quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A Europa tem muito que dar ainda e dará redescobrindo-se

 

No passado dia 22 de outubro, memória litúrgica do Papa São João Paulo II, o Papa Francisco endereçou uma carta ao Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, para assinalar os seguintes aniversários significativos: 40.º aniversário da Comissão dos Episcopados da União Europeia (COMECE); o 50.º  aniversário das relações diplomáticas entre a Santa Sé e a União Europeia (UE); e o 50.º aniversário da presença da Santa Sé como Observador Permanente no Conselho da Europa. Para assinalar estas efemérides, estava programada, para os dias 28-30, uma visita do Cardeal Parolin a Bruxelas, que foi anulada devido ao agravamento da emergência sanitária, pelo que os encontros com as Autoridades da União Europeia e com os membros da COMECE poderão realizar-se em videoconferência.

Francisco faz menção destes cinquentenários – que marcam a cooperação da Santa Sé com estas instituições europeias –, bem como do LXX aniversário da Declaração Schuman, “facto de importância capital que inspirou o longo caminho de integração do Continente, permitindo ultrapassar as hostilidades geradas pelas duas guerras mundiais”, e, ainda, da preocupação dos delegados das Conferências Episcopais dos Estados membros da UE para favorecer “uma colaboração mais estreita entre os referidos Episcopados”, no atinente às “questões pastorais relacionadas com o desenvolvimento das competências e atividades da União”.

Convicto do papel central que o Continente teve e deverá continuar a ter na história da humanidade, embora com modulações diversas, o Papa sublinha que o projeto europeu, nascido da consciência da força da união, da superioridade da unidade sobre o conflito e da capacidade da solidariedade de se transformar em “estilo de construção da história”, dá, neste tempo de pandemia, “sinais de regressão”. Por isso, importa redescobrir “o caminho da fraternidade, que “inspirou e animou os Pais fundadores da Europa moderna”.

Diz o Papa argentino que, na verdade, a pandemia pôs a nu o contraste entre a tentação de procura de soluções unilaterais para um problema que ultrapassa as fronteiras dos Estados e o desejo convicto de percorrer o caminho da fraternidade, que é caminho da solidariedade, pondo em ação a criatividade e novas iniciativas. Porém, os passos dados neste caminho precisam de consolidação “para evitar que os impulsos centrífugos retomem força”. Neste sentido, o Pontífice vinca a atualidade das palavras do Papa São João Paulo II no “Ato Europeísta” de Santiago de Compostela, a 9 de novembro de 1982, no contexto da sua Viagem Apostólica à Espanha de 31 de outubro a 9 de novembro daquele ano: “Europa, volta a encontrar-te. Sê tu mesma”. Com efeito, um tempo de mudanças bruscas pode propiciar a perda da própria identidade, se faltarem valores compartilhados sobre os quais se funda a sociedade.

Assim, Francisco, considerando que a Europa foi “uma forja de ideais ao longo dos séculos”, exorta a que não se detenha a olhar o seu passado como álbum de recordações, para nunca se sentir cansada ou amofinada na vivência do presente e com pouca esperança ao olhar para o futuro. Ao invés, a Europa necessita de voltar a “encontrar” os seus ideais, que têm profundas raízes plurimilenares. Fazendo questão de ser ela mesma, não pode ter medo da sua história bimilenária, “que é uma janela para o futuro mais do que para o passado”, nem da sua necessidade de verdade que, desde a antiga Grécia, “abraçou a terra realçando as interrogações mais profundas de todo o ser humano”, nem da sua necessidade de justiça que se desenvolveu a partir do direito romano e “se tornou respeito por todo o ser humano e pelos seus direitos, nem da sua necessidade de eternidade, “que se espelha no teu património de fé, arte e cultura”. E, como observa o Papa, se muitos se interrogam sobre o futuro da Europa, tantos outros “a olham com esperança”, convictos de que “ela ainda tem algo a oferecer ao mundo e à humanidade” – a mesma confiança que podemos ter “a partir de valores partilhados e radicados na história e cultura desta terra”.

Posto isto, Francisco, movido pela sua solicitude de Pastor e da certeza de que a Europa ainda tem muito para dar ao mundo, questiona que sonhos para a Europa do futuro, com base no seu contributo original. Rejeita que se trate de recuperar a hegemonia política ou uma centralidade geográfica ou mesmo de gizar soluções inovadoras para os problemas económicos e sociais. E aponta como sua originalidade, antes de mais, a sua conceção do homem e da realidade, a sua capacidade de iniciativa e a sua solidariedade operosa.

