É tentador fazer uma leitura simplista do episódio
narrado por Mateus (Mt
22,15-22), com paralelos
em Marcos (Mc 12,13-17) e Lucas (Lc 20,20-26), em que fariseus e herodianos em
conjunto tentam enredar Jesus pela palavra, colocando-lhe uma pergunta
traiçoeira, assim formulada: “É permitido dar (dídômi)
ou não o imposto a César? (Mt
22,17).
Na resposta de Jesus, que não diz que deem (dídômi), mas restituam (apodídômi)
a César o que é de César e as coisas que são de Deus a Deus, muitos veem a
chave teológica para a autonomia das realidades terrestres – e muito bem.
Todavia, há que entender esta vertente autónoma no seu justo sentido e não como
uma simples “cada coisa no seu lugar”, muito menos como vias opostas e hostis
as terrestres e as de Deus, ou a legitimidade para regular as relações de
convivência entre a Igreja e os Estados. Isso é importante, mas sabe a muito pouco.
Tanto assim é que aqueles que se autoapresentaram como
interlocutores de Jesus conheciam-No bem e começam por Lhe rasgar justas loas:
é sincero, ensina com verdade o caminho de Deus e não faz aceção de pessoas. Ou
seja, eles sabem que os caminhos dos homens se cruzam com os de Deus, mas não
creem que sejam diferentes e autónomos: misturam tudo num cesaropapismo.
Porém, Jesus não aceita que os mentirosos e mal
intencionados escondam a sua hipocrisia sob a capa da bondade aparente ou da
eventual boa doutrina. E desarma-os.
Descobrindo-lhes de imediato a malícia deles, vai
direito ao assunto, sem rodeios ou panos quentes, e leva a sério o que os interlocutores
lhe dizem por malícia encriptada. Chama-lhes “hipócritas” (palavra que ocorre 30 vezes em
Mateus), ou seja, mentirosos
camuflados sob um manto de verdade. E, taticamente, pede que Lhe mostrem a
moeda do imposto per
capita (kênsos,
em grego e census, em latim) que, desde o ano 60 d. C., todos os
judeus adultos (incluindo
mulheres e escravos)
tinham de pagar ao Império.
São rápidos a apresentar um denário, moeda romana
correspondente ao salário de um dia de trabalho não especializado, a qual tinha
ao centro a efígie de Tibério coroado de grinaldas (reinou de 14 a 37 d. C.) e, em cercadura, a inscrição Ti[berius] Caesar Divi Aug[usti] F[ilius]
Augustus, tendo no
reverso Ponti[fex]
Maxim[us]. E, na
perspetiva do narrador Jesus diz-lhes (légei autoîs –
presente histórico), em
tom contundente: “De quem é esta imagem e
a inscrição?” (Mt
22,20). Obviamente os
questionadores tiveram de responder que uma e outra são de César.
Dom António Couto, Bispo de Lamego, chama a atenção
apara o facto de tudo se passar no recinto sagrado do Templo, sendo que a moeda
que estes ditos justos exibem infringe os dois primeiros mandamentos (Ex 20,3. 4): o que proíbe que se esculpam
imagens; e o que proíbe o culto a outros deuses. E a inscrição indicava o
Imperador Romano como filho de um deus. Ora, Jesus, se pode reconhecer o poder
de César não lhe pode reconhecer a condição de deus.
Na verdade, como pormenoriza Dom António Couto, o
episódio decorre no Templo, provavelmente no Átrio dos Gentios, vasta área de
13,5 hectares, propícia ao encontro de muita gente e onde Jesus se encontra a
ensinar. E é ali que, de forma premeditada malévola, os adversários de Jesus O
tentam surpreender com uma pergunta política fechada, ou seja, como nos
referendos, preparada para uma resposta de “sim” ou de “não”. No caso, tanto
valia responder de um modo como de outro. Com efeito, se Jesus respondesse
“sim”, seria visto como colaboracionista com o ocupante e perderia todo o
crédito acumulado aos olhos das multidões que O viam como profeta, totalmente
do lado de Deus, ou seja, cairia em desgraça o grande aliado do povo, povo que
os adversários de Jesus temiam, pelo que até agora não conseguiram prendê-Lo e
eliminá-Lo (cf Mateus
21,46). E, se
respondesse “não”, seria denunciado como amotinador às autoridades romanas, que
certamente O executariam. Com este dilema, os fariseus pensam retribuir-Lhe o
embaraço em que os metera com a pergunta acerca da origem do batismo de João,
se do céu, se da terra, de que não saíram airosamente (cf Mt 21,23-27).
