Já muito se tem comentado a recente encíclica
de Francisco mobilizadora de atenções e reflexões em todo o mundo e já foram
dadas a conhecer as sete chaves da sua leitura oferecidas por Dom Víctor Manuel Fernández, Bispo de La Plata (Argentina) no Vatican News: o dinamismo universal do amor; a relação entre local e universal; a cultura do encontro; a dignidade de todo o ser humano para lá das
circunstâncias; o destino comum dos
bens; a promoção humana através do
trabalho; e a necessidade de “uma política saudável”, ou seja, “não
sujeita à economia e aos poderes tecnocráticos”. Este clavismo septenário
interpreta cabalmente o sentido da fraternidade concreta proposta pelo Papa à
Igreja e ao mundo. Porém, receando que fiquemos num sentido piedoso para com
uma fraternidade alegadamente impossível de atingir graças à real falta de
vontade de mudança de pessoas, sistemas e estruturas, julgo conveniente abordar
o claro lado político deste momentoso documento papal, a que o Pontífice dedica
todo o capítulo V sob o título “A POLÍTICA MELHOR”, abrangendo os
nn. 154 a 197 (ao todo 44 nn.), o segundo
maior capítulo, e chamando as coisas pelo seus nomes.
Não sendo um tema teleológico, torna-se nevrálgico no
documento por ter uma situação central se considerarmos como um capítulo o
conjunto formado pela “Oração ao Criador”
e pela “Oração Ecuménica”, que bem
merecem essa categoria, embora a ultrapassem na importância. Por outro lado, “A política melhor” é um dado crucial
enquanto necessário e poderoso instrumento ao serviço da fraternidade,
estribado na categoria de “povo”.
Não querendo perder-me em relação ao que Francisco não é ou
não quer dizer, advirto que nem é marxista nem liberal e que, embora a Igreja
não tenha uma ambição política nem uma matriz ideológica, ultrapassa na sua
postura e intervenção a perícia em humanidade confessada por São João Paulo II.
Intervém em todos os areópagos onde lhe seja possível fazê-lo, mas sem se
prender a uma linha partidária. Fá-lo, sim, em nome e em prol de princípios de
verdadeira política, não querendo contestar regimes, sistemas, núcleos
ideológicos, mas podando os seus abusos e rumos perversos e, dada a situação a
que o mundo chegou, preconiza que é a hora de arrepiar caminho e mudar de rumo.
E este Papa não tem papas na língua nem ferrugem na pena.
Recordo que um professor dizia que o mundo conheceu três
pecados originais: o de Adão e Eva; o liberalismo e o marxismo. E
justificava-se pelo facto de todos esses azarem uma reviravolta dramática
profunda no percurso do homem e da sociedade, cavando fossos gigantescos entre
as pessoas e entre os povos, seja pelo ódio fratricida, seja pelo capitalismo
privado ou estatal.
Que a política é necessária para a fraternidade di-lo o Papa
logo no n.º 154:
“Para se tornar possível o desenvolvimento
duma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e
nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor, a política
colocada ao serviço do verdadeiro bem comum”.
Porém, logo aí verifica que muitas das formas políticas “dificultam o caminho
para um mundo diferente”. E exemplifica com os “populismos” que escondem
“o desprezo pelos vulneráveis” e os liberalismos postos “ao serviço dos
interesses económicos dos poderosos” – obstando à criação dum mundo aberto, que
“inclua os mais frágeis e respeite as diferentes culturas”.
Depois de constatar a catalogação emergente entre “populistas” e não
populistas, Bergoglio considera que a introdução do populismo como chave de
leitura da realidade social “ignora a legitimidade da noção de povo”, noção
necessária para garantir que a sociedade é mais que a soma de indivíduos e
alicerçar a democracia enquanto governo do povo. E, se os fenómenos sociais estruturam
maiorias e aspirações comunitárias, também se pode pensar em objetivos comuns, apesar
das diferenças, “para implementar juntos um projeto compartilhado”, o que
assenta na dimensão de “povo” e de
iniciativa ou de adesão “popular”.
O Papa não se dispensa de refletir sobre a verdadeira noção de povo, que
ultrapassa as categorias lógicas e míticas, de modo que “pertencer a um povo é
fazer parte duma identidade comum, formada por vínculos sociais e culturais”,
num processo lento “rumo a um projeto comum”. E reconhece que há líderes
capazes de interpretar o sentir dum povo, a sua dinâmica cultural e as grandes
tendências duma sociedade, pelo que o servem congregando, guiando e tendo “a capacidade
de ceder o lugar a outros na busca do bem comum” – o que não sucede quando se
trata da habilidade de atrair consensos “a fim de instrumentalizar politicamente
a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto
pessoal e da sua permanência no poder” ou quando se pretende “o servilismo das
instituições e da legalidade”.