Por consequência, o Papa pretende “uma Europa amiga da pessoa e das pessoas”, respeitando a dignidade de cada um, sendo a pessoa “um valor em si mesma”, pelo que deve ser a vida defendida em todos os seus momentos, deve ser o trabalho o meio privilegiado para o crescimento pessoal e a edificação do bem comum, deve ser promovida a instrução e o desenvolvimento cultural de cada um, devem ser protegidos os mais frágeis e débeis. Enfim, deve ser uma Europa que defenda os direitos e lembre os deveres que recorde que é cada um chamado a prestar a sua própria contribuição à sociedade.

Quer “uma Europa que seja uma família e uma comunidade”, valorizando as peculiaridades de cada pessoa e de cada povo, unidos por responsabilidades comuns. É a unidade nas diferenças que faz a família de povos, diversos entre si, mas “ligados por uma história e um destino comuns”. Ora, “uma Europa dividida, feita de realidades solitárias e independentes”, achar-se-á incapaz de enfrentar os desafios do futuro, mas “uma Europa-comunidade, solidária e fraterna”, valorizará as diferenças e o contributo de cada um para enfrentarmos, juntos, as questões que a aguardam: a pandemia, o desafio ecológico e a escolha entre “um modelo de vida que descarta homens e coisas e um modelo inclusivo que valoriza a criação e as criaturas”.

Quer “uma Europa solidária e generosa”, qual lugar acolhedor e hospitaleiro, onde a caridade vença “toda a forma de indiferença e egoísmo”, pois a “solidariedade inteligente” é “expressão fundamental de toda a comunidade e exige que cuidemos uns dos outros”, não se limitando apenas a atender às carências fundamentais quando necessário. E esta solidariedade exige que se conduza “quem é mais frágil por um caminho de crescimento pessoal e social, de modo que um dia possa, por sua vez, ajudar os outros”.

E, no quadro da solidariedade, que implica fazer-se próximo e que se alimenta de gratuidade e gera gratidão, Francisco deseja “uma Europa disponível, vizinha e desejosa de apoiar os outros Continentes”, pensando especialmente na África, que tem de resolver, com a cooperação internacional, os conflitos em curso e iniciar um desenvolvimento humano sustentável.

E diz o Papa que, em contraste com a gratidão que nos leva a “olhar para o outro com amor”, o esquecimento de agradecer pelos benefícios recebidos inclina-nos a fechar-nos em nós próprios vivendo no medo de tudo o que nos rodeia e é diverso de nós. Nisto se enquadra, segundo o Pontífice “a difidência a respeito dos migrantes”, que só uma Europa que seja comunidade solidária pode ultrapassar de forma profícua, tornando-se inadequadas as soluções de parte. Com efeito, como observa, o acolhimento dos migrantes não se pode limitar a meras operações de assistência a quem chega, frequentemente fugindo de conflitos, carestias ou desastres naturais, mas deve permitir a sua integração de tal modo que possam “conhecer, respeitar e até assimilar a cultura e as tradições da nação que os recebe”.

Por fim, o Papa ambiciona “uma Europa saudavelmente laica”, onde Deus e César apareçam distintos, mas não contrapostos, qual terra aberta à transcendência, onde o crente se sinta livre para professar publicamente a fé e propor o seu ponto de vista à sociedade, sem qualquer confessionalismo de Estado, mas também sem o laicismo absoluto que feche as portas aos outros e sobretudo a Deus, pois, como declara, “uma cultura ou um sistema político que não respeite a abertura à transcendência não respeita adequadamente a pessoa humana”. E, outrossim, quer o Pontífice que os cristãos tenham a grande responsabilidade de, como o fermento na massa, se sentirem chamados a “despertar a consciência da Europa para animar processos que gerem novos dinamismos na sociedade” e empenhados corajosa e decididamente na oferta da sua contribuição “em todos os âmbitos onde vivem e trabalham”.

E o Papa acredita que não há de faltar a esta Europa a proteção dos seus Santos Padroeiros: Bento, Cirilo e Metódio, Brígida, Catarina e Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein) – homens e mulheres que, por amor do Senhor, se consagraram sem descanso ao serviço dos mais pobres e em prol do desenvolvimento humano, social e cultural de todos os povos europeus.

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É de salientar, como Francisco o reconhece, que a carta a Parolin, tem como lastro o aludido discurso do Papa polaco em Santiago de Compostela, no qual aquele Pontífice vindo dum “país longínquo” faz história da Europa a partir as rotas que têm levado a Compostela “numerosas massas de peregrinos, atraídas pela devoção ao Apóstolo” a partir de quanto é mundo europeu.