O narrador continua a usar o presente histórico do
verbo “légô” para introduzir a
resposta de Jesus (diz-lhes): “Restituí (em grego; “apódote”: em latim,
“reddite”) então as coisas de César a César e
as coisas de Deus a Deus!” (Mt 22,21). Não se
tratando de dar, mas de devolver ou restituir, torna-se patente que, se a moeda
vem de César, a César deve voltar. Porém Jesus, o verdadeiro Filho de Deus e
“imagem do Deus invisível” (Cl 1,15), que até
os demónios e os falsos interlocutores reconhecem que está vinculado a Deus,
pois afirmam que ensina o caminho de Deus (Mt 22,16), é para retornar a Deus e, como Ele, “o ser humano, homem e mulher, criado
à imagem de Deus (Gn
1,26-27), é para
devolver a Deus”. Porém, estes impostores montaram a armadilha com o fito de
entregarem Jesus ao poder de César, chegando a acusá-Lo de instigar o povo a
não pagar o imposto porque Ele próprio Se intitulava de Messias-Rei (cf Lc 23,2).
A perícopa evangélica que relata o episódio e que se
proclama e medita neste XXIX domingo do Tempo Comum no Ano A omite, sem motivo,
o desfecho por parte dos interlocutores de Jesus apanhados no buís que eles
próprios montaram. Refere o texto que ficaram maravilhados (não convertidos) e que se foram embora.
Caçados por excesso, pois, como refere o texto,
ficaram maravilhados e foram-se embora (Mt 22,22), foram arranjando meios mais ocultos e mais insidiosos para levarem a
cabo o iníquo propósito de retirar Jesus dos caminhos de Deus para O entregarem
ao poder de César.
No atinente à autonomia das realidades terrestres, é
de assentar em que ela implica o conhecimento dos mecanismos ou leis da natureza
e o respeito por esta, para que possamos viver e prosperar sem que ela se volte
contra nós, bem como conhecer os movimentos sociais, económicos e políticos e
os avanços da ciência e da técnica, sabendo conviver com eles, sem os
hostilizar, mas sem necessidade de submissão a eles tout court.
Quer isto dizer que não podemos explicar tudo à face
da religião, assegurando, por exemplo, que um cataclismo, uma bancarrota, uma
guerra, uma onda de fome ou uma pandemia são queridos por Deus, que surgem por
castigo de Deus ou por culpa de todos e cada um de nós. Por outro lado, há que
intuir nas realidades do mundo tanto as sementes de iniquidade que por aí estão
inoculadas como os sinais Deus – os tais sinais dos tempos – que afloram no
mundo por força do Verbo de Deus que se disseminou pelo mundo (o tal verbum seminale ou lógos
spermatikós).
A esta luz, a laicidade é um bem porque reconhece a
validade autonómica da religião enformada pela fé e a das realidades políticas,
sociais, económicas, científicas e técnicas. Porém, não reclama a independência
em relação a outras realidades, nomeadamente as espirituais, apenas declarando
que não são da competência da política, da economia, da sociologia, da técnica
ou da ciência o pronunciamento em matéria religiosa. No entanto, em todos os
casos, se reclama uma ética, uma moral, uma deontologia, uma diceologia. Já o
laicismo facilmente envereda pela via da indiferença em relação ao dado
religioso e da sua rejeição chegando ao ponto de o combater, hostilizar e
proscrever ou, remetê-lo para a esfera privada e íntima. E, em contrapartida,
assume como religião o culto da personalidade ou um pretenso e absoluto
civismo. É, em certa medida, o que sucede quando o ateísmo passa a antiteísmo.
