sábado, 17 de outubro de 2020

Carta de Francisco, da Igreja e da Humanidade

Em entrevista à agência Ecclesia, publicada a 6 de outubro, Isabel Varanda avançava com a ideia de que a Encíclica “Fratelli Tutti” pode ser considerada a Carta de Francisco apontando como justificação o facto de 55% das notas de rodapé e referências bibliográficas remeterem para as múltiplas intervenções deste Papa ao longo do seu pontificado, bem como o facto de o próprio Pontífice ter observado, no próprio texto, que a questão da fraternidade tem sido uma preocupação constante, sendo que agora a transferiu para um debate mais alargado.  

E isto é mesmo verdade. Com efeito, para lá da citação do documento sobre a fraternidade subscrito por Francisco e por Ahmad Al-Tayyeb, são citados, de Francisco, inúmeros discursos (pronunciados, quer no Vaticano, quer nas visitas apostólicas), várias mensagens e videomensagens, as diversas exortações apostólicas (“Evangelii gaudium”, “Amoris Laetitia”, “Chritus vivit”, “Gaudete et exsultate”, “Querida Amazónia”), inúmeras homilias, algumas cartas (vg: “Humana Communitas”), comentários, a Encíclica Laudato SI’, alocuções do Angelus, outras alocuções, catequeses nas audiências gerais, diálogos e declarações ecuménicas conjuntas.  

Por outro lado, a Carta de Francisco, que o é na plena aceção da expressão, é eminentemente uma Carta da Igreja, pois ele tem preponderante missão eclesial. Além disso, cita abundantemente documentos dos seus predecessores, documentos conciliares, documentos da Cúria Romana e de episcopados do mundo, bem como doutrina de Padres da Igreja, escritores eclesiásticos e teólogos e faz, de vez em quando, anotações em abono do seu pensamento.

Assim, veem-se pertinentes citações das encíclicas: “Quadragesimo anno”, de Pio XI; “Pacem in terris”, de São João XXIII; “Ecclesiam suam” e “Populorum progressio”, de São Paulo VI; “Redemptor hominis”, “Laborem exercens”, “Sollicitudo rei socialis”, “Centesimus annus”, “Veritatis splendor” e “Evangelium vitae”, de São João Paulo II; “Deus caritas est” e “Caritas in veritate”, de Bento XVI. E citam-se intervenções discursivas se vários Papas, como: Papa Nicolau I, Epistula 97 (responsa ad consulta bulgarorum); Pio XI, Discurso à Federação Universitária Católica Italiana (18 de dezembro de 1927); São João Paulo II, Discurso aos Cardeais e à Cúria (21 de dezembro de 1984), Discurso aos representantes do mundo da cultura (Argentina, 12 de abril de 1987), Discurso à Associação Italiana dos Magistrados (31 de março de 2000).

Também se fazem transcrições de documentos do Concílio Vaticano II, como a “Gaudium et spes”, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo, e a“Nostra aetate”, Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs; do Catecismo da Igreja Católica; e da Doutrina Social da Igreja (Conselho Pontifício “Justiça e paz”)

Referenciam-se: a Congregação para a Doutrina da Fé, Carta aos bispos a respeito d nova redação do n.º 2267 do Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte (1 de agosto de 2018): o Cardeal Raúl Silva Henríquez SDB, Homilia no Te Deum em Santiago do Chile (18 de setembro de 1974); a Conferência dos Bispos católicos dos Estados Unidos, Open wide our Hearts: The enduring Call to Love. A Pastoral Letter against Racism (novembro de 2018); Bispos Católicos do México e dos Estados Unidos, Carta pastoral Strangers no longer: together on the journey of hope (janeiro de 2003); a Conferência dos Bispos de França (Comissão Social), Declaração Réhabiliter la politique (17 de fevereiro de 1999); a Conferência Episcopal Portuguesa, Carta pastoral Responsabilidade solidária pelo bem comum (15 de setembro de 2003); a Conferência dos Bispos Católicos da Austrália (Departamento para a Justiça Social)Making it real: genuine human encounter in our digital world (novembro de 2019); a Conferência Episcopal do Congo, Message au Peuple de Dieu et aux femmes et aux hommes de bonne volonté (09/V/2018); a Conferência dos Bispos da África do Sul, Pastoral letter on christian hope in the current crisis (maio de 1986); a Conferência dos Bispos católicos da Coreia, Appeal of the Catholic Church in Korea for Peace on the Korean Peninsula (15 de agosto de 2017); a Conferência Episcopal da Colômbia, Por el bien de Colombia: diálogo, reconciliación y desarrollo integral (26 de novembro de 2019); a V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de junho de 2007); a Conferência dos Bispos da Croácia, Letter on the Fiftieth Anniversary of the End of the Second World War (1 de maio de 1995); e a Conferência dos Bispos Católicos da Índia, Response of the church in India to the present day challenges (9 de março de 2016).

