No passado dia 12 de
outubro, o Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) divulgou uma nota intitulada “avivar a chama da esperança”, sobre a data da
solenidade de Todos os Santos (1 de novembro) e da
Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (2 de novembro).
Considerando que se trata de dias “intensamente sentidos” pela piedade dos
fiéis católicos do país, com a “romagem de fé e esperança aos cemitérios onde
repousam os restos mortais dos seus entes queridos, que consumaram o seu
batismo participando até ao fim no mistério pascal, morrendo com Cristo para
com Cristo ressuscitarem”, aquele órgão da CEP começa por referir que o povo aproveita
os dias anteriores ao dos Fiéis Defuntos, por este ser laboral, nomeadamente a
solenidade de Todos os Santos, que é feriado nacional, “para fazer memória dos
que nos precederam, marcados com o sinal da fé, ornando os cemitérios com
flores e acendendo luzes expressivas dos seus sufrágios e preces” (vd n.º 2).
Tudo o que é dito no parágrafo 2 da predita nota é rigorosamente verdade,
mas a CEP deveria lembrar-se de que, nos apertados tempos da troika, a Igreja Católica,
obviamente não através da CEP, mas através da sua representação da Santa Sé em
Portugal, devidamente informada por bispos portugueses, contemporizou com um
Estado somítico na suspensão deste feriado que agora a Conferência Episcopal
encarece desnecessariamente. Ademais, parece esquecer que não são apenas os
fiéis católicos que rumam aos cemitérios nestes dias a homenagear os seus entes
queridos, mas no geral todos os cidadãos. Quanto aos católicos, é até de notar
que muitos se escapam da Missa de dia santo para acorrer ao cemitério quando
lhes dá mais jeito.
Reconhece a CEP que “não depende da Igreja a gestão da grande maioria dos
cemitérios nacionais”. Com efeito, os cemitérios municipais estão sob a alçada
das respetivas câmaras municipais, que gerem os municípios, e os cemitérios paroquiais
estão sob a alçada das respetivas juntas de freguesia, que gerem as freguesias,
sendo residual o número de cemitérios que é gerido por entidades ligadas diretamente
à Igreja. Contudo, os Bispos dizem confiar que as autarquias e entidades que
tutelam os cemitérios “saberão interpretar as exigências do bem comum
encontrando um justo, mas difícil equilíbrio entre os imperativos de proteger a
saúde pública e o respeito pelos direitos dos cidadãos”.
Ora, têm razão ao afirmarem que “não se adoece apenas de covid-19”, mas tal
aviso deveria ter sido insistentemente feito a propósito do que se passou e
passa nos hospitais públicos e privados e unidades de saúde familiar, onde
parece que tudo o mais (consultas, exames e cirurgias) ficou para trás e, nalguns casos, ainda continua ou
voltará a continuar a ficar para trás. E têm razão quando imputam “sofrimento e
doença, por vezes, mortal” também à “impossibilidade de exprimir de forma
sensível e concreta saudades e afetos”, o que, salvo honrosas exceções, pouco
foi dito aquando dos funerais quase ocultos, feitos à margem da comunidade e
das famílias.
Entende a CEP que o estado atual da pandemia torna sensata a imposição de “medidas
suplementares de proteção, como a obrigatoriedade do uso de máscaras e o
controlo do número de visitantes, em simultâneo, estabelecendo um limite
máximo, conforme a dimensão dos espaços”, mas julga inapropriado “o
encerramento completo dos cemitérios”, com base no facto de a emergência
sanitária já durar desde março e de “muitas famílias enlutadas” neste período” sequer
terem podido “acompanhar adequadamente os seus entes queridos em exéquias
muitas vezes celebradas, como diz o Papa Francisco, de um modo que fere a alma”.
Por isso, determina – e bem – que as celebrações se façam “nas igrejas e
noutros espaços utilizados para o efeito nestes tempos de emergência, cumprindo
as regras já estabelecidas”, mas ressalva que se poderá aumentar “a sua oferta,
sobretudo no dia 2 de novembro, em horários que sejam mais convenientes à
comunidade”. Mais recomenda aos párocos que, “para diminuir ocasiões de maior
aglomeração de pessoas, que, nestes dias, em coordenação com as autoridades
locais, considerem “a possibilidade de celebrar a Eucaristia nos cemitérios” e
que as romagens aos cemitérios em sufrágio dos Fiéis Defuntos “se façam com
acompanhamento mínimo, respeitando sempre as normas de segurança e de saúde”.
