A implantação
da República, com as operações iniciadas a 2 de outubro de 1910 e terminadas na
madrugada do dia 5, o que levou à proclamação no novo regime de governação às 9
horas da varanda frontal do edifício dos Paços do Município de Lisboa, foi
celebrada, este ano, sob o pano de fundo da pandemia que avassala o mundo.
Dizem-nos
que, ao invés dos últimos anos, em que o palco era a Praça do Município, a
sessão solene do 110.º aniversário da República decorreu no Salão Nobre por
causa da pandemia e do risco de contágio que ela proporciona. Não sei se o
creia ou se deva pensar que a causa terá sido o frio e a iminência de chuva –
coisas desagradáveis para Suas Excelências suportarem.
Não obstante,
valerá a pena fixarmo-nos em alguns pontos das asserções produzidas pelos
oradores habituais na evocação da efeméride: o Chefe de Estado, representante de
topo da nossa República; e o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, do sítio
onde se efetivou a proclamação e se deu o simbólico pontapé de saída para os
novos tempos, ainda que muito conturbados, o que levou a várias metamorfoses até
aos nossos dias.
Fernando Medina discursou perante o Presidente da República, o
Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, três dos quatro
presidentes dos tribunais superiores (o Presidente do Tribunal Constitucional não compareceu por aguardar
o resultado do teste à covid-19, depois de ter participado no Conselho de
Estado do dia 29 de setembro com António Lobo Xavier, que testou positivo), o Vice-presidente da Câmara Municipal
João Paulo Saraiva (PS) e os vereadores Teresa Leal Coelho (PSD), João Gonçalves Pereira (CDS-PP), João Ferreira (CDU)
e Manuel Brito (BE).
O Presidente da Câmara da capital, no seu discurso, elogiou a
“visão estratégica e o rumo” escolhidos pelo Governo para responder “de forma
inclusiva, ecológica e socialmente responsável”, à segunda crise no espaço de
uma década. E sublinhou:
“Para que isso aconteça, é necessário que o país se mantenha focado no
essencial. Ninguém entenderia que, num país ainda marcado por feridas da última
crise, alguns preferissem uma crise artificial à responsabilidade da resposta à
vida de milhões de portugueses.”.
O edil lisbonense sustentou que, quem num passado recente,
afirmou que era possível outra política económica “tinha razão”, mas vincou que
“ter razão não basta”, pois, “é preciso, quando confrontado com as suas
responsabilidades, assumir a coragem da sua responsabilidade”.
É óbvio que Medina tem razão no que afirma em relação às responsabilidades.
Só não a terá na totalidade quando aplaude sem reservas a política governativa
em relação à crise pandémica e socioeconómica, política que suscita muitas
dúvidas pelas contradições a que tem dado azo, bem como pelos avanços e recuos a
que tem dado ensejo e por uma certa falta de coragem política em mudar de
agulha em relação a grandes obras públicas e a medidas sociais. Além disso, não
pode falar da iminência de crises artificiais quando as oposições pretendem
segurar-se nas suas exigências de política económica e social, já que o direito
à crítica não pode ser anulado em tempo de crise, bem como o painel das opções eleitorais.
E não vejo como o socialista refere que estamos a passar pela segunda crise
numa década. Esquece que a crise a que respondeu a troika e o Governo que
pretendeu ir além da troika e desculpar-se com ela eclodiu em 2008 e que a
Europa a pretendeu combater por meios errados promovendo a alta de consumo, a princípio,
e clamando, a seguir, que estávamos nós, os países do sul, a viver acima das nossas
possibilidades, para, finalmente, vir apregoar a inevitabilidade. Depois, é
preciso que o autarca-mor de Lisboa assente em que em democracia as crises
políticas são sempre solúveis.
