quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Os Bispos de Portugal querem “avivar a chama da esperança”

 

No passado dia 12 de outubro, o Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) divulgou uma nota intitulada “avivar a chama da esperança”, sobre a data da solenidade de Todos os Santos (1 de novembro) e da Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (2 de novembro).

Considerando que se trata de dias “intensamente sentidos” pela piedade dos fiéis católicos do país, com a “romagem de fé e esperança aos cemitérios onde repousam os restos mortais dos seus entes queridos, que consumaram o seu batismo participando até ao fim no mistério pascal, morrendo com Cristo para com Cristo ressuscitarem”, aquele órgão da CEP começa por referir que o povo aproveita os dias anteriores ao dos Fiéis Defuntos, por este ser laboral, nomeadamente a solenidade de Todos os Santos, que é feriado nacional, “para fazer memória dos que nos precederam, marcados com o sinal da fé, ornando os cemitérios com flores e acendendo luzes expressivas dos seus sufrágios e preces” (vd n.º 2).

Tudo o que é dito no parágrafo 2 da predita nota é rigorosamente verdade, mas a CEP deveria lembrar-se de que, nos apertados tempos da troika, a Igreja Católica, obviamente não através da CEP, mas através da sua representação da Santa Sé em Portugal, devidamente informada por bispos portugueses, contemporizou com um Estado somítico na suspensão deste feriado que agora a Conferência Episcopal encarece desnecessariamente. Ademais, parece esquecer que não são apenas os fiéis católicos que rumam aos cemitérios nestes dias a homenagear os seus entes queridos, mas no geral todos os cidadãos. Quanto aos católicos, é até de notar que muitos se escapam da Missa de dia santo para acorrer ao cemitério quando lhes dá mais jeito.   

Reconhece a CEP que “não depende da Igreja a gestão da grande maioria dos cemitérios nacionais”. Com efeito, os cemitérios municipais estão sob a alçada das respetivas câmaras municipais, que gerem os municípios, e os cemitérios paroquiais estão sob a alçada das respetivas juntas de freguesia, que gerem as freguesias, sendo residual o número de cemitérios que é gerido por entidades ligadas diretamente à Igreja. Contudo, os Bispos dizem confiar que as autarquias e entidades que tutelam os cemitérios “saberão interpretar as exigências do bem comum encontrando um justo, mas difícil equilíbrio entre os imperativos de proteger a saúde pública e o respeito pelos direitos dos cidadãos”.

Ora, têm razão ao afirmarem que “não se adoece apenas de covid-19”, mas tal aviso deveria ter sido insistentemente feito a propósito do que se passou e passa nos hospitais públicos e privados e unidades de saúde familiar, onde parece que tudo o mais (consultas, exames e cirurgias) ficou para trás e, nalguns casos, ainda continua ou voltará a continuar a ficar para trás. E têm razão quando imputam “sofrimento e doença, por vezes, mortal” também à “impossibilidade de exprimir de forma sensível e concreta saudades e afetos”, o que, salvo honrosas exceções, pouco foi dito aquando dos funerais quase ocultos, feitos à margem da comunidade e das famílias.

Entende a CEP que o estado atual da pandemia torna sensata a imposição de “medidas suplementares de proteção, como a obrigatoriedade do uso de máscaras e o controlo do número de visitantes, em simultâneo, estabelecendo um limite máximo, conforme a dimensão dos espaços”, mas julga inapropriado “o encerramento completo dos cemitérios”, com base no facto de a emergência sanitária já durar desde março e de “muitas famílias enlutadas” neste período” sequer terem podido “acompanhar adequadamente os seus entes queridos em exéquias muitas vezes celebradas, como diz o Papa Francisco, de um modo que fere a alma”.

Por isso, determina – e bem – que as celebrações se façam “nas igrejas e noutros espaços utilizados para o efeito nestes tempos de emergência, cumprindo as regras já estabelecidas”, mas ressalva que se poderá aumentar “a sua oferta, sobretudo no dia 2 de novembro, em horários que sejam mais convenientes à comunidade”. Mais recomenda aos párocos que, “para diminuir ocasiões de maior aglomeração de pessoas, que, nestes dias, em coordenação com as autoridades locais, considerem “a possibilidade de celebrar a Eucaristia nos cemitérios” e que as romagens aos cemitérios em sufrágio dos Fiéis Defuntos “se façam com acompanhamento mínimo, respeitando sempre as normas de segurança e de saúde”.