Ora é aqui que bate o ponto. Parece-me que bem mais avisados estiveram os
prelados das dioceses de Aveiro, Viseu e Guarda ao anteciparem-se a recomendar
que se evitassem as romagens aos cemitérios e as celebrações nesses espaços. Ou
seja, não se opondo à visita individualizada sob controlo dos responsáveis autárquicos,
desaconselham os atos comunitários celebrativos ali. E, a meu ver, têm razão. Com
efeito, o país está novamente em situação de calamidade por via do aumento
significativo de infetados, internados e falecidos. Podem discutir-se as
razões: regresso quase massivo ao trabalho presencial, reabertura das escolas,
excessos em festas e outros convívios familiares e grupais, deslaçamento do cumprimento
de regras sanitárias, tempos mais propícios a infeções. Porém, os factos não
podem escamotear-se.
Os cemitérios não são frequentados apenas por católicos, como os templos próprios,
mas por todos os cidadãos que pretendam fazer memória dos seus finados. E a natural
tentação de sobreaglomeração torna-se mais perigosa na maior parte dos cemitérios
que noutros locais onde foram combinadas e ditadas regras bem apertadas, como foi
o caso da Festa do Avante e da Peregrinação Internacional Aniversária ao
Santuário de Fátima em outubro, neste caso, porque o evento do dia 13 de
setembro, que foi a um domingo, pôs em pânico as autoridades e a própria gestão
do Santuário. E recordo que a base do excecional aperto de regras para Fátima
foi a diversidade de peregrinos em que avultariam os grupos das pessoas vulneráveis
e dependentes, o que sucede também nos cemitérios. Se a Fátima muitos não podem
deslocar-se, aos cemitérios quase todos podem e querem deslocar-se e em circunstâncias
de tristeza e até de pranto.
Ora, se em Fátima e no Avante, era possível marcar “lugares de ocupação
visíveis no solo e com o devido distanciamento”, na maior parte dos cemitérios
não o é, dada a proximidade de campas e jazigos; e, mesmo que se atenda a
legitimidade da proximidade familiar, acontece que as famílias ali correm o
risco da colagem de umas famílias às outras, o que pode originar surtos.
Assim, a nota da CEP, que poderia constituir uma oportunidade pedagógica de
doutrinação e orientação, torna-se ambígua e quase importuna. Salva-se, não obstante,
a notícia de que, “no dia 14 de novembro, às 11 horas, na Basílica da
Santíssima Trindade do Santuário de Fátima, a Conferência Episcopal celebrará
uma Eucaristia de sufrágio pelas vítimas da pandemia em Portugal”, bem como a
exortação aos “fiéis das nossas comunidades, unidos aos seus pastores”, a que “transfigurem
a saudade e o luto próprio destes dias com a luz pascal que Jesus Cristo
Ressuscitado acendeu para sempre em nossos corações”.
Tive alguma experiência de celebrações, inclusive da Eucaristia, em cemitérios,
mas em circunstâncias de normalidade. E via como as pessoas se comportavam com tocante
unção afetiva e religiosa. Não se dispensavam de estar junto das campas e
jazigos dos familiares de lhes prestar os devidos cuidados de limpeza e ornato,
mas na altura da celebração juntavam-se na ala onde decorria o ato de fé comunitário
e, nalguns casos, a pedido do celebrante, no momento do ofertório, os
cuidadores de cada campa ou jazigo deslocavam-se lá e levavam ao altar improvisado
uma flor para que o seu odor e cor se juntasse ao coletivo e fosse simbólica oferta
pessoal e comunitária ao Criador e Redentor. Porém, já em tempos de normalidade,
sucedia, por vezes, que as condições atmosféricas impediam ou limitavam a
romagem aos cemitérios. E não deixava de se rezar e celebrar pelos defuntos nas
igrejas ou nos adros.
Por isso, agora, em contexto pandémico, para lá das possíveis romagens
individualizadas, quem conhece o ordenamento dos cemitérios, o que alguns
prelados parecem não conhecer bem, entenderá que as celebrações deverão ser multiplicadas
sendo distribuídas pelos vários dias – de 31 de outubro a 30 de novembro (novembro é
o Mês das Almas) –, mas nas
igrejas e outros espaços acomodáveis às regras sanitárias que o momento impõe; e,
obviamente, aproveitar o ensejo para a ação pastoral em torno da formação e do
reforço da fé crida, celebrada e vivida.
2020.10.21 –
Louro de Carvalho
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