Por seu turno,
o Presidente da República, num discurso que durou cerca de 12 minutos, considerou
que este 5 de outubro é “dos mais difíceis e exigentes, senão o mais sofrido de
46 anos de democracia”, pelo que apelou à resistência dos portugueses: “Temos que continuar a resistir na vida e na
saúde”. E, enaltecendo os valores da liberdade, democracia e ética
republicana – “que repudia compadrios, clientelas, corrupções” –, disse que, nestes
tempos difíceis, “temos de continuar a agir em liberdade e vamos continuar a
agir em liberdade porque não queremos ditaduras em Portugal”, pois “sabemos que
ditaduras por esse mundo fora não resolveram esta crise e, porventura, nem
sequer a assumiram a tempo e com transparência”.
Porque ninguém
sabe quando terminará a pandemia e porque a recuperação económica do país
levará anos, Marcelo deixou um aviso à navegação que servirá ao momento
político atual, a 8 dias da entrega da proposta do Orçamento do Estado para
2021 no Parlamento:
“Os
portugueses têm de continuar resistir, a prevenir, a cuidar, a renovar, a agir
em liberdade, a saber compatibilizar a diversidade com a convergência no
essencial, a sobrepor o interesse coletivo aos meros interesses individuais”.
Num discurso em que apelou à “unidade no essencial”, o Chefe
de Estado disse que Portugal tem de continuar a “sobrepor o interesse coletivo
aos meros interesses pessoais, a solidariedade ao egoísmo, a convergência que
faz a força – convergência em liberdade, não unicidade imposta – ao salve-se
quem puder, o bom senso comunitário ao aventureirismo individualista”.
Vincando que
“vivemos em tempo de duas graves crises, de algum modo, em tempo de exceção e
legalmente em tempo de exceção sanitária há mais de sete meses”, assegurou que “este
5 de outubro é vivido também em estado de exceção económica e social”. E, deixando
recados aos governantes e aos que vão gerir os milhares de milhões de euros que
vão arribar da União Europeia para ajudar a mitigar a crise, acentuou:
“Acresce que a pandemia e a paragem
económica e social não são só nossas, são de todo o mundo. Acresce que ninguém
sabe quando terminará a crise na economia, acresce que a recuperação económica
demorará anos, (…) e mais anos mesmo se for uma oportunidade desperdiçada para
mudar instituições e comportamentos e antecipar de modo irreversível o nosso
futuro.”.
Sem
especificar a que instituições e comportamentos se referia, o Presidente da
República acrescentou que “essa mudança só valerá realmente a pena se não
servir só alguns portugueses privilegiados, mas permitir que se ultrapassem a pobreza,
a desigualdade, a injustiça social”.
Marcelo
Rebelo de Sousa realçou que “a pandemia e a paragem económica e social” são globais
e que “ninguém sabe” quando é que haverá tratamento e vacina para a covid-19. Por
isso, como disse, “temos de continuar a resistir e vamos continuar a resistir,
ao medo, ao facilitismo e à tentação de encontrar bodes expiatórios, numa luta
que é só de todos e não é só de alguns”. Mais disse que “temos de continuar a
cuidar e vamos continuar a cuidar das pessoas e dos que estão mais em risco nas
unidades de saúde, lares, escolas e empresas”. E advertiu:
“Que ninguém pense que está dispensado de
comparecer e lutar, que ninguém pense que é menos importante, que ninguém pense
que a sua felicidade pode ser construída à margem ou à custa dos demais, que
ninguém pense que os portugueses vão deixar de ser lúcidos, firmes, resolutos,
abnegados, cientes daquilo que os une, para além de tudo aquilo que os desune. (…)
Estes desafios em que estamos envolvidos não são de uma pessoa, de uma classe,
de uma corporação, de um Governo, de um Primeiro-Ministro ou de um Presidente
da República, são de todos, a começar pelos mais responsáveis, mas são de todos.”.