Outrossim, Francisco socorre-se de palavras de Santo Irineu de Lião (in Adversus haereses”); São Gregório Magno (in “Regula pastoralis”); São Basílio (in “Homilia 21. Quod rebus mundanis adhaerendum non sit”; “Regulae brevius tractatae”); Santo Ambrósio (in “De Nabuthe”); Santo Agostinho (in “Contra Iulianum”; “In Iohannis Evangelium”; Epistula 229”; “Epistula ad Marcellinum; Enarrationes in Psalmos”); São Tomás de Aquino (in “Scriptum super Sententiis”; “Summa theologiae”); São Boaventura (in “Scriptum super Sententiis”); São Pedro Crisólogo (in “Sermo 123”); São João Crisóstomo (in “Homiliae in Matthaeum”; “De Lazarum Concio” ); São Bento (in “Regula”, 53, 15: «Pauperum et peregrinorum maxime susceptioni cura sollicite exhibeatur»); Lactâncio (in “Divinae Institutiones”); Karol Wojtila (in “Amore e responsabilità”);  Karl Rahner (“in “Kleines Kirchenjahr. Ein Gang durch den Festkreis”); Marcellino Zalba SI, (in “Theologiae moralis summa. Theologia moralis fundamentalis. Tractatus de virtutibus theologicis”); Antonio Royo Marín OP (in “Teología de la Perfección Cristiana”); e Carlos de Foucauld, (in “Meditação sobre o Pai Nosso”, 23 de janeiro de 1897; “Carta a Henry de Castries”, 29 de novembro de 1901; e “Carta a Madame de Bondy”, 7 de janeiro de 1902); e René Voillaume (in “Frère de tous”, Paris 1968).

E o Papa Francisco evoca São Tomas de Aquino para vincar:

Dicitur amor extasim facere, et fervere, quia quod fervet extra se bullit et exhalat – diz-se que o amor produz êxtase e efervescência, contanto que o efervescente ferva fora de si e expire” (Scriptum super Sententiis, lib. III, dist. 27, q. 1, a. 1, ad 4).

 Menciona Santo Agostinho dizendo:

De quantos prazeres se privam os avarentos, para aumentar os seus tesouros ou com medo de os ver diminuir!” (Contra Julianum, 4, 18: PL 44, 748).

Refere que “a doutrina moral católica, na esteira do ensinamento de São Tomás de Aquino, prevê esta distinção de ato elícito e ato imperado”, a propósito da “atividade do amor político”, quando diz que o amor elícito “expressa os atos que brotam diretamente da virtude da caridade, dirigidos a pessoas e povos” e o amor imperado “traduz os atos de caridade que nos impelem a criar instituições mais sadias, regulamentos mais justos, estruturas mais solidárias”.

Para contradizer qualquer legitimação da guerra, que fere, mata destrói tanto forças em combate como populações inteiras e seus bens e inocentes, como crianças, idosos e doentes, assegura que, mesmo Santo Agostinho, que elaborou uma ideia da ‘guerra justa’, que hoje já não defendemos, disse que “matar a guerra com a palavra e alcançar e conseguir a paz com a paz, e não com a guerra, é maior glória do que a dar aos homens com a espada” (Epistula 229).

