pertença à humana communitas e à comunidade bioplanetária e
cósmica.
Embora escrita para todos e para que todos a possam
ler, as gerações mais jovens encontrarão na leitura da Encíclica chaves
interessantes para pensar criticamente a sociabilidade virtual ou a amizade
virtual e “trabalhar o desejo de fraternidade aberta e de amizade social como
pilares de uma vida pacífica e boa para a humanidade e para todas as criaturas”,
não deixando que nos roubem o ideal do amor fraterno” (cf EG 101).
No pressuposto de que a FT nasceu
com a declaração conjunta assinada em Abu Dhabi e evocando a asserção de
Francisco, naquele momento, de que “nós, em nome de Deus, para salvaguardar a
paz, precisamos de entrar juntos, como uma única família, numa arca que possa
sulcar os mares tempestuosos do mundo, a Arca de Fraternidade”, Isabel Varanda
prefere dispensar a Arca de Fraternidade e ficar pelo movimento
fraterno planetário dos “caminhantes da mesma carne humana”, com os pés bem na
terra, a avançar pelo solo comum. Com efeito, aqui o Papa lembra que “gozamos
de um espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e
transformações” (FT 77) e propõe a metodologia de “começar por baixo e caso a
caso, lutar pelo mais concreto e local (FT 87). Não obstante, a professora de Teologia assente
que vale a pena aprofundar o documento
de Abu Dhabi enquanto marco de comunhão inter-religiosa, pois “é também com
estes gestos concretos” que se dão passos efetivos na construção da
“Fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”. Todavia, frisa
que reconhecer o estranho como “meu
irmão” não se decreta e que só “uma imaginação livre, criativa e amorosa” nos
poderá iniciar ao desejo de diálogo, de encontro de religiões, culturas,
saberes, “amizade social” e convivência fraterna.
No atinente à transformação
dos mais vulneráveis em sujeitos dispensáveis ou descartáveis como uma das marcas
mais negativas deste tempo, a professora da UCP adverte que não podemos
continuar distraídos perante o facto de a infeção pelo vírus SARS CoV 2, que
evolui para pandemia estar a pôr a nu “as feridas em carne viva das nossas sociedades”, ou seja,
“uma crise humanitária e sanitária global”, que é “um grito de irmão ferido”. Na
verdade, milhões de pessoas desesperam por manter o emprego, pôr algo na mesa
para comer, comprar um medicamento – “combates de irmãos, feridos numa luta
desigual, sem fim à vista”.
Neste cenário, o Papa adverte para a exclusão dos
pobres, os vulneráveis, os doentes, os relegados para as “periferias da vida”, os
que jazem como mortos nas estradas desertas, os que não se veem, os que se
tornam invisíveis, os “forasteiros existenciais” e os “exilados ocultos”. E,
nestes últimos, reconhece um sem número de velhos, que opções políticas e culturais
arrumam e escondem até caírem no esquecimento. E a académica interroga-se se
não temos disto, por exemplo, nos lares clandestinos.
Por isso, Francisco diz que, tal como cada um de nós à sua medida, também “os
políticos são chamados a cuidar da fragilidade dos povos e das pessoas”, pois “cuidar
da fragilidade quer dizer força e ternura, luta e fecundidade, no meio de um
modelo funcionalista e individualista que conduz à cultura do descarte” (FT 188), e que, “na política, há lugar para amar com ternura” (FT 194).
Assim, o Pontífice propõe “um novo paradigma de
humanidade sem muros, sem fronteiras, sem barreiras, sem exclusão e sem
discriminação, assente no cuidar e no bem comum”, como o ideal para todos os
cidadãos e de modo particular para os decisores mundiais e locais, de modo que
estes, no balanço da sua vida política não se perguntem “quantos me aprovaram”
ou “quantos votaram em mim”, mas “quanto amor coloquei no meu trabalho, em que
fiz progredir o meu povo, que laços reais construi, quanta paz social semeei” (cf FT 197). E este paradigma tem na pessoa do Papa “o sinal vivo de um resto de
humanidade fraterna, de uma vida evangelicamente reconhecível e de um novo
paradigma eclesial” – um foco vivo, libertário e libertador.
Um documento de Evangelho, um repositório da boa
política, um exímio manual do viver!
2020.10.09 – Louro de Carvalho
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