No início da
intervenção, Marcelo recordou que, desde que foram confirmados os primeiros
casos de infeção com o novo coronavírus em Portugal, o país passou por situações
de alerta, de contingência, de calamidade, estado de emergência duas vezes
renovado e que se mantém “em situação de contingência em todo o território
continental”. E, em seguida, descreveu a realidade económica e social ao longo
deste período:
“Desde março, conhecemos, primeiro, a
paragem abrupta de muita da atividade económica durante três meses, com
desemprego ou baixa de salário em parte considerável do setor privado, e sufoco
de inúmeras micro, pequenas e médias empresas, com decorrente aumento acelerado
do défice orçamental e da dívida pública”.
***
É de salientar que Marcelo tenha emendado a mão, ao menos implicitamente,
em relação a asserções proferidas recentemente em que, a par do reconhecimento
das falhas da comunidade internacional em relação à pandemia, dizia
enfaticamente que em tempo de crise não pode haver guerras setoriais nem
conflitos entre instituições – e bem – e disse que, nestes tempos, não era
oportuno pensar em eleições, o que não é justo. Se tem razão em relação às guerrilhas
setoriais e institucionais, quando está gravemente em causa o interesse geral e
o dos mais vulneráveis, não o tem quando insinua a menorização de um dos
mecanismos fundamentais da democracia representativa: as eleições para os
órgãos do poder político. Não se pode suspender a democracia prolongando
mandatos, adiando ou anulando eleições ou eternizando no poder por via administrativa
os seus titulares. As crises mal interpretadas costumam ser a justificação para
as ditaduras. É verdade que a comunidade internacional esteve mal a lidar com a
crise pandémica: não a prevenindo, quando os avisos e os sintomas foram precoces
e premonitórios, não a combatendo de forma célere e concertada, dando azo a egoísmos
e a procura atabalhoada de soluções, sendo tardia a tomar medidas de resposta à
crise no aspeto sanitário e no económico-social e permitindo aproveitamento
indevido e negócios obscenos. Mas isto não foi denunciado a tempo e horas.
Todavia, mais vale tarde que nunca.
***
Neste dia, é ainda de registar o recado de Ana Gomes, pré-candidata
presidencial, que assinalou
o 5 de outubro com uma
sessão sob o título “Cuidar de Portugal”, no Teatro da Trindade, em Lisboa,
onde defendeu que a estabilidade importa, “mas não pode equivaler a um país
conformado” e que, “em República,
não há vitórias antecipadas”, não havendo “coroações” e nada estando decidido
antes de os cidadãos eleitores irem às urnas. A par destas afirmações e compreendendo “quem esteja desencantado com a
política e os políticos”, apelou a todos os eleitores, mas sobretudo aos mais
jovens, a que “combatam a apatia, não se abstenham, não desistam de Portugal”, pois “todos
somos chamados a construir um Portugal melhor”.
Para Ana Gomes, quem é eleito para a
Presidência da República “tem o dever de defender a Constituição e a separação
de poderes que sustenta a democracia”, de a “todos convocar para determinar o
rumo estratégico do país” e zelar para que esse rumo seja cumprido com “isenção, sentido ético, rigor e transparência”. Com efeito, agora, “mais do que nunca”, é preciso
“o reforço da democracia, sobretudo quando os extremistas ressurgem por toda a
Europa e tratam de cavalgar a crise e a desconfiança, semeando ódios, divisões
e violência”.
E sustentou que fazer política é servir
o bem, as pessoas, assegurar a boa governação” sem “esperar em troca cargos,
honrarias ou contrapartidas materiais” e não “aceitar que os negócios se confundam com a política, os interesses privados com o interesse público geral, que
projetos pessoais e partidários estejam acima dos superiores interesses nacionais”, que haja
pessoas que passam fome em Portugal, haja disparidade, dumping e opressão fiscais, lentidão da justiça e corrupção.
***
Por fim, recordo um reparo do Papa,
nestes dias, no sentido de que os decisores políticos devem estar preocupados
com o bem comum, não com as sondagens e popularidade.
2020.10.05 – Louro
de Carvalho
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