Referindo que a Europa inteira se encontrou a si mesma à volta da ‘memória’ de São Tiago, nos séculos em que ela se edificava como continente homogéneo e unido espiritualmente, enfatiza a insinuação de Goethe de que “a consciência da Europa nasceu peregrinando”.

Observou que a história da formação das nações europeias caminha a par com a evangelização, ao ponto de as fronteiras europeias coincidirem com as da penetração do Evangelho e afirmou que, decorridos 20 séculos de história, apesar dos conflitos sangrentos das crises espirituais que marcaram a vida do continente, “a identidade europeia é incompreensível sem o cristianismo”, sendo que “nele se encontram aquelas raízes comuns” das quais amadureceram a civilização do continente, a sua cultura, dinamismo, atividade, capacidade de expansão construtiva – também nos outros continentes – em suma, tudo quanto constitui a sua glória. Assim, a alma da Europa permanece unida porque, além da sua origem comum, tem idênticos valores humanos e cristãos, como “os da dignidade da pessoa humana, do profundo sentimento da justiça e liberdade, da laboriosidade, do espírito de iniciativa, do amor à família, do respeito pela vida, de tolerância e de desejo de cooperação e de paz, que são notas que a caraterizam”.

Ora, segundo o Pontífice polaco, a Europa pode ser unida respeitando as suas diferenças, incluindo as dos diversos sistemas políticos; pode voltar a pensar na vida social, com a força que têm afirmações de princípio como as contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Europeia dos Direitos do Homem, na Declaração final da Conferência para a segurança e a cooperação na Europa; pode voltar a agir na vida com o conhecimento e respeito de Deus, em que se baseia todo o direito e toda a justiça; e pode reabrir as portas a Cristo sem medo de “abrir ao seu poder salvífico os confins dos estados, os sistemas económicos e políticos, os vastos campos da cultura, da civilização e do desenvolvimento. Assim, o seu futuro não será dominado pela incerteza e pelo temor, mas terá “um novo período de vida, tanto interior como exterior, benéfico e determinante para o mundo constantemente ameaçado pelas nuvens da guerra e por um possível ciclone de holocausto atómico”.

Evocando os nomes de grandes personalidades que deram esplendor e glória a este Continente pelo seu talento, capacidade e virtudes, destacou o grande número de pensadores, cientistas, artistas, exploradores, inventores, chefes de estado, apóstolos e santos (de ontem e de hoje), que são “um estimulante património de exemplo e confiança”. A Europa ainda tem, em reserva, incomparáveis energias humanas, capazes de a suster nesta histórica tarefa de renascimento continental e de serviço à humanidade.

Frisou que a Igreja, consciente do seu lugar na renovação espiritual e humana da Europa, não reivindica posições do passado, hoje ultrapassadas, mas se põe ao serviço, como Santa Sé e como Comunidade católica, para contribuir para a consecução dos fins que almejem um autêntico bem-estar material, cultural e espiritual das nações. Porém, é principalmente a vida eclesial que é chamada com o fim de continuar a dar um testemunho de serviço e de amor e contribuir para a superação das atuais crises do Continente.

Garante que a ajuda de Deus está connosco, bem como a oração de todos os crentes e a boa vontade de muitas pessoas desconhecidas, artífices de paz e de progresso. E acredita que “Jesus Cristo, o Senhor da história, tem aberto o futuro para as decisões generosas e livres de todos os que, acolhendo a graça das boas inspirações, se comprometem numa ação decidida pela justiça e caridade, no quadro do pleno respeito à verdade e à liberdade”.

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Eis duas pequenas peças pontifícias sobre a Europa em que emerge o apelo à Europa do futuro, com base no fervilhar do devir histórico, futuro que dois homens, imbuídos do espírito de Deus e mergulhados nas preocupações pela humanidade, colocam como sonho das suas lideranças que são fulgurantes pela oportunidade quer no último quartel do século XX, sob a ameaça nuclear, quer no termo da segunda década do século XXI, acossado por uma forte pandemia que virou o mundo do avesso, que só a força de Deus pode reverter.

É, pois, oportuno sonhar com Francisco aqueles cinco (alguns dizem quatro) parâmetros de futuro que hão de enformar o ser e o agir da Europa em si e na relação com os demais continentes.  

2020.10.28 – Louro de Carvalho

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