Diz que, nestes momentos em que tudo parece diluir-se e perder consistência, nos faz bem invocar a solidez. E, em nota de rodapé, explica que “a solidez está na raiz etimológica da palavra solidariedade”, a qual, “segundo o significado ético-político assumido nos últimos dois séculos, gera uma construção social segura e firme”.

Referindo que “nem a ideia de povo nem a de próximo são categorias puramente míticas ou românticas que excluam ou desprezem a organização social, a ciência e as instituições da sociedade civil”, acrescenta, em nota de rodapé que “algo parecido podemos dizer da categoria bíblica Reino de Deus”.

E, depois de observar que “para os crentes, a natureza humana, fonte de princípios éticos, foi criada por Deus, que em última análise confere um fundamento sólido a estes princípios”, esclarece, em nota de rodapé, que nós, “como cristãos, acreditamos também que Deus dá a sua graça para se poder agir como irmãos”.

Acresce acentuar que, para lá da índole franciscana, por ser deste Papa e inspirada em São Francisco de Assis, o seráfico pai que desposou a “Senhora Pobreza”, e da sua dimensão fortemente eclesial, como se pôde verificar, a Carta é perpassada por forte veio de humanidade, é uma autêntica carta de humanidade. Assim, o Pontífice aberto a outras religiões como o islão e o judaísmo, além de citar o grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, cita o Talmude na pessoa do sábio Hillel, Talmud Bavli (Talmud de Babilónia), Shabbat, 31 a, mas também muitos autores não eclesiásticos, o que foi ensaiado pela primeira vez nos tempos contemporâneos por São Paulo VI. Neste sentido temos: Aristóteles, Política (“O ser humano é um animal político”); Eneida I, 462: «Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt – são lágrimas das coisas, as peripécias dos mortais confrangem a alma; Cícero, De Oratore, 2, 36 – «Historia (…) magistra vitae»; Gabriel Marcel, Du refus à l’invocation (Paris 1940); Georg Simmel, Brücke und Tür. Essays des Philosophen zur Geschichte, Religion, Kunst und Gesellschaft (Estugarda 1957); Jaime Hoyos-Vásquez, “Lógica de las relaciones sociales. Reflexión onto-lógica”, in Revista Universitas Philosophica 15-16 (dezembro 1990 a junho 1991, Bogotá, 95-96); Paul Ricoeur, “Le socius et le prochain”, in Histoire et vérité  (Paris 1967, 113-127); Vinícius de Moraes, “Samba da Bênção”, no disco Um encontro no «Au bon Gourmet» (Rio de Janeiro 02/VIII/1962).

Por tudo isto e depois do emaranhado algo fastidioso de referências e citas bibliográficas, a conclusão a que chego é a “Fratelli Tutti” é a Carta de Francisco, que eleva a fraternidade a categoria que extravasa o círculo familiar e que deve e é capaz de enformar toda a sociedade, contra a fome, o conflito, a aniquilação e o descarte porque todos somos filhos do Pai comum que está nos Céus e que a todos ama com o dom amor gratuito, oblativo e que deseja que lhe correspondamos e o repliquemos entre nós. Porém, assume sobre os seus ombros, quiçá bem frágeis, todo o peso leve da Igreja multissecular como se toda a sua história fosse o “hoje” a unir o passado com o futuro, na tradição que evolui segundo o vigor e o dinamismo do Reino de Deus. E, não se importando de ser o vértice da pirâmide invertida suportando o peso e a oscilação de toda a humanidade, o Pontífice (o que faz a ponte) entre os seres humanos e Deus quer dar voz à humanidade para que ela faça ouvir o seu grito de lamento, de ansiedade e de esperança. Para tanto, alia à fraternidade a amizade social, libertando a amizade do claustro da esfera privada para que ela fertilize as relações interpessoais. Talvez por isso Francisco fale sem reservas da necessidade do amor político, quer em ato elícito, quer em ato imperado; e não tem pelo em apresentar a política como nobre vocação e peculiar forma de caridade.

É a carta de Francisco, a carta da Igreja, a carta da Humanidade!

2020.10.17 – Louro de Carvalho 

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