Ora, ser verdadeiramente popular é garantir a todos a possibilidade de
fazer germinar as sementes que Deus pôs em cada um. Por isso, o Papa observa
que “ajudar os pobres com o dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para
enfrentar emergências”, sendo que o objetivo é “consentir-lhes uma vida digna
através do trabalho”, que é uma dimensão essencial da
vida social, pois, além de ser um modo de ganhar o pão, é meio de crescimento
pessoal, de estabelecimento de relações sadias, de expressão de si próprio, de
partilha de dons, de corresponsabilidade no desenvolvimento do mundo – de viver
como povo.
Porém, este comunitarismo esbarra nas “visões liberais”, que falam de
respeito pelas liberdades, “mas sem a raiz duma narrativa comum”, e chamam
populistas a quantos defendem os direitos dos mais frágeis da sociedade. Para
tais visões, a categoria de povo é pura mitificação. Ora, como diz o Papa, nem
a ideia de povo nem a de próximo são categorias míticas ou românticas que
excluam ou desprezem a organização social, a ciência e as instituições da
sociedade civil.
No n.º 164, Francisco apresenta a “caridade” como aglutinadora da
dimensão mística e da institucional, visto que “implica um caminho eficaz de
transformação da história que exige incorporar tudo: instituições, direito,
técnica, experiência, contribuições profissionais, análise científica,
procedimentos administrativos…”. E, logo a seguir, diz que, na sua dedicação,
que é capaz de incluir tudo, a caridade “se deve expressar no encontro de
pessoa a pessoa” e “através dos vários recursos que as instituições duma
sociedade organizada, livre e criativa são capazes de gerar”, como sucedeu com o
bom samaritano, que precisou duma estalagem resolver o que não estava em
condições de garantir sozinho.
Tudo isto é ignorado pela propaganda e pelos
criadores de opinião pública ao persistirem “em fomentar uma cultura individualista e ingénua à vista
de interesses económicos desenfreados e da organização das sociedades ao
serviço daqueles que já têm demasiado poder”. Por isso, a “crítica ao paradigma
tecnocrático” não passa apenas pelo controlo dos seus excessos, mas
sobretudo pelo domínio da concupiscência que acompanha o homem de todos os tempos
e lugares, com aposta na tarefa educativa com vista ao “desenvolvimento de
hábitos solidários, a capacidade de pensar a vida humana de forma mais
integral, a profundidade espiritual”, para dar qualidade às relações humanas,
de modo que seja a sociedade a reagir às injustiças, aberrações, abusos dos
poderes económicos, tecnológicos, políticos e mediáticos. Com efeito,
o mercado não resolve tudo e o “neoliberalismo” reproduz-se recorrendo
à magia do gotejamento como única via para resolver os problemas sociais, como
se a suposta redistribuição resolvesse a desigualdade, que é fonte de novas
formas de violência a ameaçar o tecido social.
Por isso, é indispensável “uma política económica ativa”, que
promova “uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade
empresarial”, para possibilitar o aumento dos postos de trabalho, bem como a procura
de formas internas de solidariedade e de confiança mútua para o mercado cumprir
a própria função económica, pondo a “dignidade humana” no centro e sobre
este pilar construindo as estruturas sociais alternativas de que precisamos. Depois
– diz o Papa – é preciso pensar a participação social, política e económica
segundo modalidades que incluam “os movimentos populares” e animem as
estruturas de governo locais, nacionais e internacionais a integrar os
excluídos na construção do destino comum, a coordenar as experiências de solidariedade
e a imprimir os processos de mudança necessários para uma verdadeira política com
os pobres e dos pobres.
“No quadro
internacional”, o Papa evoca a crise de 2007 e 2008, que devia desenvolver uma economia atenta
aos princípios éticos e regulamentadora da atividade financeira, mas redundou
em maior liberdade para os poderosos. Ora, dar a cada um o que lhe é devido, na
definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se
pode considerar omnipotente e pisar a dignidade e os direitos dos outros
indivíduos ou dos grupos sociais.
Depois, regista a perda de poder dos Estados
nacionais por a dimensão económico-financeira tender a prevalecer sobre a
política. Por isso, devia prever-se a criação de organizações mundiais mais
eficazes em assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e
a justa defesa dos direitos humanos fundamentais. Para tanto, requer-se “a reforma
das Nações Unidas e da arquitetura económica e financeira internacional”,
para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações,
o que postula coragem e generosidade para estabelecer objetivos comuns e
cumprir em todo o mundo algumas normas essenciais, bem como os pactos subscritos.