Neste aspeto, não se trata duma solução melhor que a do clericalismo que pretenda
sujeitar ao dado religioso todos os outros dados ou a sujeição dos poderes
temporais ao poder espiritual. É por isso que o mais prático será o regime da
convivência respeitosa e cooperação quando se trate de objetivos comuns em nome
da dignidade humana, da promoção social, do bem comum.
Recordo que, aquando do estudo da teologia
fundamental, se elencava uma série de lugares teológicos, como, por exemplo, a
Escritura, os Padres da Igreja, os Concílios, o Magistério dos Pontífices, o
Código de Direito Canónico, a Liturgia, o sentir do Povo de Deus, etc. Hoje bem
se pode considerar lugar teológico a cibernética, o trabalho, o lazer, o corpo
humano, o povo pobre e/ou oprimido, donde podem emergir teologias setoriais de momentosa
oportunidade.
É, de facto, importante que tudo o que possa
colocar-se sob a égide de Deus se coloque, uma vez que tudo vem de Deus. E,
neste sentido, não há que virar as costas à política, à economia, à sociedade,
à ciência e à técnica, mas considerá-las autónomas e amigas de toda a atividade
humana e propiciadoras do bem-estar de todos.
Por isso, os cristãos têm de saber olhar para a
política como nobre forma de empenhamento social e imbuí-la do espírito com que
foram formados evangelicamente; têm de conhecer a sociedade em que vivem e
cultivar a amizade social numa linha de fraternidade afetiva e efetiva; devem
denunciar a economia que, sujeita ao poderio financeiro e ao lucro absoluto,
mata porque oprime, explora, trafica e descarta; têm de incrementar a ciência e
a técnica, até para, com o auxílio do conhecimento e das destrezas, poderem
mais fácil e eficazmente cumprir a sua missão evangélica e humana, sem se
esquecerem de retribuir a Deus o que é de Deus, que é afinal o homem, a
natureza, o universo. Os cristãos não podem deixar-se encantar e anestesiar com
o poder deste mundo, mas fazer tudo para que ele sirva e não se sirva.
Ora, o episódio mateano em referência, que assenta
numa tentativa de cilada ao Mestre dos Mestres, acaba por constituir uma lição
de sinceridade, contra a hipocrisia demolidora, de verdade, contra a mentira
instigada pelo diabo, e de conhecimento dos caminhos de Deus, contra os
caminhos da arrogância despótica cultivada tantas vezes por cada um segundo as
suas possibilidades – uma lição de serviço a Deus e de relativização do poder
humano.
Ao invés da nossa malícia, tantas vezes travestida
hipocritamente de bondade, Deus olha-nos com bondade e os seus desígnios, mesmo
quando escolhe um estrangeiro, são sempre por causa de nós, porque nos ama (cf Is 45,1.4-6). Não é de esquecer que São Paulo VI,
quando Arcebispo de Milão sob o nome de Giovanni Montini, dizia que o grande
pregão do católico seria passar por cada um a dizer: “Deus ama-te”. É algo que deveríamos procurar repetir a cada pessoa
e em cada comunidade inspirados no dinamismo deste 94.º Dia Mundial das Missões. E, construindo um caldo de cultura de
diálogo e de encontro, poderemos dizer “Eis-me
aqui, envia-me!”, a arrotear terreno para que seja propício ao acolhimento
da mensagem de fraternidade, amor e paz independentemente dos regimes, das
etnias, das culturas e das religiões.
Então poderemos entoar com alegria o Salmo 96, cuja
melodia está no pergaminho da natureza e da história e no rosto de cada irmão e
da criação inteira, um cântico novo que, no dizer de Santo Agostinho, só o
homem novo pode cantar junto do Ressuscitado e em Igreja.
2020.10.18
– Louro de Carvalho
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