sábado, 10 de outubro de 2020

A vertente política da Encíclica “Fratelli Tutti”

 

Já muito se tem comentado a recente encíclica de Francisco mobilizadora de atenções e reflexões em todo o mundo e já foram dadas a conhecer as sete chaves da sua leitura oferecidas por Dom Víctor Manuel Fernández, Bispo de La Plata (Argentina) no Vatican News: o dinamismo universal do amor; a relação entre local e universal; a cultura do encontro; a dignidade de todo o ser humano para lá das circunstâncias; o destino comum dos bens; a promoção humana através do trabalho; e a necessidade de uma política saudável”, ou seja, “não sujeita à economia e aos poderes tecnocráticos”. Este clavismo septenário interpreta cabalmente o sentido da fraternidade concreta proposta pelo Papa à Igreja e ao mundo. Porém, receando que fiquemos num sentido piedoso para com uma fraternidade alegadamente impossível de atingir graças à real falta de vontade de mudança de pessoas, sistemas e estruturas, julgo conveniente abordar o claro lado político deste momentoso documento papal, a que o Pontífice dedica todo o capítulo V sob o título “A POLÍTICA MELHOR”, abrangendo os nn. 154 a 197 (ao todo 44 nn.), o segundo maior capítulo, e chamando as coisas pelo seus nomes.

Não sendo um tema teleológico, torna-se nevrálgico no documento por ter uma situação central se considerarmos como um capítulo o conjunto formado pela “Oração ao Criador” e pela “Oração Ecuménica”, que bem merecem essa categoria, embora a ultrapassem na importância. Por outro lado, “A política melhor” é um dado crucial enquanto necessário e poderoso instrumento ao serviço da fraternidade, estribado na categoria de “povo”.

Não querendo perder-me em relação ao que Francisco não é ou não quer dizer, advirto que nem é marxista nem liberal e que, embora a Igreja não tenha uma ambição política nem uma matriz ideológica, ultrapassa na sua postura e intervenção a perícia em humanidade confessada por São João Paulo II. Intervém em todos os areópagos onde lhe seja possível fazê-lo, mas sem se prender a uma linha partidária. Fá-lo, sim, em nome e em prol de princípios de verdadeira política, não querendo contestar regimes, sistemas, núcleos ideológicos, mas podando os seus abusos e rumos perversos e, dada a situação a que o mundo chegou, preconiza que é a hora de arrepiar caminho e mudar de rumo. E este Papa não tem papas na língua nem ferrugem na pena.

Recordo que um professor dizia que o mundo conheceu três pecados originais: o de Adão e Eva; o liberalismo e o marxismo. E justificava-se pelo facto de todos esses azarem uma reviravolta dramática profunda no percurso do homem e da sociedade, cavando fossos gigantescos entre as pessoas e entre os povos, seja pelo ódio fratricida, seja pelo capitalismo privado ou estatal.        

Que a política é necessária para a fraternidade di-lo o Papa logo no n.º 154:

Para se tornar possível o desenvolvimento duma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum”.

Porém, logo aí verifica que muitas das formas políticas “dificultam o caminho para um mundo diferente”. E exemplifica com os “populismos” que escondem “o desprezo pelos vulneráveis” e os liberalismos postos “ao serviço dos interesses económicos dos poderosos” – obstando à criação dum mundo aberto, que “inclua os mais frágeis e respeite as diferentes culturas”.

Depois de constatar a catalogação emergente entre “populistas” e não populistas, Bergoglio considera que a introdução do populismo como chave de leitura da realidade social “ignora a legitimidade da noção de povo”, noção necessária para garantir que a sociedade é mais que a soma de indivíduos e alicerçar a democracia enquanto governo do povo. E, se os fenómenos sociais estruturam maiorias e aspirações comunitárias, também se pode pensar em objetivos comuns, apesar das diferenças, “para implementar juntos um projeto compartilhado”, o que assenta na dimensão de “povo” e de iniciativa ou de adesão “popular”.

O Papa não se dispensa de refletir sobre a verdadeira noção de povo, que ultrapassa as categorias lógicas e míticas, de modo que “pertencer a um povo é fazer parte duma identidade comum, formada por vínculos sociais e culturais”, num processo lento “rumo a um projeto comum”. E reconhece que há líderes capazes de interpretar o sentir dum povo, a sua dinâmica cultural e as grandes tendências duma sociedade, pelo que o servem congregando, guiando e tendo “a capacidade de ceder o lugar a outros na busca do bem comum” – o que não sucede quando se trata da habilidade de atrair consensos “a fim de instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder” ou quando se pretende “o servilismo das instituições e da legalidade”.