Embora haja uma má noção da política, mercê dos frequentes erros, desvios,
corrupção e ineficiência, “a política é necessária”, mas não
sujeita à economia e à tecnocracia. Tem de ser uma política de visão ampla, que
abranja num diálogo interdisciplinar os vários aspetos das crises e que reforme
as instituições, as coordene e dote de bons procedimentos. De facto, a grandeza
política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em
grandes princípios e pensando no “bem comum a longo prazo”, até porque
a sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com
remendos ou soluções ocasionais, mas só com uma economia integrada num projeto
político, social, cultural e popular que vise o bem comum abrindo caminho a
oportunidades diferentes, sem frenar a criatividade humana.
Isto requer o “amor político” que reconheça “todo o ser humano como um irmão
ou uma irmã” e avance “para uma ordem social e política, cuja alma seja a “caridade
social”. Neste sentido, há que revalorizar a política como “sublime
vocação”, é uma “forma preciosa de caridade”. Com efeito,
os compromissos decorrentes da doutrina social da Igreja derivam da caridade
que é – na ótica de Jesus – a síntese de toda a Lei. Porém, a “caridade
política” supõe a superação de toda a mentalidade individualista levando-nos
a amar o “bem comum” e a buscar o bem de todas as pessoas, consideradas
não só individualmente, mas também na dimensão social que as une”, pois “cada
um é plenamente pessoa quando pertence a um povo e, vice-versa”, não havendo um
verdadeiro povo “sem referência ao rosto de cada pessoa”. E, a partir do “amor
social” eficaz, “é possível avançar para uma “civilização
do amor” de dinamismo universal a que todos nos podemos sentir chamados”.
Assim, a caridade estará no centro de toda a vida social sadia e aberta, que
assenta na verdade, no afeto, na eficácia e na amplitude humana e universal. Por isso, é “um ato de caridade”
indispensável “o empenho com o objetivo de organizar e estruturar a sociedade
de modo que o próximo não venha a encontrar-se na miséria”, pois, se é caridade
acompanhar a pessoa que sofre, também o é o que se realiza “para modificar as
condições sociais que provocam o seu sofrimento”, o que implica o sacrifício da
dedicação às grandes causas e a observância dos princípios da subsidiariedade
e da solidariedade.
Confessa o Pontífice que “ainda estamos longe duma globalização
dos direitos humanos mais essenciais”, pelo que “a política mundial não pode
deixar de colocar entre os seus objetivos principais e irrenunciáveis” a eliminação
efetiva da fome e da exploração e tráfico de pessoas, bem como o acesso de
todos à saúde, à educação e à proteção social.
Depois, a caridade política enquanto “amor
que integra e reúne” expressa-se
na abertura a todos, de modo que, renunciando a todo o tipo de intolerância
fundamentalista que danifica as relações, se crie “aquele poliedro bom onde
todos encontram um lugar”, o que não resulta de negociações de tipo económico,
mas do intercâmbio de dons a favor do bem comum, no respeito e na aceitação amorosa
das diferenças, dando prioridade à dignidade humana.
Neste contexto, Francisco lembra o pedido que dirigiu com o Grande Imã Ahmad
Al-Tayyeb aos artífices da política internacional e da economia mundial para se
comprometerem na difusão da tolerância, da convivência e da paz.
Indubitavelmente o político é, antes de mais, um ser humano, chamado a
viver o amor nas suas relações interpessoais diárias, dando conta de que o
mundo moderno tende a racionalizar a satisfação dos desejos humanos,
classificados e distribuídos entre vários serviços e sabendo que “amar o mais
insignificante dos seres humanos como a um irmão, como se existisse apenas ele
no mundo, não é perder tempo”. Na verdade, na política “há lugar também para
amar com ternura”, a ternura do amor “que se torna próximo e concreto”
sobretudo para com “os mais pequeninos, frágeis e pobres”, para lá dos
resultados conseguidos. E é esse amor terno que nos dá plenitude “quando
derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de
nomes”, em vez de números. E, se os objetivos só em parte se alcançam, o
político devotado sabe que “não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras
com os outros” e que tudo “circula pelo mundo como uma força de vida”, na
certeza de que os frutos virão, mesmo que recolhidos por outros.
Assim, segundo o Papa, “a política é mais nobre que a aparência” ou que “as
diferentes formas de maquilhagem mediática”. E o balanço do político deve
pautar-se – mais que pelos votos – pelo amor que pôs no seu trabalho, pelo
progresso que logrou para o povo, pelos laços que estabeleceu, pela paz que
alicerçou, pelas forças positivas que desencadeou.
***
Aqui deixo esta pequena reflexão sobre a última chave de leitura das elencadas
pelo Bispo de La Plata, que não é das menos relevantes. Leia-se, pois, com
olhos de ver toda a “Fratelli Tutti”.
2020.10.10 –
Louro de Carvalho
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