Ora é aqui que bate o ponto. Parece-me que bem mais avisados estiveram os prelados das dioceses de Aveiro, Viseu e Guarda ao anteciparem-se a recomendar que se evitassem as romagens aos cemitérios e as celebrações nesses espaços. Ou seja, não se opondo à visita individualizada sob controlo dos responsáveis autárquicos, desaconselham os atos comunitários celebrativos ali. E, a meu ver, têm razão. Com efeito, o país está novamente em situação de calamidade por via do aumento significativo de infetados, internados e falecidos. Podem discutir-se as razões: regresso quase massivo ao trabalho presencial, reabertura das escolas, excessos em festas e outros convívios familiares e grupais, deslaçamento do cumprimento de regras sanitárias, tempos mais propícios a infeções. Porém, os factos não podem escamotear-se.

Os cemitérios não são frequentados apenas por católicos, como os templos próprios, mas por todos os cidadãos que pretendam fazer memória dos seus finados. E a natural tentação de sobreaglomeração torna-se mais perigosa na maior parte dos cemitérios que noutros locais onde foram combinadas e ditadas regras bem apertadas, como foi o caso da Festa do Avante e da Peregrinação Internacional Aniversária ao Santuário de Fátima em outubro, neste caso, porque o evento do dia 13 de setembro, que foi a um domingo, pôs em pânico as autoridades e a própria gestão do Santuário. E recordo que a base do excecional aperto de regras para Fátima foi a diversidade de peregrinos em que avultariam os grupos das pessoas vulneráveis e dependentes, o que sucede também nos cemitérios. Se a Fátima muitos não podem deslocar-se, aos cemitérios quase todos podem e querem deslocar-se e em circunstâncias de tristeza e até de pranto.

Ora, se em Fátima e no Avante, era possível marcar “lugares de ocupação visíveis no solo e com o devido distanciamento”, na maior parte dos cemitérios não o é, dada a proximidade de campas e jazigos; e, mesmo que se atenda a legitimidade da proximidade familiar, acontece que as famílias ali correm o risco da colagem de umas famílias às outras, o que pode originar surtos.

Assim, a nota da CEP, que poderia constituir uma oportunidade pedagógica de doutrinação e orientação, torna-se ambígua e quase importuna. Salva-se, não obstante, a notícia de que, “no dia 14 de novembro, às 11 horas, na Basílica da Santíssima Trindade do Santuário de Fátima, a Conferência Episcopal celebrará uma Eucaristia de sufrágio pelas vítimas da pandemia em Portugal”, bem como a exortação aos “fiéis das nossas comunidades, unidos aos seus pastores”, a que “transfigurem a saudade e o luto próprio destes dias com a luz pascal que Jesus Cristo Ressuscitado acendeu para sempre em nossos corações”.

Tive alguma experiência de celebrações, inclusive da Eucaristia, em cemitérios, mas em circunstâncias de normalidade. E via como as pessoas se comportavam com tocante unção afetiva e religiosa. Não se dispensavam de estar junto das campas e jazigos dos familiares de lhes prestar os devidos cuidados de limpeza e ornato, mas na altura da celebração juntavam-se na ala onde decorria o ato de fé comunitário e, nalguns casos, a pedido do celebrante, no momento do ofertório, os cuidadores de cada campa ou jazigo deslocavam-se lá e levavam ao altar improvisado uma flor para que o seu odor e cor se juntasse ao coletivo e fosse simbólica oferta pessoal e comunitária ao Criador e Redentor. Porém, já em tempos de normalidade, sucedia, por vezes, que as condições atmosféricas impediam ou limitavam a romagem aos cemitérios. E não deixava de se rezar e celebrar pelos defuntos nas igrejas ou nos adros.

Por isso, agora, em contexto pandémico, para lá das possíveis romagens individualizadas, quem conhece o ordenamento dos cemitérios, o que alguns prelados parecem não conhecer bem, entenderá que as celebrações deverão ser multiplicadas sendo distribuídas pelos vários dias – de 31 de outubro a 30 de novembro (novembro é o Mês das Almas) –, mas nas igrejas e outros espaços acomodáveis às regras sanitárias que o momento impõe; e, obviamente, aproveitar o ensejo para a ação pastoral em torno da formação e do reforço da fé crida, celebrada e vivida.

2020.10.21 – Louro de Carvalho

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