Sendo a categoria de povo aberta, viva, dinâmica e evolutiva, os populistas deformam-na pondo-a ao serviço de interesses próprios e imediatos.

Ora, ser verdadeiramente popular é garantir a todos a possibilidade de fazer germinar as sementes que Deus pôs em cada um. Por isso, o Papa observa que “ajudar os pobres com o dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências”, sendo que o objetivo é “consentir-lhes uma vida digna através do trabalho”, que é uma dimensão essencial da vida social, pois, além de ser um modo de ganhar o pão, é meio de crescimento pessoal, de estabelecimento de relações sadias, de expressão de si próprio, de partilha de dons, de corresponsabilidade no desenvolvimento do mundo – de viver como povo.

Porém, este comunitarismo esbarra nas “visões liberais”, que falam de respeito pelas liberdades, “mas sem a raiz duma narrativa comum”, e chamam populistas a quantos defendem os direitos dos mais frágeis da sociedade. Para tais visões, a categoria de povo é pura mitificação. Ora, como diz o Papa, nem a ideia de povo nem a de próximo são categorias míticas ou românticas que excluam ou desprezem a organização social, a ciência e as instituições da sociedade civil.

No n.º 164, Francisco apresenta a “caridade” como aglutinadora da dimensão mística e da institucional, visto que “implica um caminho eficaz de transformação da história que exige incorporar tudo: instituições, direito, técnica, experiência, contribuições profissionais, análise científica, procedimentos administrativos…”. E, logo a seguir, diz que, na sua dedicação, que é capaz de incluir tudo, a caridade “se deve expressar no encontro de pessoa a pessoa” e “através dos vários recursos que as instituições duma sociedade organizada, livre e criativa são capazes de gerar”, como sucedeu com o bom samaritano, que precisou duma estalagem resolver o que não estava em condições de garantir sozinho.

Tudo isto é ignorado pela propaganda e pelos criadores de opinião pública ao persistirem “em fomentar uma cultura individualista e ingénua à vista de interesses económicos desenfreados e da organização das sociedades ao serviço daqueles que já têm demasiado poder”. Por isso, a “crítica ao paradigma tecnocrático” não passa apenas pelo controlo dos seus excessos, mas sobretudo pelo domínio da concupiscência que acompanha o homem de todos os tempos e lugares, com aposta na tarefa educativa com vista ao “desenvolvimento de hábitos solidários, a capacidade de pensar a vida humana de forma mais integral, a profundidade espiritual”, para dar qualidade às relações humanas, de modo que seja a sociedade a reagir às injustiças, aberrações, abusos dos poderes económicos, tecnológicos, políticos e mediáticos. Com efeito, o mercado não resolve tudo e o “neoliberalismo” reproduz-se recorrendo à magia do gotejamento como única via para resolver os problemas sociais, como se a suposta redistribuição resolvesse a desigualdade, que é fonte de novas formas de violência a ameaçar o tecido social.

Por isso, é indispensável “uma política económica ativa”, que promova “uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial”, para possibilitar o aumento dos postos de trabalho, bem como a procura de formas internas de solidariedade e de confiança mútua para o mercado cumprir a própria função económica, pondo a “dignidade humana” no centro e sobre este pilar construindo as estruturas sociais alternativas de que precisamos. Depois – diz o Papa – é preciso pensar a participação social, política e económica segundo modalidades que incluam “os movimentos populares” e animem as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais a integrar os excluídos na construção do destino comum, a coordenar as experiências de solidariedade e a imprimir os processos de mudança necessários para uma verdadeira política com os pobres e dos pobres.

No quadro internacional”, o Papa evoca a crise de 2007 e 2008, que devia desenvolver uma economia atenta aos princípios éticos e regulamentadora da atividade financeira, mas redundou em maior liberdade para os poderosos. Ora, dar a cada um o que lhe é devido, na definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar omnipotente e pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais.

Depois, regista a perda de poder dos Estados nacionais por a dimensão económico-financeira tender a prevalecer sobre a política. Por isso, devia prever-se a criação de organizações mundiais mais eficazes em assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais. Para tanto, requer-se “a reforma das Nações Unidas e da arquitetura económica e financeira internacional”, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações, o que postula coragem e generosidade para estabelecer objetivos comuns e cumprir em todo o mundo algumas normas essenciais, bem como os pactos subscritos.

Embora haja uma má noção da política, mercê dos frequentes erros, desvios, corrupção e ineficiência, “a política é necessária”, mas não sujeita à economia e à tecnocracia. Tem de ser uma política de visão ampla, que abranja num diálogo interdisciplinar os vários aspetos das crises e que reforme as instituições, as coordene e dote de bons procedimentos. De facto, a grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no “bem comum a longo prazo”, até porque a sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções ocasionais, mas só com uma economia integrada num projeto político, social, cultural e popular que vise o bem comum abrindo caminho a oportunidades diferentes, sem frenar a criatividade humana.

Isto requer o “amor político” que reconheça “todo o ser humano como um irmão ou uma irmã” e avance “para uma ordem social e política, cuja alma seja a “caridade social”. Neste sentido, há que revalorizar a política como “sublime vocação”, é uma “forma preciosa de caridade”. Com efeito, os compromissos decorrentes da doutrina social da Igreja derivam da caridade que é – na ótica de Jesus – a síntese de toda a Lei. Porém, a “caridade política” supõe a superação de toda a mentalidade individualista levando-nos a amar o “bem comum” e a buscar o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une”, pois “cada um é plenamente pessoa quando pertence a um povo e, vice-versa”, não havendo um verdadeiro povo “sem referência ao rosto de cada pessoa”. E, a partir do “amor social” eficaz,  “é possível avançar para uma “civilização do amor” de dinamismo universal a que todos nos podemos sentir chamados”. Assim, a caridade estará no centro de toda a vida social sadia e aberta, que assenta na verdade, no afeto, na eficácia e na amplitude humana e universal. Por isso, é “um ato de caridade” indispensável “o empenho com o objetivo de organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não venha a encontrar-se na miséria”, pois, se é caridade acompanhar a pessoa que sofre, também o é o que se realiza “para modificar as condições sociais que provocam o seu sofrimento”, o que implica o sacrifício da dedicação às grandes causas e a observância dos princípios da subsidiariedade e da solidariedade.

Confessa o Pontífice que “ainda estamos longe duma globalização dos direitos humanos mais essenciais”, pelo que “a política mundial não pode deixar de colocar entre os seus objetivos principais e irrenunciáveis” a eliminação efetiva da fome e da exploração e tráfico de pessoas, bem como o acesso de todos à saúde, à educação e à proteção social.

Depois, a caridade política enquanto “amor que integra e reúne expressa-se na abertura a todos, de modo que, renunciando a todo o tipo de intolerância fundamentalista que danifica as relações, se crie “aquele poliedro bom onde todos encontram um lugar”, o que não resulta de negociações de tipo económico, mas do intercâmbio de dons a favor do bem comum, no respeito e na aceitação amorosa das diferenças, dando prioridade à dignidade humana.  

Neste contexto, Francisco lembra o pedido que dirigiu com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb aos artífices da política internacional e da economia mundial para se comprometerem na difusão da tolerância, da convivência e da paz.

Indubitavelmente o político é, antes de mais, um ser humano, chamado a viver o amor nas suas relações interpessoais diárias, dando conta de que o mundo moderno tende a racionalizar a satisfação dos desejos humanos, classificados e distribuídos entre vários serviços e sabendo que “amar o mais insignificante dos seres humanos como a um irmão, como se existisse apenas ele no mundo, não é perder tempo”. Na verdade, na política “há lugar também para amar com ternura”, a ternura do amor “que se torna próximo e concreto” sobretudo para com “os mais pequeninos, frágeis e pobres”, para lá dos resultados conseguidos. E é esse amor terno que nos dá plenitude “quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes”, em vez de números. E, se os objetivos só em parte se alcançam, o político devotado sabe que “não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros” e que tudo “circula pelo mundo como uma força de vida”, na certeza de que os frutos virão, mesmo que recolhidos por outros.

Assim, segundo o Papa, “a política é mais nobre que a aparência” ou que “as diferentes formas de maquilhagem mediática”. E o balanço do político deve pautar-se – mais que pelos votos – pelo amor que pôs no seu trabalho, pelo progresso que logrou para o povo, pelos laços que estabeleceu, pela paz que alicerçou, pelas forças positivas que desencadeou.

***

Aqui deixo esta pequena reflexão sobre a última chave de leitura das elencadas pelo Bispo de La Plata, que não é das menos relevantes. Leia-se, pois, com olhos de ver toda a “Fratelli Tutti”.

2020.10.10 – Louro de Carvalho

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